quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

V Domingo Do Tempo Comum "C",06/02/2022

VOCAÇÃOPROFÉTICA E APOSTÓLICA NO ESPÍRITO DO SENHOR

V DOMINGO DO TEMPO COMUM “C”

Primeira Leitura: Is 6,1-2a.3-8

1No ano da morte do rei Ozias, vi o Senhor sentado num trono de grande altura; o seu manto estendia-se pelo templo. 2ª Havia serafins de pé a seu lado; cada um tinha seis asas. 3Eles exclamavam uns para os outros: “Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos; toda a terra está repleta de sua glória”. 4 Ao clamor dessas vozes, começaram a tremer as portas em seus gonzos e o templo encheu-se de fumaça. 5 Disse eu então: “Ai de mim, estou perdido! Sou apenas um homem de lábios impuros, mas eu vi com meus olhos o rei, o Senhor dos exércitos”. 6 Nisto, um dos serafins voou para mim, tendo na mão uma brasa, que retirara do altar com uma tenaz, 7 e tocou minha boca, dizendo: “Assim que isto tocou teus lábios, desapareceu tua culpa, e teu pecado está perdoado”. 8 Ouvi a voz do Senhor que dizia: “Quem enviarei? Quem irá por nós?” Eu respondi: “Aqui estou! Envia-me”. 

Segunda Leitura: 1Cor 15,3-8.11

Irmãos: 3 O que vos transmiti, em primeiro lugar, foi aquilo que eu mesmo tinha recebido, a saber: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; 4 que foi sepultado; que, ao terceiro dia, ressuscitou, segundo as Escrituras; 5 e que apareceu a Cefas e, depois, aos Doze. 6 Mais tarde, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma vez. Destes, a maioria ainda vive e alguns já morreram. 7 Depois, apareceu a Tiago e, depois, apareceu aos apóstolos todos juntos. 8 Por último, apareceu também a mim, como a um abortivo. 11 É isso, em resumo, o que eu e eles temos pregado e é isso o que crestes.                                  

Evangelho: Lc 5,1-11

Naquele tempo, 1Jesus estava na margem do lago de Genesaré, e a multidão apertava-se ao seu redor para ouvir a palavra de Deus. 2Jesus viu duas barcas paradas na margem do lago. Os pescadores haviam desembarcado e lavavam as redes. 3Subindo numa das barcas, que era de Simão, pediu que se afastasse um pouco da margem. Depois sentou-se e, da barca, ensinava as multidões. 4Quando acabou de falar, disse a Simão: “Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca”. 5Simão respondeu: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes”. 6Assim fizeram, e apanharam tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam. 7Então fizeram sinal aos companheiros da outra barca, para que viessem ajudá-los. Eles vieram, e encheram as duas barcas, a ponto de quase afundarem. 8Ao ver aquilo, Simão Pedro atirou-se aos pés de Jesus, dizendo: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador!” 9É que o espanto se apoderara de Simão e de todos os seus companheiros, por causa da pesca que acabavam de fazer. 10Tiago e João, filhos de Zebedeu, que eram sócios de Simão, também ficaram espantados. Jesus, porém, disse a Simão: “Não tenhas medo! De hoje em diante tu serás pescador de homens”. 11Então levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus.

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O tema da vocação profética e apostólica ocupa as leituras deste domingo. 

Nós e o Profeta Isaías

A cena, que nos relata Isaías, na Primeira Leitura, se reveste de um ar de grande solenidade e majestade. Trata-se de uma teofania ou de uma manifestação divina. Deus se manifesta a Isaías em poder e glória. Ainda que não seja tão tremenda, imponente como aconteceu na teofania de Sinai, em trovão, nuvens e chamas, também aqui se revela a majestade e a grandiosidade do Deus dos exércitos, do Deus de Israel. É o Deus da criação, é o Santo por excelência (três vezes santo), o Transcendente, o Único, o Separado por natureza de toda a criação. Sua glória e poder se derramam ou se estendem por toda a terra (o seu manto estendia-se pelo templo). O templo, morada especial de sua glória, se comove. A fumaça o cobre; ninguém pode ver Seu rosto, ninguém está capacitado para isso. Nem os mesmos Serafins, seres celestiais, imediatos servidores de Sua Palavra, se atrevem a olhá-Lo. Seus olhos não O aguentariam. Respeitosos, se cobrem diante d´Ele, pois diante d´Ele todos se sentem nus ou desnudos. Uns a outros lançam a voz: Santo, Santo, Santo (três vezes santo). O três vezes Santo nos recordam a liturgia celeste.. 

