terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

II Domingo Da Quaresma, 05/03/2023

TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR

É PRECISO ESCUTAR A PALAVRA DE DEUS PARA SER TRANSFIGURADO

II DOMINGO DA QUARESMA ANO A

I Leitura: Gn 12,1-4a

1Naqueles dias, o Senhor disse a Abrão: “Sai da tua terra, da tua família e da casa do teu pai, e vai para a terra que eu te vou mostrar. 2Farei de ti um grande povo e te abençoarei; engrandecerei o teu nome, de modo que ele se torne uma bênção. 3Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão abençoadas todas as famílias da terra!”. 4aE Abrão partiu, como o Senhor lhe havia dito.

Segunda Leitura: 2Tm 1,8b-10

Caríssimo: 8bSofre comigo pelo Evangelho, fortificado pelo poder de Deus. 9Deus nos salvou e nos chamou com uma vocação santa, não devido às nossas obras, mas em virtude do seu desígnio e da sua graça, que nos foi dada em Cristo Jesus, desde toda a eternidade. 10Esta graça foi revelada agora, pela manifestação de nosso Salvador, Jesus Cristo. Ele não só destruiu a morte, como também fez brilhar a vida e a imortalidade por meio do Evangelho.

Evangelho: Mt 17,1-9

Naquele tempo, 1Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. 2E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz. 3Nisto apareceram-lhe Moisés e Elias, conversando com Jesus. 4Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. 5Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!” 6Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra. 7Jesus se aproximou, tocou neles e disse: “Levantai-vos e não tenhais medo”. 8Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus. 9Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes: “Não conteis a ninguém esta visão até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos”.

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Sentido Global Da Transfiguração

O Segundo Domingo da Quaresma não é a festa da Transfiguração do Senhor (6 de Agosto: A festa da Transfiguração), mas este mistério está intimamente vinculado na liturgia romana a esta etapa do itinerário para a Páscoa a partir da formação desta preparação de quarenta dias.

O conjunto das leituras deste Domingo do Ciclo A (São Mateus) se apresenta como explicação de um duplo itinerário: o itinerário do homem para Deus e o itinerário de Deus para o homem. Neste itinerário resulta na salvação do homem. No entanto, a iniciativa em ambos os itinerários, pertence a Deus: Deus é quem chama o homem: Abraão (Primeira Leitura) e nos chama a seguir a Jesus (Segunda Leitura), com uma vocação santa para uma benção misteriosa. Agora, na transfiguração, é Deus Quem apresenta, aos homens, Jesus Cristo, Seu Filho, o Amado, Seu Predileto, para que O escutem e O sigam, e sejam assim participantes de Sua glória. Jesus é o novo Moisés que dá a palavra definitivo razão pela qual os cristãos devem escutar a Jesus e sua palavra. Neste evangelho (Mateus) encontramos duas vezes o Pai fala e proclama Jesus como Filho amado (Deus é amor): Primeiro, o Deus Pai fala de Jesus no Batismo (Mt 3,17); Segundo, o Pai fala de Jesus na Transfiguração (Mt 17,5) depois do anúncio de sua morte e ressurreição (Mt 16,21). A transfiguração é a confirmação do caminho que se iniciou no Batismo. Dentro do contexto da caminhada pascal, a tranfiguração é a antecipação da glória da Páscoa ou seja, a Páscoa antecipada. Por isso, a cruz não é o fim, pois ela termina na glória da ressurreição, fruto da fidelidade de Jesus ao Pai que quer nos salvar. Na caminhada ou no itinerário com Jesus, a cruz ou as cruzes são inevitáveis, porém tudo terminará na ressurreição ou na vida gloriosa (cfr. Rm 8,28-39).

O Salmo Responsorial (Sl 32/33) é uma súplica serena que contempla ambos os aspectos do itinerário: o amor de Deus que acompanha o homem em seu itinerário de busca, e a ação de Deus para o homem, libertando-o da morte, fundamento de nossa esperança: “O Senhor pousa o olhar sobre os que o temem, e que confiam esperando em seu amor, para da morte libertar as suas vidas e alimentá-los quando é tempo de penúria. No Senhor nós esperamos confiantes, porque ele é nosso auxílio e proteção! Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça, da mesma forma que em vós nós esperamos!”. 

No contexto quaresmal, o itinerário do homem sublinha a continuidade com o tema do Domingo anterior: ao superar as tentações, como Jesus, estamos, na verdade caminhando para a Páscoa; estamos no “tempo”, especialmente dedicado a refazer ou renovar nossa vida cristã. O itinerário de Deus para o homem sublinha a condição salvífica do mistério pascal: o Senhor veio para nos salvar por amor (cf. Jo 3,16).

O prefácio da missa é o da própria Transfiguração. O prefácio sublinha duas questões: por um lado, a revelação da glória de Jesus como chave de compreensão de sua morte. Por outro lado, o caráter pascal, isto é, transitivo, do mistério da salvação. A Páscoa é a passagem da morte para a vida gloriosa. Além disso, ambas são enquadradas no testemunho do Antigo testamento (Moisés e Elias), e destinadas aos discípulos.

Diante da Transfiguração, os discípulos experimentam e contemplam algo da realidade profunda de Jesus: sua glória, seu esplendor, “o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz”. Por isso, Jesus não é simplesmente um homem como os demais; Ele é o Filho de Deus a Quem há que escutar, porque o Pai O enviou para nos revelar que nos ama. Se somente fosse um homem, sua mensagem acabaria com uma morte injusta. Mas porque é o Filho de Deus, esta morte é o ato supremo de fidelidade ao Pai, a explosão do amor divino-humano que salva os homens. 

A Eucaristia deste Domingo constitui uma oportunidade para entrar a fundo em tudo o que significa a Transfiguração no caminho quaresmal de renovação cristã: lugar privilegiado para ESCUTAR o Filho de Deus, Jesus Cristo, Palavra do Pai, e para a tomada de consciência na fé de nossa condição de filhos de Deus por vocação santa, entrada real na participação da ressurreição de Cristo pela participação de Seu Corpo glorioso.

Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!”. Escutar é uma das palavras-chaves do evangelho de hoje. Para chegar à transfiguração de nossa vida é necessário escutarmos tudo o que Jesus fala. Na escuta à Palavra de Jesus se encontra a semente de nossa transfiguração gloriosa. Quem escuta a Jesus se torna como Ele, pois Jesus é a própria Palavra de Deus, o Verbo Divino que se encarnou entre nós (Jo 1,1-3.14). A nossa transfiguração começa a partir do momento em que começarmos a escutar Jesus. Quando começarmos a escutar Jesus e pensarmos n´Ele, deixaremos de escutar a nós mesmos e deixaremos de pensar em nós mesmos. O fruto dessa escuta são as obras boas que praticamos diariamente. Toda obra boa se relaciona ao Espírito de Deus. As obras boas são frutos do Espírito Santo (cf. Gl 5,19-22). 

Escutar é uma das atitudes mais cristãs. Somente os que têm a humildade é que são capazes de escutar. Deus sempre quer falar conosco e sobre nós, de várias maneiras, mas é preciso ter disposição para escutá-Lo. Deus sempre tem alguma palavra para minha vida, para minha família, para meu casamento, para minha profissão, para minha atual situação etc. toda vez que eu escutar sua Palavra. Por isso, eu preciso escutar essa Palavra, pois diz a respeito da minha vida com seus problemas. Além disso, na vida cotidiana, quando você fala, você transmite ao outro o que você já sabe. Mas quando você escuta, geralmente você vai saber algo novo que o outro vai lhe transmitir. Daí a importância da escuta se quisermos escrecer e avançar na vida. 

Nesta transfiguração Deus revela às colunas da Igreja (Pedro, Tiago e João), semente da futura comunidade, o significado da pessoa de Jesus como nova lei e chama-os a seguir a voz de Jesus. Como um novo Sinai, a lei personificada na pessoa de Moisés e os profetas na de Elias, dão lugar à Palavra Encarnada de Deus que será o caminho definitivo, verdadeiro e vivo. A voz chama a seu seguimento: "Escutai-o!". A vontade de Deus não está mais na Lei de Moisés, mas na pessoa de Jesus (tanto Moisés como Elias desapareceram em seguida e ficou apenas Jesus a quem os discípulos devem escutar como ordem de Deus). É por isso que o pregador do Pai se torna objeto da pregação dos discípulos. 

Como no caso de Abraão, o chamado de Deus para sair de si mesmo e seguir Jesus não é respondido de forma meramente intelectual ou afetiva, mas exige também ordenar a própria vida segundo o Mestre Jesus. A conversão e o seguimento se expressam no engajamento. O discípulo e a comunidade serão guiados nesta direção pelo espírito de Jesus que possuem tanto nos momentos de cruz como nos da glória. 

Estendamos Um Pouco Mais Nossa Reflexão Sobre O Texto Do Evangelho De Hoje Que Nos Fala Da Transfiguração De Jesus Cristo!

Os três evangelhos sinóticos (Mc, Mt, Lc) narram o episódio da transfiguração de Jesus com algumas diferenças (cf. Mc 9,2-13; Lc 9,28-36). Os três colocam esse episódio logo depois da confissão da fé de Pedro, do primeiro anúncio da paixão de Jesus, e das condições para seguir a Jesus (cf. Mt 16,13-28; Mc 8,27-38; Lc 9,18-27). Mt segue a linha narrativa de Mc, enquanto Lc segue uma tradição própria.          

A transfiguração é, literalmente, uma teofania, uma manifestação de Deus. No At encontram-se várias manifestações de Deus. A maioria é sempre acompanhada pelos mesmos elementos comuns como: Acontece num monte ou lugar sagrado; Nessa manifestação acontecem fenômenos extraordinários (aparição, voz do céu, etc.) que provocam medo ou perturbação naquele(s) que presencia(m) o fato. A transfiguração de Jesus segue o mesmo esquema do AT. 

Para entender o seu sentido, temos que ler o relato da transfiguração de Jesus junto ao capítulo anterior (Mt 16,13-28). Efetivamente é outra face do mistério de Cristo: a cruz e a glória. Através da Transfiguração, Jesus apresenta aos discípulos as duas faces do mistério da salvação que se realiza nele: a face tenebrosa (o sofrimento, a humilhação e a morte) e a face gloriosa (a ressurreição e a glória). Por isso, cada um dos três anúncios da Paixão acrescenta o anúncio da ressurreição “ao terceiro dia” (Mt 16,21;17,22;20,19). Os discípulos só olham para o sofrimento e a paixão e não para a ressurreição. A subida para Jerusalém, que para Jesus é o caminho necessário para chegar à glória, para os discípulos é o caminho para a morte. Os discípulos só superarão o escândalo da “necessidade” da Paixão depois da Páscoa e de Pentecostes: depois de verem Jesus na sua glória de ressuscitado e de serem fortalecidos pelo Espírito Santo. 

Jesus quer dizer aos discípulos que não podem ter medo da cruz, das dificuldades, das críticas em nome do bem praticado, em nome da salvação de todos, pois atrás da cruz há ressurreição, atrás da morte há o Espirito de Deus que vivifica. 

Lendo os dois capítulos juntos (Mt 16,13-28 e Mt 17,1-13) nos damos conta de que se convocam em torno do mistério de Jesus todos os principais personagens em ordem crescente: a multidão (Mt 16,13), os discípulos (Mt 16,16), Jesus (Mt 16,21) e a Voz celeste (Mt 17,5). E cada um expressa sua opinião: um profeta (opinião da multidão), o Filho de Deus vivo (profissão de Pedro), o Filho do Homem que deve sofrer muito (o próprio Jesus afirma), o Filho amado (afirmação da Voz celeste). 

Como em Marcos, também para Mateus a transfiguração cumpre uma função bem precisa na progressiva revelação do mistério de Cristo e no itinerário da fé dos discípulos. Os discípulos já compreenderam que Jesus é o Messias, o Ungido de Deus, o Filho do Deus vivo e são persuadidos de que seu caminho conduz à cruz. Porém, eles não conseguem compreender que a Cruz de Jesus (e a cruz deles) pode encobrir a glória. Por isso, Deus lhes concede, por instante, antecipar a Páscoa-Ressurreição, a Vida gloriosa. Mas trata-se de uma antecipação fugaz e provisional, pois o caminho que há que percorrer continua sendo o da cruz. Por isso, é preciso descer da montanha gloriosa para continuar a missão de salvar os outros homens para que um dia experimentem a vida gloriosa. 

