FELICIDADE AUTÊNTICA
ESTÁ NA PARTILHA DO QUE SE TEM E DO QUE SE É
Quarta-Feira da XXIII
Semana Comum
10 de Setembro de 2014
Evangelho: Lc 6,20-26
Naquele tempo, 20 Jesus,
levantando os olhos para os seus discípulos, disse: “Bem-aventurados vós, os
pobres, porque vosso é o Reino de Deus! 21 Bem-aventurados vós que agora
tendes fome, porque sereis saciados! Bem-aventurados vós que agora chorais,
porque havereis de rir! 22 Bem-aventurados sereis, quando os homens vos
odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa
do Filho do Homem! 23 Alegrai-vos, nesse dia, e exultai, pois será
grande a vossa recompensa no céu; porque era assim que os antepassados deles
tratavam os profetas. 24 Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes vossa
consolação! 25 Ai de vós que agora tendes fartura, porque passareis
fome! Ai de vós que agora rides, porque tereis luto e lágrimas! 26 Ai de
vós quando todos vos elogiam! Era assim que os antepassados deles tratavam os
falsos profetas.
____________________
Neste sermão da Planície há três
seções apresentadas. Primeiro, o anúncio de salvação aos “pobres”
e os ais para os “ricos” (Lc 6,20-26). Somente quem escutou e acolheu a Boa
Nova anunciada por Jesus, tem condições para seguir a Jesus e para entrar no
Reino de Deus. Quem fica agarrado às coisas sem espírito de partilha impede de
seguir a Jesus. Segundo, o amor para os inimigos (Lc 6, 27-38). O
amor cristão não conhece fronteiras, pois ele é universal. Deus ama a todos
(cf. Mt 5,44-45). Amar como Deus-Pai supõe amar até os inimigos, oferecendo o
perdão. Para amar de verdade o cristão tem que aprender a perdoar. Deus não se cansa de perdoar, pois não se
cansa de amar. Somente quem fizer a experiência do amor do Pai celeste, tem
força para amar aos inimigos, isto é, sempre querer o bem para todos
independentemente daquilo que eles cometeram. Não se trata de acariciar quem
pratica o mal, mas mostrar para ele que conviver como irmãos é mais edificante,
pois um cuida do outro e um proteja o outro, um ajuda o outro. Terceiro,
apresentam-se cinco parábolas para falar do verdadeiro discípulo de Jesus (Lc
6,39-49). Os cristãos devem estar cheios de amor e existir para os outros para
ser de Deus, e estar conscientes de sua responsabilidade, não sendo guia cego e
ser permanentes discípulos, isto é, não para de aprender e os demais
ensinamentos nesta parte que indicam como deve ser discípulos de Jesus.
O texto do evangelho de hoje, que
inicia o Sermão da Planície, nos apresenta as bem-aventuranças como síntese da
mensagem cristã, como projeto de felicidade. A felicidade para todos é o
projeto de Jesus. A santidade é o projeto individual-pessoal.
Jesus se dirige à multidão de discípulos
que O seguem e confiam nele com felicitações. São homens, mulheres e crianças
pobres vindos de todas as partes. Perderam tudo e somente lhes fica sua esperança
em Deus. A eles Jesus disse: felizes vocês que não viram sua pobreza como um
obstáculo para desfrutar da felicidade que o Reino traz. Essas palavras são uma
contradição flagrante contra a mentalidade vigente. Para a ideologia imposta
pelos poderosos do mundo, unicamente são felizes os que possuem terras,
dinheiro e coisas (bens materiais). Jesus afirma que as coisas, as terras e a
riqueza não podem fazer feliz o homem, pois a felicidade não está nas coisas e
sim está dentro do próprio homem, está na fraternidade, na partilha, na vivência
do amor misericordioso, na justiça e na caridade e assim por diante. Os bens
materiais continuam sendo alheios para o homem. O homem precisa de Deus e de
outro homem para ser ele mesmo. O homem
só alcançará sua felicidade na medida em que ele conseguir fazer o outro feliz.
Jesus felicita aos pobres que O acompanham porque eles não colocam sua esperança
no poder, no prestígio ou no dinheiro, mas em Deus que salva e na partilha do
que se tem e do que se é.
Exegeticamente, o gênero de
bem-aventurança não é novo no Novo Testamento, nem tampouco é exclusivo dos
evangelhos. O Antigo Testamento nos apresenta numerosos exemplos de
bem-aventuranças. Só no livro de Salmos encontramos mais de vinte vezes (cf. Sl
40,2; 127,1 etc.). O Apocalipse de São João rima seu texto com sete
bem-aventuranças (Ap 1,3; 14,13; 16,15;19,9; 20,6; 22,7; 2214).
Encontramos
paralelamente as bem-aventuranças em Mateus e Lucas, mas cada evangelista tem
suas particularidades. Em Mateus há oito bem-aventuranças (Mt 5,1-12), enquanto
que em Lucas, quatro e mais quatro maldições. Mateus insiste na pobreza
“espiritual” (os pobres no espírito), isto é, a atitude interior. Lucas, ao
contrário, se dirige aos pobres reais, à classe social daqueles que são mais
pobres materialmente/fisicamente do que os demais. E esta insistência
particular de Lucas é ainda reforçada por: o anúncio de uma mudança total das
situações e a oposição entre “bem-aventuranças” e “maldiçoes” (“os ais”).