Isaías é concedido a participar, em parte, nesta liturgia: primeiro como espectador, depois como interlocutor. A grandeza de Deus é imponente. Isaías a experimenta em si mesmo e cai, espantado diante de Deus. Diante d´Ele, o Santo, tudo é imperfeito, tudo impuro, tudo profano. Os olhos de Isaías não podem contemplar aquela cena sem sentir-se desnudo, impuro, profano, indigno e pecador: “Ai de mim, estou perdido! Sou apenas um homem de lábios impuros, mas eu vi com meus olhos o rei, o Senhor dos exércitos” (Is 6,5). A Luz de Deus é tão penetrante e aguda que dissipa toda sombra. O homem, sombra diante de Deus, sente a força dessa luz, envolvido totalmente. Quem vir a Deus,  vai dispor a morrer, pois traspassa o umbral do mundo divino. 

Deus quer confiar a Isaías uma missão. Para isso, Ele o purifica primeiro e o consagra. Uma vez purificado, a voz do Senhor chega até ele como uma apelação: Quem enviarei? Quem irá por nós?”. Isaías fortalecido pelo fogo responde prontamente: Aqui estou! Envia-me”.

Notemos alguns detalhes no relato:

1. Trata-se da vocação profética de Isaías. Isaías é eleito, é consagrado profeta do Senhor. A voz do Senhor, o fogo do altar, a resposta do profeta o dizem claramente. Isaías é agraciado com uma revelação. Em outras palavras, Isaías goza de certa intimidade divina: viu Deus, mas sem morrer. Isto explica, em certo modo, a pronta e decidida resposta de Isaías: “Eis-me!” ou “Aqui estou!”. A resposta pronta de Isaías nos recorda a prontidão de Abraão no Antigo Testamento (Gn 12,1-9) e de Maria no Novo Testamento (Lc 1,38). Admirável é a disposição de Isaías! Esta mesma prontidão diante da manifestação divina se encontra no texto do evangelho de hoje através da resposta dos primeiros discípulos perante a chamada do Senhor para segui-Lo: “Então levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus” (Lc 5,11). Esta mesma prontidão de Isaías e dos primeiros discípulos questiona nossas resistências diante da chamada de Deus para certas tarefas nas comunidades cristãs.

2. Merece certa atenção sobre a majestade de Deus. Deus é o Santíssimo. O respeito dos Serafins, a nuvem de fumaça que O esconde, o tremor do templo e do próprio Isaías, a voz sem ver o rosto, o canto dos Serafins... Deus é Santo; há que ser puro para se aproximar d´Ele. É muito importante. Deus purifica quem se aproxima e se aproxima purificado. O verdadeiro encontro com o Senhor resulta na purificação de vida de tudo o que é impuro. 

3. O pensamento do profeta é instrutivo: “Ai de mim, estou perdido! Sou apenas um homem de lábios impuros...”. A mesma experiência aconteceu com Pedro no Evangelho de hoje diante da manifestação divina (pesca milagrosa): “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador!”. O homem a quem Deus se manifesta ou a quem Deus toca, se encontra sempre em uma situação semelhante: recebe um forte impacto de impuro, de indigno, de pecador. Um enfrentamento com Deus cara a cara seria para o homem horroroso, pois ele tem que admitir que é pecador, pois a luz divina ilumina tudo até o interior do homem. Todo o seu ser se sentiria completamente desmoronado. Para se aproximar de Deus, o homem precisa de uma transformação, de uma purificação profunda. Os santos viveram isso. Quanto mais perto Deus se aproxima, mais a alma treme. Deus, porém, a sustenta. Se não fosse a graça de Deus, o homem não poderia sustentar sua presença impunemente. Por isso, o símbolo do fogo é sugestivo. O fogo purifica, consagra para uma missão. 