De fato, os três discípulos prediletos (Pedro, Tiago e João), chamados a presenciar, por antecipação, a glória de Cristo são os mesmos que dentro de algum tempo em Getsêmani, serão chamados a presenciar a aparente debilidade de Cristo. Tudo isso é muito importante. No entanto, temos a impressão de que não é o ponto central. O ponto central se encontra nas palavras da Voz celeste: “Este é meu Filho amado” e no mandato: “Escutai-O!”. Todo o resto serve de algum modo para entender este ponto central. De fato, a escuta é o que define o discípulo. 

A Palavra de Deus que devemos escutar e viver se manifesta nas palavras e na existência de Jesus que vai percorrer o caminho da cruz. Trata-se de uma palavra que nos transmite ou conta quem é Deus, quem somos nós e qual é o sentido da história que vivemos. Portanto, é uma palavra que indica o que devemos fazer e a regra a seguir para chegar à glória celeste (ressurreição). Tudo isso se alcança através da escuta da Palavra de Deus com o coração atento, e vive-la com obediência e conversão. 

O episódio da transfiguração confirma a autoridade de Jesus Cristo: Ele é lei e norma para todos os cristãos, e por isso, é preciso escutá-Lo: “Escutai- O!”. 

Portanto, a transfiguração de Jesus é uma resposta de Deus ao escândalo causados nos discípulos pelo anúncio da paixão e pelas exigências do seguimento. A transfiguração tem como objetivo fortalecer a fé dos discípulos, mostrando-lhes antecipadamente, mesmo sendo num instante só, a glória do Filho de Deus e a glória futura dos que seguem a Jesus até o fim. A transfiguração é uma palavra de ânimo, pois nela se manifesta a glória de Jesus e se antecipa sua vitória sobre a cruz, como mostram as numerosas referências à ressurreição: as roupas ficaram brancas como a luz, as mesmas que os anjos usam quando eles anunciarão a ressurreição de Jesus (Mt 28,3). 

Outras Mensagens Do Relato Da Transfiguração 

1. A Transfiguração Acontece Numa Montanha          

A transfiguração ocorre numa montanha. A montanha é um lugar de silêncio. Certamente, quando o homem se calar (entrar em silêncio), Deus começará a falar ou começará a fazer-se escutar. Depois de fazer-se silêncio, escuta-se melhor. O silêncio supõe o vazio e o vazio possibilita a ressonância à palavra dita por outrem.          

No AT “o monte” (montanha) dá o sentido da proximidade de Deus e é o “lugar” que Deus escolhe para se manifestar.  Os evangelista falam de um monte, mas sem nenhuma localização precisa (exata), pois eles não pretendem falar de monte real, mas antes do lugar da presença e da ação divinas. O monte denota a esfera divina em contato com a história humana. Por isso, no “monte” se realizam ações de grande significado, que estão em ligação com a esfera divina (o decálogo, o Sermão da Montanha etc...). Para Mt a montanha é um dos seus símbolos favoritos. Ela é o “lugar” do encontro com Deus, lugar da revelação. Sobre uma montanha é que Jesus proclama as bem-aventuranças e todo o Sermão da montanha (Mt 5-7). Num monte na Galileia Jesus marca o último encontro com os seus discípulos antes da ascensão (Mt 28,16). E Jesus leva consigo o grupo especial dos três: Pedro, Tiago e João (compare com Ex 24,1) para a montanha. 

2. A Transfiguração Aconteceu “De Pois De Seis Dias”          

A transfiguração acontece “depois de seis dias” (v. 1). Há várias interpretações a respeito: seis dias é o tempo que se conta entre a confissão de Pedro até a transfiguração (John P. Meier e outros). Segundo P. Bonnard, (cf. Evangelio Segun San Mateo, Madrid,1983), “seis dias” é uma alusão aos seis dias que separam o grande dia da Expiação do começo da festa dos Tabernáculos (cf. Lv 23,27.34). Por isso, mais adiante Mt usa a palavra “tenda” no desejo de Pedro em fazer três tendas para os três personagens (Mt 17,4b). Os outros especialistas dizem que o sexto dia foi o dia da criação do homem, coroamento de toda a obra da criação. E o estado de glória, em que se vai mostrar Jesus, representa o êxodo final da criação, a realização plena do projeto de Deus sobre o homem. Santo Irineu costumava dizer que, logo depois de Deus ter pronunciado sua palavra na pessoa de Jesus, silenciou-se perenemente. Isto quer dizer que em Jesus Cristo aconteceu a expressão total e definitiva de Deus. Por isso, o modo como entendermos o homem, a partir de Jesus, realização plena do projeto de Deus, será o modo como nos entendermos a nós mesmos. A vocação e o destino do homem é realizar aquilo que Deus sonha para ele desde antes mesmo da criação do mundo. A vocação é um chamado permanente para que o homem seja livre interna e externamente. Deus sonha com o homem vivo e livre, pois ele foi criado para viver em liberdade. Por isso, escravizar o homem significa atingir a Deus em seu ponto mais sensível. O destino terreno do homem é conviver e compartilhar a vida com Deus e caminhar juntos para que o homem possa chegar à sua plena realização. 

3. Na Montanha Jesus Foi Transfigurado Diante Dos Três Discípulos         

Jesus costuma retirar-se a só para rezar. Desta vez, ele leva consigo três dos seus discípulos: Pedro, Tiago e João. Os três foram testemunhas da ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,37). Os três vão ser também as testemunhas da agonia de Jesus no Getsêmani (Mt 26,36-46). E nesta transfiguração os três são as testemunhas do episódio. 

Ficamos perguntando, por que somente os três? É um privilégio? É um mistério da escolha de Deus? Sabemos apenas o significado do número três: o três indica o completo e o definitivo. Quem sabe os três representam bem o conjunto dos discípulos de Jesus por este significado. Quem sabe o texto quer nos dizer que realmente, por completo Jesus é o Senhor, o Glorioso.          

Na transfiguração a aparência de Jesus se transformou. A verdadeira essência de Jesus se faz visível na transfiguração aos três discípulos escolhidos. O texto diz: “Jesus foi transfigurado”.  O uso da voz passiva” foi transfigurado” indica que se trata de uma ação de Deus. Por isso, se chama o passivo divino (passivum divinum) que indica veladamente uma ação de Deus. O rosto e as roupas radiantes mostram que Jesus pertence ao mundo celeste ou ao mundo divino, o mundo da luz (cf. Mt 13,43;28,3).          