A
interpretação das bem-aventuranças “segundo Mateus” convida todos os homens,
ricos e pobres para o desprendimento espiritual e para a conversão do coração.
A interpretação das bem-aventuranças “segundo Lucas” convida todos os homens,
ricos e pobres, a transformarem as estruturas da sociedade para que haja menos
pessoas desfavorecidas e que não haja os empobrecidos. Se todos são filhos e
filhas de Deus da misericórdia (Lc 6,36), então todos são irmãos. Se todos são
irmãos em Cristo, então todos devem cuidar de todos. Deus, como Pai de todos,
não estará contente, se um dos seus filhos não estiver feliz. E ninguém pode
estar em plena tranqüilidade diante de Deus, se um irmão estiver passando fome
ou por alguma necessidade básica para sua vida.
Na versão de Lucas das aventuranças,
Jesus chama “felizes” ou “bem-aventurados” para quatro classes de pessoas: os
pobres, os que passam fome, os que choram e os que são perseguidos por causa da
fé. E ele dirige seu “ai” para outras quatro classes de pessoas: os ricos, os
que estão saciados, os que riem e os que são adulados pelo mundo.
Trata-se, portanto, de quatro
antíteses. São como as antíteses que Lucas põe nos lábios de Maria de Nazaré em
seu Magnificat: Deus derruba de trono os poderosos e exalta os humildes; saciou
de bens os indigentes e despediu os ricos de mãos vazias (cf. Lc 1,52-53). É o
desenvolvimento daquilo que Jesus havia anunciado em seu discurso programático
em Nazaré: Ele foi enviado para os pobres, os cativos, os cegos e os oprimidos
(cf. Lc 4,14-22).
O projeto de Jesus para todos nós é
a felicidade. Ele veio para trazer vida em abundância (Jo 10,10). Felizes os
pobres; felizes os que agora passam fome; felizes os que choram; felizes os que
são odiados por causa do Filho do Homem. Trata-se de situações reais, de
circunstâncias concretas e históricas. O advérbio “agora” reforça mais ainda
essa impressão.
Jesus me convida, em primeiro lugar,
a olhar para minhas próprias misérias, minhas pobrezas reais, minhas fomes
reais, meus prantos reais, os desprezos reais que sofro. Em que sou um
miserável? Em que sou um pobre? De que eu tenho fome? Quais são desprezos que
eu sofri ou tenho sofrido?
Em segundo lugar, Jesus me convida a
olhar ao meu redor para esses mesmos setores de miséria, dos pobres, dos
sofredores, dos famintos, dos desprezados. Sou convidado por Jesus a partilhar
minha felicidade com os outros, para dividir com o necessitado daquilo que eu
tenho, para levar consolação para os que vivem nos prantos, para levar o amor
para aqueles que sofrem de desprezo. Se eu fizer tudo isto e mais do que isto,
estarei mostrando para os outros que estou no Reino de Deus embora eu ainda
esteja neste mundo. Desta maneira, para mim Jesus vai dizer: “O reino de Deus é
vosso”, pois ao matar a fome do outro com o que eu tenho, eu sou saciado por
Deus (cf. Mt 25,31-46). Ao ajudar os outros na sua carência do essencial, não
somente aliviamos sua dor. É muito mais do que isso! Queremos mostrar que
estamos no Reino de Deus onde não há fome, não há desprezo, não há pranto, pois
todos se preocupam com todos; porque cada um se torna irmão para o outro;
porque cada um se torna ocasião de salvação para o outro.
Hoje Jesus convida todos nós, pobres
e ricos, a vivermos a verdadeira pobreza evangélica. A verdadeira pobreza
evangélica é a pobreza do homem que desapega seu espírito de todas as coisas
que tem, remete a Deus toda preocupação pelas coisas temporais e vive neste
mundo como peregrino no caminho até a possessão eterna de Deus. A pobreza assim
entendida mantém a alma aberta a Deus, em atitude de total “expectativa”, pois
tudo espera de Deus, e mantém o coração aberto para o próximo que necessita de nossa
ajuda; cria um clima espiritual propício à docilidade interior, à oração e à
união com Deus, porque ensina o homem a viver em contínua dependência do
Criador. O apego às coisas passageiras fecha o coração do homem diante de Deus
e diante de seu próximo. Um coração cheio de coisas terrenas fica cego diante
da transcendência e diante da miséria alheia. A pobreza evangélica, por sua
vez, gera a justiça e a misericórdia, ensina a partilhar o que se tem e o que
se é com quem não tem para viver uma vida digna, a alimentar a esperança, a educar
para a paz, para o diálogo, para o serviço do próximo, a aumentar o amor e produz
serenidade e alegria espiritual. Esta é a mensagem revolucionária que nosso
Senhor nos trouxe. Se tudo for realizado, bem-aventurados seremos todos!
O Evangelho é anúncio e denúncia ao
mesmo tempo, bênção e maldição, Boa Notícia e Má Notícia. O Evangelho não é
imparcial. Em que lado você está?
P. Vitus Gustama,svd
Nenhum comentário:
Postar um comentário