Portanto, a Primeira Leitura é uma narração autobiográfica do maior profeta de Israel: Isaias. O relato se desenrola em uma visão litúrgica no templo. Isaías se encontra diante da santidade e grandiosidade do Celeste, diante de Deus que se manifesta enchendo a terra. A manifestação de que Deus é três vezes santo faz com que fiquem em destaque a mediocridade humana, a descoberta de sua pequenez de seu pecado diante de Deus. 

Por isso, a reação espontânea de Isaías é confessar sua profunda incapacidade e indignidade pessoal para ser profeta. Diante da santidade divina a reação do profeta é reconhecer-se homem de lábios impuros como seu próprio povo: “Ai de mim, estou perdido! Sou apenas um homem de lábios impuros”. Por meio da visão, Isaias compreende sua culpa anterior: a culpa de não ter falado quando deveria tê-lo feito. Por isso, seus lábios estão manchados do silencio culpável. Nesta condição ele não pode exercer a tarefa ou missão de anunciar. Além disso, o medo o invade porque seus olhos viram o Senhor e em consequência deve morrer (cf. Ex 3,20). 

Esta mesma reação sobre a indignidade diante da manifestação divina através da pesca milagrosa e o reconhecimento da própria pecaminosidade da parte do homem se encontra na cena do evangelho de hoje através da boca do apóstolo Pedro: Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador!” (Lc 5,8)

Mas Deus se aproxima com sua graça para que Isaías supere o pânico e experimente a fascinação de Sua presença santa. E um serafim, ministro da corte celeste, com um carvão ardente (uma brasa), tomado do altar dos holocaustos, purifica a boca do profeta. É como um gesto sacramental que o consagra. A partir de então Isaías é apto para a missão da palavra porque por este rito são perdoados seus pecados e sua culpa. 

O profeta, o homem da palavra, deve ser precisamente purificado na palavra para que possa transmitir a Palavra de Deus puramente, sem desvios ou distorções. O fogo sagrado que vem do altar penetra a língua do homem, chamado a falar em nome de Deus e não em nome de si próprio. 

Livre de obstáculos imediatamente Isaias se oferece com prontidão para a missão: “Aqui estou! Envia-me”. Resposta cheia de espontaneidade, entusiasmo e prontidão. Aceita sua vocação profética e vence a covardia de sua indecisão. É um grande exemplo!

Quem enviarei? Quem irá por nós?” (Is 6,8). Qual será sua resposta para esta pergunta? Qual será o tamanho de sua prontidão para esta chamada? Quais são seus medos? 

Todo o relato de vocação profética está orientado para o ministério da palavra, palavra que nos faça ver como a glória ou a manifestação divina invade a terra; a palavra que faz o ouvinte enxergar a realidade divina na sua vida cotidiana que o capacita a dizer: “Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos; toda a terra está repleta de sua glória”. A terra não é nada fácil. Nós homens somos seres cegos que nem sequer apalpamos essa presença divina em nosso mundo. Pior ainda, como nosso atuar no mundo fazemos que essa presença divina fique ainda menos visível, menos compreensível. Nosso modo de viver como cristão deixa de clarear a presença de Deus na terra, pois o próprio Deus não se vê mais na nossa vida. Nossos ódios, injustiças, desejo pelo poder bélico e assim por diante transformaram nosso planeta em um "iceberg" rachado que desliza em caminhos perigosos. O profeta sai ao nosso encontro com sua palavra para nos alertar ou reorientar. Credencial insignificante. Por isso, a palavra profética será sempre arma de dois gumes: salvação para quem crê e pedra de precipício para quem endurece seu coração. Por isso, Isaías recebe esta missão: “... que seus olhos não vejam, que seus ouvidos não ouçam, que seu coração não compreenda” (Is 6,9-10).

Apesar da dificuldade da missão profética, Isaías se mostrou pronto para a chamada: "... aqui estou eu, envie-me". Bom exemplo para imitar, mas não para impor. Também Jeremias e Moisés, com suas objeções e reticências, eram grandes profetas, arautos da palavra profética. 