O texto diz: “Ele foi transfigurado diante deles” (v.2a). Jesus não se transfigura diante de qualquer um, mas somente diante de alguns, diante daqueles que deixaram tudo: parentes, amigos, trabalho etc., e aceitaram seu convite de subir ao “monte da transfiguração”: Pedro, Tiago e João. Por sua fidelidade, os tres discípulos serão tanto as testemunhas da glória de Jesus (Mt 17,1; Mc 9,2; Lc 9,28), como de sua agonia, e de fato, serão vistos em Getsêmani (Mc 14,33-42). Jesus se transfigura diante daqueles e naqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus. Em Jesus transfigurado, em quem acreditamos e depositamos toda a nossa esperança e em quem encontramos toda a nossa certeza contemplamos também todo o nosso futuro glorioso que já começou nesta terra a partir do momento em que acreditamos em Jesus Cristo e vivemos os seus ensinamentos. 

Os três discípulos experimentaram o momento da transfiguração. A luz do transfigurado brilhou até eles a ponto de poder vê-la. Quem realiza em sua vida as obras de Jesus torna visível a presença de Deus-Pai (Mt 5,16). De fato, conhecemos muitas pessoas que não perdem jamais o irresistível poder de manifestar algo de Deus. Essas pessoas vivem de tal modo que são capazes de nos levar até Deus, pois percebemos que possuem, de certo modo, a experiência da “montanha”, da transfiguração com Jesus.          

O texto também nos diz que “O seu rosto resplandece como o sol e as suas vestes tornaram-se alvas como a luz” (v.2b). Nesta descrição a luz não se projeta de fora sobre Jesus, mas provém de seu interior. Seu rosto não está simplesmente “iluminado”, mas “brilha”. Na transfiguração, a luz, que simboliza a presença divina, não vem de fora nem paira “sobre” Jesus. Essa luz sai “de dentro dele”, emana dele próprio, porque lhe pertence substancialmente. Jesus brilha com a luz própria, não refletida, pois Ele é a própria Luz do mundo (Jo 8,12). A fonte desse esplendor é a glória de Deus que faz brilhar a carne de Jesus. A glória que brilha na carne de Jesus revela que Jesus é “o esplendor da glória de Deus, a expressão do seu ser” (Hb 1,3). Este é o ser profundo de Jesus, o estado natural da pessoa de Jesus. Ele é Deus mesmo (cf. Jo 1,1.14). Mas quando ele se esvaziou a si mesmo (cf. Fl 2,6-7), quando ele “se fez carne e acampou no meio de nós” (Jo 1,14), o Messias Jesus passou a ser visto pelos homens como um homem entre tantos. Mas muitos homens não o conhecem: “No meio de vós, está alguém que não conheceis” (Jo 1,26b). “Veio para o que era seu e os seus não o receberam” (Jo 1,11). 

4. Aparecimento De Moisés E Elias Na Transfiguração, O Pedido De Pedro E O Mandato Para Escutar          

Os três discípulos presentes à cena, veem também dois personagens do AT em diálogo com Jesus. Moisés personifica aqui a lei, e Elias, os profetas. É uma forma de dizer que os dois representam todo o AT. Os dois tiveram no monte Sinai e Horeb, respectivamente, revelações divinas (cf. Ex 19,33s;1Rs 19,9-13). No Judaísmo acredita-se que os dois já foram levados ao céu; e um ou ambos eram esperados sua volta nos último dias. Esses dias, o tempo de cumprimento, já chegou com a chegada de Jesus, o Messias esperado.          

Nesse acontecimento, Pedro se dirige a Jesus e o chama não como “Rabbi” em Marcos (sinal de incredulidade, cf. Mc 9,5), mas simplesmente como “Senhor”, modo de um crente se dirigir a Deus (v.4). Pedro é pessoa super confidente de Jesus diz-lhe, de maneira educada (“se queres”) que é bom, “nós” que estamos aqui, atendermos suas necessidades. O próprio Pedro construirá (não os três discípulos como em Marcos, cf. Mc 9,5) para o trio do céu (Jesus, Moisés e Elias). Mateus não fala, explicitamente, da falta de compreensão de Pedro, como em Marcos (cf. Mc 9,6). Mas implicitamente o seu pedido manifesta sua total incompreensão daquilo que está ocorrendo. A proposta de Pedro de fazer três tendas é uma nova tentativa de Pedro de deter Jesus em seu caminho rumo à Paixão. É quase uma réplica daquilo que ele disse logo depois de sua profissão de fé em Jesus como o Messias (cf. Mt 16,22). O desejo de Pedro de fazer uma tenda para cada um dos três personagens demonstra também a sua falta de compreensão do fato ocorrido. Pedro quer colocá-los no mesmo plano. Ele desconhece a infinita distância existente entre Jesus, Messias e outros dois personagens do AT.          

Por isso, enquanto Pedro está falando, a revelação atinge seu clímax quando uma nuvem radiante, símbolo da presença de Deus, desce e encobre a cena. A nuvem que havia descido outrora sobre o monte Sinai (Ex 24,15s), sobre a Tenda da Reunião (Ex 40,34-35), e sobre o Templo de Salomão (1Rs 8,10-12), volta a descer agora sobre Jesus (cf. 2Pd 1,18). O céu e a terra, Deus e os homens se encontram e se unem em Jesus Cristo. Esta mesma nuvem envolve também os três discípulos para dizer que daqui em diante eles fazem parte da comunidade de Jesus e por isso tomarão parte do destino de Jesus: o sofrimento e a glória. Mas para que tudo isto possa se tornar realidade, só tem uma condição: Escutar sempre Jesus. Um elemento ausente na revelação batismal é a ordem: “Escutai-O!” Escutai- O, não somente quando ele confirma a alegre revelação do Messias glorioso e Filho de Deus, mas também quando ele acrescenta a revelação do sofrimento do Filho do Homem. Escutai- O quando desce da montanha.

A voz não diz: “Escutai-os!” (plural), mas “Escutai-O!” (em singular). Cristo tomou o lugar da lei e o profeta (AT). Não é por acaso que logo depois Jesus se encontra sozinho diante dos discípulos. Agora em diante ele é a nova lei. É ele, em tudo o que diz e faz, a expressão definitiva e completa da vontade do Pai. É ele o profeta futuro anunciado pelo próprio Moisés, ordenando que fosse escutado (cf. Dt 18,15). Por isso, a frase “Escutai- O” tem um peso para Mt. Mt preocupava-se muito com a percepção da autoridade de Jesus e os problemas que a cercavam. 