O Senhor e a Igreja (Evangelho)

Diferentemente de Marcos e Mateus, Lucas, muito mais esquemático apresenta o processo da vocação em uma cena cheia de evocações. O centro é Jesus ensinando e fazendo milagre, ambas as coisas a partir da barca de Pedro, símbolo da Igreja. É Jesus quem toma a iniciativa. Diante d´Ele, os homens, isto é, a Igreja, sempre em boca ou através da boca de Pedro, aparecem limitados: “Nada pescamos...” e pecadores: “Afasta-te de mim, Senhor”, diante da manifestação de Jesus (peca milagrosa). É a presença do Espirito de Deus n´Ele, Ungido para dar a Boa Nova aos pobres. Neste contexto, Jesus diz: “Não temas!”, e chama. 

As considerações são óbvias: uma mais teológica: Jesus se manifesta em sua Igreja, e outra, mais exigente: a missão da Igreja é, em seu contexto de limitação e de pecado, apresentar Jesus, Sua Palavra e seu Espírito libertador. 

Nossas comunidades vem se aproximando de muita gente, como a multidão se aproxima de Jesus: noivos que querem se casar, pessoas que querem batizar seus filhos, pessoas que em uma conversa informal perguntam que pensa a Igreja sobre os anticonceptivos ou o divórcio, pessoas que ligam a televisão vendo alguma manifestação cristã. Se aparecem na Igreja apenas normas, teorias, exigências, condições, abstinências, mas não a Palavra e o Espírito de Jesus, a Igreja é infiel a sua missão, e os homens não ouvem a mensagem nem a chamada de Jesus Cristo.

Deixaram tudo e seguiram a Jesus”. Jesus chama a segui-Lo. Seguir a Jesus é ao mesmo tempo, a atitude pessoal da fé e a fidelidade, e a participação em Sua comunidade (comunidade de Jesus). Ambas as coisas são essenciais e estão intimamente relacionadas. A decisão de crer em Jesus e segui-Lo leva à comunidade; e a vida comunitária é o âmbito para crescer na fé e no seguimento de Jesus. 

A dialética entre a fé viva em Jesus Cristo e a participação na comunidade constitui a grandeza da Igreja, e, ao mesmo tempo, fonte de sofrimentos. Esta dialética se pode romper. Há pessoas que fazem parte da comunidade e isso não é para elas nenhum impulso para a fidelidade. Há pessoas mais ou menos abertas ao Espírito do Evangelho, mas que a Igreja ou esta comunidade concreta lhes alheia e ficam vagando à margem sem dar o passo de seguimento. Há pessoas na comunidade que crescem na sensibilidade evangélica e justamente por isso aumentam seu olhar crítico sobre a comunidade eclesial sem encontrar uma integração fácil. Há muitas pessoas que se sentem e se dizem cristãos, mas que têm pouca ou nenhuma relação com a comunidade eclesial, talvez por uma tradição de inércia, e isso os deixa fora do alcance normal de seu crescimento no Espírito de Jesus Cristo. Estas situações suscitam o mistério de cada pessoa humana, responsável perante Deus que a chama, e ao mesmo tempo são desafios constantes à Igreja e às comunidades cristãs.

Nós e São Paulo (Segunda Leitura) 

E na Segunda Leitura, como Isaías, também Paulo se sente indigno da vocação recebida. Confessa considerar-se um “aborto”, isto é, um ser imperfeito, nascido de forma anormal; reconhece não merecer sequer o nome do Apóstolo. O nascimento de Paulo para Cristo não foi normal. Deus o fez nascer de maneira forçada. Paulo foi arrancado de dentro de seu mundo, como se arranca uma criança do seio da mãe por meio de uma operação. 

A partir dessa experiência, Paulo não consegue confiar naquilo que ele fez por Deus, mas só naquilo que Deus fez por ele. Já não coloca sua segurança na observância da Lei, mas sim no amor de Deus por ele (Gl 2,20s; Rm 3,21-26).

Essa experiência chama-se Gratuidade. Essa experiência da gratuidade do amor de Deus vai dar rumo à vida de Paulo e vai sustentá-lo nas coisas que virão. Essa experiência é a nova fonte da sua espiritualidade que faz brotar nele uma “poderosa energia” (Cl 1,29), energia muito mais forte e muito mais exigente do que a sua vontade anterior de praticar a Lei e de conquistar a justificação. Essa experiência levou Paulo a desocupar o barraco da sua vida para deixar Jesus entrar nela.  Ele cresce tanto no amor de Cristo, a ponto de dizer: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Essa “desapropriação” de si mesmo, porém, não lhe tira a liberdade. Pelo contrário, ele diz: “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1;2,4). A experiência da gratuidade do amor de Deus faz Paulo suportar lutas e perseguições, viagens e canseira, o peso do dia-a-dia (2Cor 11,23-27); sofrer com aqueles que sofrem (2Cor 11,29). Essa experiência mudou os olhos de Paulo e o ajudou a descobrir novos valores que antes não via. 

A segunda leitura quer nos recordar que o conteúdo principal de toda pregação cristã e de todas as ações litúrgicas, de todos os sacramentos é o Mistério Pascal: Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor. Por isso, a missa em si é uma celebração deste mistério. Sem este mistério tudo ficaria sem sentido na Igreja. "O que vos transmiti, em primeiro lugar, foi aquilo que eu mesmo tinha recebido, a saber: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que, ao terceiro dia, ressuscitou, segundo as Escrituras".

Nós e São Pedro

O Evangelho nos apresenta diversas cenas nas quais são protagonistas Jesus e um grupo de pescadores, que estão lavando as redes depois de seu esforço e fracasso noturno, sem ter pescado nada. Jesus lhes pede que novamente entrem no mar, aceitando o risco de continuar em um trabalho que até agora ficou sem fruto. Pedro, confia na palavra do Mestre, volta a jogar as redes, e o resultado é inesperado e maravilhoso.          

Jesus não ensina mais na sinagoga, como fez até agora, mas proclama a Palavra de Deus no ar livre. Se na sinagoga os leprosos e outros doentes graves não podem entrar, aqui, no ar livre, eles podem escutar a Palavra de Deus. Neste lugar eles podem encontrar-se com Deus. E certamente Deus quer encontrar as pessoas no seu próprio lugar, ali onde se encontram, numa situação comum, honesta ou honraria ou numa situação desonrada e moralmente difícil. Jesus vai de um ao outro e os chama, porque ele quer libertá-los pois ele os ama.          

Além disso, o anúncio da Palavra de Deus, conforme o Evangelho deste domingo, não acontece no contexto da liturgia do Sábado, mas no decurso de um dia da semana, quando os homens se dedicam ao próprio trabalho, quando estão suando para ganhar o próprio sustento. Isto significa que a Palavra de Deus não pode ser circunscrita aos ambientes e lugares sagrados. Ela deve ser proclamada em todos os lugares, mesmo os que consideramos profanos, pois a Palavra de Deus ilumina, inspira, transforma e orienta todas as atividades humanas.          

O relato é dividido em três partes/cenas. Na primeira parte/cena (vv.1-3), o Cristo, como Mestre, ensina às multidões, ao Povo de Deus reunido ao seu redor. O povo está sedento da Palavra de Deus. Tanto que se aperta ao redor de Jesus para ouvir a palavra que traz nova compreensão e gera uma nova ação. Jesus se dirige aos homens não na sinagoga, como anteriormente, mas à multidão ao ar livre. Espremido pela multidão, pede a Simão que lhe permita subir no seu barco para dali falar ao povo reunido na beira do lago. Jesus quis servir-se do barco de Pedro como cátedra. No momento, o importante, para Pedro é escutar o Mestre com os outros. Certamente, o fundamento de todo apostolado é “a fé que nasce daquilo que se ouve” (Rm 10,17). Escutar é abrir-se a alguma coisa que vem de fora, algo que pode, inicialmente, parecer estranho ou perturbar nossa maneira de pensar, mas, ao longo prazo, provocar mudanças radicais. Por isso, uma verdadeira escuta exige humilde coragem. Precisamos escutar a Palavra de Deus, pois ela é mais do que a expressão de um pensamento ou de um sentimento; ela é Vida. A Palavra de Deus é sopro de vida (cf. Sl 32,6). Ela tem o poder de tocar os corações e de curar (cf. Lc 4,32;6,19).          