6. Jesus Quer Nos Tocar Para Nos Levantar De Nossas “Enfermidades” ou Debilidades           

Quando ouvem a voz anunciando o mistério total do Filho, muito assustados, os discípulos caem com o rosto em terra. “Cair por terra” é a fraseologia usada em alguns textos bíblicos para descrever a reação humana diante da manifestação divina (Ez 1,28; cf. 43,3;44,4). Esta é a reação comum de homem fraco e mortal diante de uma visão apocalíptica (Dn 8,17;10,9-11; At 9,4;Ap 1,17). Os discípulos reagem da mesma maneira: caem com o rosto no chão.                 

Mas “Jesus chegou perto deles e tocando-os, disse: ‘Levantai-vos e não tenhais medo” (v.7). O homem que cai na vida por suas “enfermidades” ou debilidades somente Deus pode levantá-lo. Esse Deus que Jesus revelou é o Deus que sempre chega perto para nos tocar. Somente Deus pode libertar o homem de seus medos, de suas debilidade e fraquezas. Jesus, encarnação de Deus na terra que acabou de se revelar aos discípulos na sua glória, põe sua mão no ombro de cada um deles e com sua voz inconfundível os chamou: “Levantai-vos e não tenhais medo!” O Filho do Deus vivo, que dá vida ao morto, levanta seus prostrados discípulos e liberta-os de medo.   

É esta mesma mão que se estende para tocar e curar o leproso: “Eu quero, seja purificado!” (Mt 8,3). É esta mesma mão que toca a mão do sogro de Pedro que faz a febre desaparecer dela (Mt 8,15). É esta mesma mão que levanta a filha de Jairo a fim de ela voltar a viver (Mt 9,25). São estas mesmas mãos que seguram os cinco pães para abençoá-los a fim de saciar a fome do povo abandonado (Mt 14,1-21).  São estas mesmas mãos que se estendem para salvar Pedro do afogamento (Mt 14,30-31). São estas mesmas mãos, mesmo sendo invisíveis, das quais precisamos segurar nesta vida.  

Foi muito feliz Nelson Monteiro da Mota que compus a música que fala de “Segura Na Mão De Deus”: “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar, segura na mão de Deus e vai. Se as tristezas desta vida quiserem te sufocar, segura na mão de Deus e vai. Se a jornada é pesada e te cansas da caminhada, segura na mão de Deus e vai. Segura na mão de Deus, pois ela te sustentará. Não temas, segue adiante e não olhes para trás. Segura na mão de Deus e vai”. Que não tenhamos pretensão de dispensar a mão de Deus. Precisamos da mão de Deus para nos levantar e nos guiar para a vida gloriosa. 

Na alta montanha Jesus transfigurou-se ou transformou-se. Há várias maneira para uma pessoa transformar-se. A pessoa pode transformar-se com uma ideia positiva e muito feliz, com uma surpresa agradável, a tal ponto de perder a cor, conservando uma face tranquila e quase infantil. A partir da ideia bíblica, a transfiguração tem esse último sentido, em que o divino, fazendo-se ver de modo palpável e feliz, transforma a pessoa de tal modo que ela chega até a perder peso e levitar. Dizem que os santos, que adquirem alto grau de mística, passam por experiência semelhante, de levitação e transfiguração.          

Para nós, os comuns mortais, que ainda não chegamos ao patamar da santidade que se encanta de Deus, a transfiguração tem apenas o sentido da conversão, de mudança de vida, no desejo da santidade.          

Guiados pela Palavra de Deus que devemos escutar sempre, como manda a voz celeste, agora finalmente encontramos Cristo. Sabemos que todas as demais luzes se apagaram, somente Jesus permaneceu e continua permanecendo como a única luz de nossa vida. Vale a pena escutar, meditar e viver de acordo com a Palavra de Deus! A mensagem da transfiguração é de otimismo radical e de esperança firme, e não ilusória. Jesus é nosso companheiro de caminhada até a luz final, até a Páscoa definitiva. Com ele somos capazes de superar a prova da fé e experimentar a libertação gratificante da autorenúncia e da cruz na quaresma de nossa vida, no caminho para a Páscoa com Cristo.

P. Vitus Gustama,SVD

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

04/03/2023-Sábado Da I Semana-Quaresma

PARA AMAR A JESUS VERDADEIRAMENTE E AO PRÓXIMO TEMOS QUE APRENDER A PERDOAR, ATÉ OS INIMIGOS

Sábado da I Semana da Quaresma

Primeira Leitura: Dt 26,16-19

Moisés dirigiu a palavra ao povo de Israel e lhe disse: 16 “Hoje, o Senhor teu Deus te manda cumprir esses preceitos e decretos. Guarda-os e observa-os com todo o teu coração e com toda a tua alma. 17 Tu escolheste hoje o Senhor para ser o teu Deus, para seguires os seus caminhos, e guardares seus preceitos, mandamentos e decretos, e para obedecerdes à sua voz. 18 E o Senhor te escolheu, hoje, para que sejas para ele um povo particular, como te prometeu, a fim de observares todos os seus mandamentos. 19 Assim ele te fará ilustre entre todas as nações que criou, e te tornará superior em honra e glória, a fim de que sejas o povo santo do Senhor teu Deus, como ele disse”.

Evangelho: Mt 5,43-48

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: 43 Vós ouvistes o que foi dito: 'Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!' 44 Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! 45 Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos. 46 Porque, se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? 47 E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa? 48 Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.'

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O Senhor é Nosso Deus e Nós Somos Seu Povo

Tu escolheste hoje o Senhor para ser o teu Deus, para seguires os seus caminhos, e guardares seus preceitos, mandamentos e decretos, e para obedecerdes à sua voz. E o Senhor te escolheu, hoje, para que sejas para ele um povo particular, como te prometeu, a fim de observares todos os seus mandamentos”. O Deuteronômio, o último livro do Pentateuco, de onde foi tirada a Primeira Leitura de hoje, é, paradoxalmente, apesar da extensa parte legislativa que contém, um dos menos jurídicos. Sua finalidade é mais homilética do que legislativa e seu senso aguçado de história e das relações pessoais com Deus fazem dele, acima de tudo, um livro religioso. 

O texto de hoje contém a fórmula central da Aliança e recorda o conteúdo desta Aliança e sublinha seu caráter espiritual. Na fórmula da Aliança (Dt 26,17-19) é salientada a reciprocidade entre os pactuantes isto é, entre Deus e Israel. Cada um deve se mostrar leal e respeitoso com os compromissos assumidos com o outro. Enfatiza-se o caráter dialogal e pessoal da aliança. Isto significa que Israel e Deus são um para o outro. Deus ama Israel e Israel, por sua vez, tem de amar a Deus (cf. Dt 6,5; 7,6ss; 10,12ss). 

A Aliança é uma realidade sempre atual. O Deuteronômio insistiu fortemente sobre este valor e por isso, se usa a palavra “hoje” (“hoje” nos vv. 16-18; cf. Dt 5,3; 6,10-13). Por isso, não se trata de viver de uma economia antiga; o passado não serve mais que para definir melhor o presente, e as maravilhas passadas não cessam de renovar-se na atualidade. Sem a renovação e a inovação a humanidade não avança. A vida feliz e a glória (v.19) são a recompensa prometida por Deus para aqueles que observam a Aliança. Com efeito, a lei não é uma simples nomenclatura de preceitos impostos ao homem e sim que compromete muito mais uma atitude religiosa: “Eu serei teu Deus (v.17) e tu serás meu próprio povo” (vv.18-19). 

Esta frase “Eu serei teu Deus e tu serás meu próprio povo” é para ser recordado por qualquer um de nós em todos os momentos de nossa vida, especialmente nos momentos de prova. É preciso estarmos conscientes de que não estamos sós, pois Deus está conosco e nós estamos com Deus (cf. Mt 28,20). 

Viver Cristãmente É Caminhar Na Direção Do Bem e Da Salvação

Tu escolheste hoje o Senhor para ser o teu Deus, para seguires os seus caminhos, e guardares seus preceitos, mandamentos e decretos, e para obedecerdes à sua voz. E o Senhor te escolheu, hoje, para que sejas para ele um povo particular, como te prometeu, a fim de observares todos os seus mandamentos”. 

O antigo semita é nômada. A estrutura do êxodo de Israel possui três momentos: saída, caminho no deserto e a chegada à Terra prometida. O êxodo de Israel constitui um processo de libertação feliz: libertado da escravidão do Egito à Terra prometida, uma “terra que mana leite e mel” (Ex 3,8). O caminho é seco e duro como o deserto, mas ao mesmo tempo não faltam as bênçãos de Deus durante essa caminhada. Neste contexto, o êxodo é entendido como marcha de um povo ou de um grupo de pessoas em busca de algum lugar melhor para se estabelecer, mas sempre com a ajuda divina. “Quem não contar com Deus não sabe contar” (Pascal). Caminho, via e sendas desempenham um papel essencial em sua existência. Como a coisa muito normal utiliza este mesmo vocabulário para falar da vida moral e religiosa e tal uso se manteve na língua hebraica. 

E o êxodo existencial de um ser humano possui três fases: iniciar, transitar e terminar. A vida terrena de um ser humano tem, então, seu início, faz-se no pleno desenvolvimento e aponta para seu término inevitável. O êxodo da vida humana é sempre um caminho de crescimento, uma saída da “própria terra”, de si mesmo. Neste caminho de crescimento suscitam inevitáveis interrogações sobre o próprio homem, sua condição e destino: “Quem sou eu? Que sentido tem a vida? Qual é o sentido da minha vida? O que estou procurando nesta vida? Para onde a vida vai me levar?”. Sem uma resposta a estas perguntas, o itinerário ou o êxodo que conduz para o crescimento ou à plena realização pode terminar em um beco sem saída. Quem tem um porquê para viver, encontrará frequentemente o como viver. 

Caminho, em sentido figurado, tem na Bíblia várias acepções. Fala-se de dois caminhos: o caminho da vida e o da morte que Deus põe diante do homem (Jr 21,8); o caminho bom (1Sam 12,13) e o caminho mau (Jr 18,11); o caminho dos justos e o dos pecadores (Sl 1,6). Os caminhos de Deus são distintos dos caminhos dos homens (Is 55,8-9). Os caminhos de Deus conduzem à paz (Is 59,6; Lc 1,79) e à vida (Mt 7,14). Os caminhos dos homens, ao contrário, levam à morte (Pr 14,12) e à perdição (Mt 7,13). Os caminhos de Deus são Sua própria vontade, as normas de conduta sempre retas, verdadeiras e justas (Ap 15,3). A missão fundamental de Jesus Cristo foi ensinar para o homem estes caminhos (Mt 22,16). O próprio Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6). Nos Atos dos Apóstolos, o conjunto dos ensinamentos cristãos é chamado caminho, o caminho do Senhor (At 9,2; 18,25-26; 19,9.23; 22,4; 24,14-22). 

A ideia do caminho descreve muito bem nossa vida. Moisés falou sobre isso para seu povo. Na Quaresma nos é recordado ou lembrado de maneira mais explicita que nós cristãos temos um caminho próprio, um estilo de vida que nos traça a Palavra revelada por Deus. A Palavra de Deus nos direciona para a vida em plenitude. Basta ler e meditá-la diariamente, especialmente durante a Quaresma, para que possamos caminhar bem na vida. Temos que nos comportar como o povo da Aliança: continuar a seguir somente Deus e Sua Palavra, palavras que têm vida eterna (Jo 6,68). Deus, por sua parte, nos promete ser nosso Deus, ajudar-nos, fazer de nós o “o povo consagrado”, eleito que dá testemunho de sua salvação em meio do mundo. Deus e Sua Palavra são o único caminho que leva à salvação, à felicidade, à Páscoa definitiva. Deus nos é sempre fiel. Por nossa vez, devemos ser fieis a Ele e cumprir Sua vontade “com todo o coração e com toda a alma”. 

Somos o povo em peregrinação para a eternidade, para a comunhão plena com Deus. Por isso, o apego, a ganância, o materialismo se tornam inúteis, pois nada se levará. Precisamos de pão, mas “não só de pão o homem vive” (Dt 8,3; Lc 4,4). É preciso viver muito além do pão, pois a nossa fome não é só de pão, mas de outros valores que nos dão o sentido da vida. 

Para Estar No Caminho Do Senhor É Preciso Aprender a Perdoar e Reconciliar-se

O Evangelho de hoje nos põe diante de um exemplo muito concreto deste estilo de vida que Deus quer de nós. Jesus nos apresenta seu programa como estilo de vida cristã: amar inclusive nossos inimigos. É o programa árduo. Mas a Páscoa a que nos preparamos é a celebração de um Cristo Jesus que se entregou totalmente pelos demais. Ele morreu perdoando todos os que O crucificaram. 