Na segunda cena (vv. 4-10a), é narrada a história da pesca milagrosa, ressaltando o papel de Jesus e o dos pescadores. Pedro que é especialista na pescaria se torna um pescador frustrado pelo insucesso da noite inteira. Por isso, quando Jesus, que não é pescador, lhe disse: “Avança para águas mais profundas e lança redes para a pesca” (v.4) veio aquela resposta de desconfiança da parte de Pedro: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos” (v.5). 

Aqui podemos também citar muitas das nossas situações de cada dia: cansei-me muito, gastei muita energia e tempo, empenhei-me a fundo, rezei muito, mas não aconteceu nada. É aquela sensação de derrotismo, de desânimo, de desespero.          

Eis o momento delicado no qual Pedro põe em jogo a própria pessoa, a própria vida e o próprio futuro. Ele e seus companheiros haviam trabalhado a noite inteira sem conseguir apanhar um só peixe e agora, em pleno dia, Jesus manda-lhes que lancem as redes para a pesca. Eles conhecem Jesus, mas como Mestre. Por isso, apesar de todas as objeções que um profissional poderia levantar contra ela, a palavra de Jesus tem mais força para Simão do que sua longa experiência de pescador. Pedro tenta superar a própria desconfiança. A palavra de Deus é poderosa, mas é preciso que seja posta em prática para que desenvolva sua força. E Pedro cumpre a palavra de Jesus imediatamente: “Na tua palavra lançarei a rede” (v.5). Notemos quanto há de profundo neste “na tua palavra” porque é a expressão que, na Bíblia, especialmente nos Salmos, designa a atitude do homem diante de Deus. “Confio na Tua Palavra, é Tua Palavra que me dá vida, Senhor; Tu me afligiste. Tu permitiste tantos sofrimentos na minha vida, mas na Tua Palavra confio. Certamente, na força da Palavra de Deus, os apóstolos encontram a vida ali onde tudo parecia morto; messe abundante onde tudo parecia vazio; abertura onde tudo parecia fechado.          

Aqui Pedro deixa de ser o pequeno episódio privado e passa a ser a figura do homem que se compromete também nas coisas pequenas e simples, mas que exigem certa decisão e certa coragem. Sai dos cálculos e se atira, confiando na Palavra do Senhor. De fato, à fé, à obediência incondicional de Simão segue-se o milagre, a manifestação do poder da Palavra criadora de Deus. O poder da Palavra de Deus manifestada em Jesus domina toda esta cena. Toda força, todo poder vem de Deus. Nesta perspectiva devemos situar-nos para compreender o que segue. Mas antes disso, vamos tirar alguma lição.          

Jesus nunca permite o aborrecimento pelo insucesso no nosso trabalho. Não cabe a cada um de nós calcular o último resultado. Cada um deve trabalhar, empenhar-se todo, confiando unicamente na Palavra do Senhor. Empenhar-se significa dar tudo, experimentar tudo, estudar, corrigir, mudar e recomeçar. A eficácia de nossa ação está na obediência à Palavra de Deus. Se agirmos em nome próprio, nossos esforços serão estéreis. A Palavra de Deus é a semente que tem em si uma força criadora, uma potência enorme. Então, por que ainda duvidamos dela? Por que não levamos a sério a Palavra de Deus? Por que não a lemos? Com Deus podemos pescar onde parece que não há peixe, podemos plantar justiça ou amor onde outros dizem que não adianta tentar, podemos levar fraternidade onde parece que a competição é a única lei que funciona.          

Na terceira cena (vv.10b-11), o momento culminante do relato, é descrita a reação de Simão Pedro e dos seus companheiros diante do poder de Deus que se manifesta em Jesus, assim como a promessa- vocação- missão que Jesus dá a Simão Pedro e a seus companheiros. Nesta cena, a figura de Pedro é ainda mais destacada.          

Vendo a pesca milagrosa, Pedro descobre a manifestação do poder de Deus em Jesus e se lança aos pés dele, dizendo: “Afasta-te de mim, Senhor, pois sou um pecador” (v.8). Ele não chama mais Jesus de “Mestre”, mas de “Senhor”. O poder de Jesus faz sobressair a pecaminosidade de Pedro: Pedro não estava entre os maiores pecadores, mas também ele era um homem que, colocado diante do poder, da santidade de Deus, sentia que muitas coisas de sua vida não funcionavam. Com clarividência instantânea, Pedro percebe a distância, a seus olhos intransponível, entre seu pecado e a santidade de Deus, entre seu pequenez e fragilidade e a grandeza e poder de Deus. Pedro sente com uma clareza insuportável que não há lugar para ele, pecador, na presença do Deus santo. Esta experiência da sua indignidade diante da manifestação de Deus é o que causa em Pedro e em seus companheiros o “tremendo espanto” de que nos fala o texto.         

O tremendo espanto que toma conta deles não os cega, porém, os ilumina para ver, para compreender e para re-conhecer que a ação de Deus pode irromper em qualquer momento e no meio de qualquer atividade da vida dos homens.          

Até aqui podemos também tirar alguma lição. Enquanto vivemos no meio dos outros homens, fracos e frágeis como nós, não nos damos conta do nosso pecado; aliás, comparando-nos com os que estão ao nosso lado, podemos até pensar que somos justos, honestos, sinceros, caridosos, misericordiosos e irrepreensíveis. Mas ao entrarmos em contato com Deus, as coisas mudam: constatamos de forma dramática a nossa pobreza, a nossa indignidade, a nossa miséria. Só quem fica perto de uma luz percebe a sujeira da própria roupa. Se ficar longe dela, quase não percebe nada, imagine sem luz. Esta experiência é vivida por todos aqueles que entram em contato com a Palavra de Deus, aquela palavra que é “viva e eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes” (Hb 4,12). É a experiência vivida por Paulo, quando toma consciência da própria indignidade de pregador do Evangelho: “Nós carregamos este tesouro em vasos de barro” (2Cor 4,7).          

Na resposta de Jesus manifesta-se toda a novidade do NT. A graça, o amor, a benevolência, a predileção e a eleição de Deus não vão, em primeiro lugar, ao encontro do justo, do rico, do sadio e do forte, mas vão ao encontro do pecador, do pobre, do enfermo e do fraco. A vocação de Pedro repousam não nas suas qualidades e méritos, mas na gratuidade do amor, da eleição e da promessa de Jesus para com ele.          

A palavra de Deus manifesta-se em Jesus Cristo como uma palavra que pacifica, que infunde ânimo, que dá segurança; como uma palavra que escolhe, que chama, que fortalece e que transforma a existência daquele que é chamado. A palavra de Jesus vai superar a distância: “Não temas!” São mesmas palavras que ecoam nas manifestações de Deus no AT (cf. Gn 15,1;21,17; 26,24;28,13; Jz 6,23; 1Sm 4,20).          

Às palavras de pacificação, de segurança e de coragem, seguem-se as da promessa- missão: “Doravante serás pescador de homens”. A palavra de Jesus tem esse poder de fazer começar uma história nova na vida de um homem.          

A nova missão de Pedro e de seus companheiros será a de “salvar vidas”: entrar mar adentro para tirar os homens das águas profundas, do abismo da morte; “pegar vivos ou para a vida” os homens, assim como eles mesmos foram colhidos- escolhidos. O centro da pregação será sempre a ressurreição, o Senhor ressuscitado e nossa futura ressurreição (Segunda Leitura).          

A resposta de Pedro e de seus companheiros às palavras de Jesus foi a disponibilidade absoluta, a da obediência incondicional: “...e deixando tudo, eles o seguiram” (v.11). A renúncia, o “deixar tudo”, é uma consequência, e não uma condição prévia, do chamamento de Jesus. A vocação é a vocação para uma missão.          

Devemos, por acaso, desistir? Devemos recusar o convite do Senhor para ser pescadores de homens, para espalhar a Palavra do Senhor? Temos convicção de que a única força que possuímos é a da Palavra de Deus que nos foi confiada? Não nos sentimos, por vezes, inclinados a confiar em outras forças?

P. Vitus Gustama,SVD


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