Ser seguidores do Senhor Jesus é assumir seu estilo de vida. O modelo deste estilo de vida é o próprio Jesus, Deus-Conosco e o próprio Pai do céu que “faz nascer o sol para os bons e maus e faz cair a chuva para os justos e injustos”, pois Deus é o Pai de todos. 

O texto do evangelho lido neste dia faz parte do Sermão da Montanha (Mt 5-7). Estamos na seção chamada de antíteses (Mt 5,21-48) conhecidas pelo uso da seguinte expressão: “Ouvistes... Porém eu vos digo...”. Jesus continua analisando a lei antiga (“Ouvistes...”) e dá uma nova ênfase (“Porém eu vos digo...). Ele sabe que o único que pode salvar o ser humano é entender que se não se tem o perdão como ponto de partida, jamais se poderá alcançar uma convivência digna entre os seres humanos. Daqui sua grande preocupação pela busca desses valores que o Pai quer para a humanidade, valores que farão que o ser humano se aproxime da mesma perfeição de Deus (cf. Mt 5,48). Para aprender a amar verdadeiramente, o cristão tem que aprender a perdoar, pois perdão é a expressão máxima do amor. Perdão é o último testamento de Jesus Cristo da cruz para todos os cristão (cf. Lc 23,34). O perdão é a expressão máxima do amor. 

A palavra “perdão” provém do latim “per”: intensificação e “donare”: doar, dar. Assim o perdão é um ato de doação, tanto para aquele que o recebe como para aquele que o brinda. Ambos se enriquecem com o benefício da paz; ambos se libertam do cárcere que os aprisiona. Por isso, o perdão é seguir avançando; é amparo e encontro. O perdão revela a graça. O ato de perdoar é um ato da misericórdia de Deus que apaga os pecados (Am 7; Ex 32,12.14; Jr 26,19; Ez 36,29.33). Perdoar é estar com Deus que perdoa sem medida. Perdoar é estar do lado de Deus.

Quando a comunidade cristã primitiva chegou a compreender que Jesus queria a criação de uma sociedade universal, unida através do amor fraterno, foi capaz de romper todos os distanciamentos que histórica e culturalmente separavam os seres humanos. Para os discípulos nãolugar para distinções (cf. At 10,34). Eles que sofrem as perseguições (Mt 5,10-12) não podem deixar-se dominar pelo ódio. Segundo Jesus no lugar do ódio, o desejo do bem (amor, oração) deve ocupar o coração do cristão. Para isso o cristão tem que estar bem unido a Cristo. Sua força para perdoar está em Jesus Cristo que perdoa até os que O crucificaram: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Aqui Jesus intercede pelos inimigos apesar da maldade que os inimigos lhe causaram. Jesus não nega a culpa cometida pelos inimigos, mas busca uma solução não violenta. “Jesus viveria e morreria em vão, se não conseguisse nos ensinar a ordenarmos a nossa vida pela eterna lei do amor(Mahatma Gandhi: GANDHI E A NÃO VIOLÊNCIA, p.50 Vozes, 1967). 

Amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem. Deste modo sereis os filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos”. Como é difícil amar os que destruíram ou acabaram com nossa vida ou nossa família, e ainda rezar por eles!? No nosso inconsciente, como seres humanos, sempre resta algum sentimento vingativo. Trata-se de um sentimento com o intuito de acabar com a vida dos que nos fizeram algum mal, mas, infelizmente, resulta em acabar com a nossa própria vida por causa do mesmo sentimento: “O ódio que se opõe ao ódio consegue apenas aumentar a superfície e também a profundeza do ódio” (Mahatma Gandhi). Repito: O ódio é igual a beber o veneno e espera-se que o outro morra. Mas aquele que bebe o veneno é que morre. Daí lança-se a pergunta: vale a pena seguir o mesmo caminho (violência, vingança)? Não se trata de acariciar a cabeça de quem pratica a violência. Trata-se de procurar alguma alternativa. Nisto percebemos que ser cristão é o grande desafio diariamente. Todo dia devemos renovar o nosso ser de cristãos ao contemplar permanentemente Jesus Cristo, o amor misericordioso de Deus feito homem. 

As sociedades humanas ao longo da história foram construídas a partir do princípio de interesses de grupos determinados que excluam todos aqueles que são vistos como ameaça à existência própria de ditos grupos. A comunidade cristã se encontra também a cada passo com pessoas que ameaçam sua existência. O inimigo está no horizonte de sua existência e frequentemente, esse inimigo pode ser qualificado de perseguidor. No entanto, para ela Jesus propõe uma nova lei que é a culminação de todas as contraposições mencionadas previamente. O “mandamento de amar” a todos deve converter-se em marca distintiva da comunidade de seguidores de Cristo, capaz de expressar sua originalidade na história humana, pois eles são filhos de Deus no Filho Jesus Cristo.  Ser filhos de Deus”, segundo Jesus, significa parecer-se a Ele ou com Ele no modo de fazer e de viver. 

Por isso, as palavras de Jesus hoje são, na verdade, reveladoras: fazei o bem e orai. A fraternidade universal é a consequência de outra realidade essencial: a paternidade universal de Deus. O amor sem fronteiras que Deus nos pede é o que Ele mesmo vive,pois ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos”. Deus ama a todos os homens. Ama até aos que não O amam. Ele derrama seus benefícios, seu sol formoso e sua chuva sobre todos. Assim Jesus nos diz que quando deixamos de amar alguém significa que recusamos alguém que Deus ama. Aquele que consideramos como nosso inimigo é amado por Deus. Nosso ou meu inimigo é um filho de Deus. Não se trata de um formoso ideal humanista. Deus é a única referência. Amar aqui significa querer o bem do outro independente daquilo que o outro faz contra mim. Para fazer isso é preciso ter muita maturidade cristã e espiritual. 

Amar as pessoas que nos amam, que se parecem a nós, é natural. Mas Deus nos pede mais. Deus nos pede que ampliemos nosso coração muito além do círculo de nossos amigos, de nossos parentes, de nosso âmbito. Isto será possível somente na medida em que todos os seres humanos chegarem a se amar e a se perdoar por ter consciência de que todos são os filhos e filhas do mesmo Pai celeste como rezamos diariamente o Pai Nosso (Mt 6,9-15). Se todos são filhos e filhas do Pai celeste, então, maltratar um ser humano é maltratar o Pai do céu, pois Deus também está no próximo (cf. Mt 25,40.45) e o próximo, como eu, é templo do Espírito Santo (cf. 1Cor 3,16-17). 

"Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito", assim Jesus concluiu. A perfeição é o horizonte de nossa existência. Como horizonte ela não é alcançável, mas serve como guia para nossa existência diária. “O fraco jamais perdoa: o perdão é uma das características do forte”. (Mahatma Gandhi).

Para pensar: “As três coisas mais difíceis do mundo são: guardar um segredo, perdoar uma ofensa e aproveitar o tempo.” (Benjamin Franklin).

P. Vitus Gustama,svd

domingo, 26 de fevereiro de 2023

03/03/2023-Sextaf Da I Semana-Quaresma

A CONVERSÃO É CRER NO DEUS DA MISERICÓRDIA E DA COMPAIXÃO QUE QUER VIDA PARA TODOS

Sexta-Feira da I Semana da Quaresma

Primeira Leitura: Ez 18,21-28

Assim fala o Senhor: 21 “Se o ímpio se arrepender de todos os pecados cometidos, e guardar todas as minhas leis, e praticar o direito e a justiça, viverá com certeza e não morrerá. 22 Nenhum dos pecados que cometeu será lembrado \contra ele. Viverá por causa da justiça que praticou. 23 Será que tenho prazer na morte do ímpio? — oráculo do Senhor Deus. Não desejo, antes, que mude de conduta e viva? 24 Mas, se o justo desviar de sua justiça e praticar o mal, imitando todas as práticas detestáveis feitas pelo ímpio, poderá fazer isso e viver? Da justiça que ele praticou, nada mais será lembrado. Por causa da infidelidade e do pecado que cometeu, por causa disso morrerá. 25 Mas vós andais dizendo: ‘A conduta do Senhor não é correta’. Ouvi, vós da casa de Israel: É a minha conduta que não é correta, ou antes é a vossa conduta que não é correta? 26 Quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado que ele morre. 27 Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida. 28 Arrependendo-se de todos os seus pecados, com certeza viverá; não morrerá”.

Evangelho: Mt 5,20-26

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: 20 Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus. 21 Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: 'Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal'. 22 Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: 'patife!' será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de 'tolo' será condenado ao fogo do inferno. 23 Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar, e ali te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa a tua oferta ali diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão. então vai apresentar a tua oferta. 25 Procura reconciliar-te com teu adversário, enquanto caminha contigo para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao juiz, o juiz te entregará ao oficial de justiça, e tu serás jogado na prisão. 26 Em verdade eu te digo: dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo.

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A liturgia da Palavra de Deus neste dia é uma catequese sobre a justiça cristã. Quem é justo diante de Deus? Como podemos ser justificados? Ela também nos apresenta a nova lei, a lei de Cristo ou a nova justiça.

Deus não quer a morte do pecador e sim que se converta de sua conduta, e viva. (Por isso, no Sermão da Montanha, o Senhor pede para não encararmos ou não eliminarmos o mallvado. E sim, temos que encarar ou eliminar a maldade cf. Mt 5,39).  Mas há que ter presente a liberdade e responsabilidade pessoais, já que a relação com o Deus de Amor está muito longe de ser uma pura obediência mecânica ou um fatalismo irreversível. Por sua liberdade interior, o homem pode, em todo momento, converter-se e orientar sua vida para Deus. A Quaresma nos urge a fazer esta experiência. Uma das características da Quaresma é penitencial. 

O cristianismo é a religião da interioridade e não a da ostentação e vã aparência diante dos homens. A piedade cristã tem por único objeto a Deus e a sua vontade. E o fundamento desta piedade é o amor. A conversão há de mostrar-se nas boas obras: ser mais carinhosos, mais amáveis, mais desprendidos, mais bondosos e caridosos. Temos que nos converter para o amor fraterno. Na falta de amor fraterno surgem as injustiças, as desonestidades, a exploração, a maldade contra o próximo, a corrupção, e assim por diante. O maior pecado é a falta de amor fraterno, pois “Deus é Amor” (1Jo 4,8.16). 

Deus Quer a Vida Para Os Homens e Não Sua Perda Eterna 

Ez 18,1-32 deve ser lido com Ez 33, pois estes dois capítulos têm um tema comum: responsabilidade individual.  Ou seja, o profeta Ezequiel quer nos dizer que ninguém carrega as culpas alheias ou as culpas dos antepassados. Ou seja, cada um é responsável pelos seus próprios atos e as consequências desses atos. Não vale lançar a culpa aos pais e avós. Sem anular a culpa anterior, anuncia-se a responsabilidade pessoal do indivíduo. Por isso, o profeta Ezequiel desmente repetidamente o ditado popular que diz: “Os pais comeram uvas verdes, mas são os dentes dos filhos que ficam embotados?” (Ez 18,2b). Embora o princípio da responsabilidade pessoal não tenha sua origem em Ezequiel (cf. 2Rs 14,6; Jr 31,29ss; Dt 24,16), porém o profeta Ezequiel é quem dá-lhe a formulação mais clara e exata.

Para Ezequiel é possível romper-se a cadeia com o passado/pecado cometido pelos pais (“Os pais comeram uvas verdes”) e comprometer-se com a reconstrução do futuro: “Será que tenho prazer na morte do ímpio? — oráculo do Senhor Deus. Não desejo, antes, que mude de conduta e viva?” (Ez 18,23). O profeta Ezequiel insiste que a misericórdia de Deus atravessa a História sem fim. Deus oferece nova oportunidade, novo convite para começar tudo de novo: “Se o ímpio se arrepender de todos os pecados cometidos, e guardar todas as minhas leis, e praticar o direito e a justiça, viverá com certeza e não morrerá. Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida. Arrependendo-se de todos os seus pecados, com certeza viverá; não morrerá(Ez 18,21.27-28). 

A Primeira Leitura tirada do livro do profeta Ezequiel nos apresenta a ideia bíblica bastante avançada sobre justiça. Para falar sobre justiça Ezequiel fala sobre Deus. 

Para o profeta Ezequiel o Deus do AT é também um Deus de amor, um verdadeiro Pai para suas criaturas. Este Deus é a Vida. Por ser a Vida, Ele não pode querer o contrário; não quer a morte do pecador e sim sua conversão. Para todas as criaturas Ele é um Deus da Vida. Toda a vida provém de Deus. ninguém pode dar a vida a não ser o próprio Deus da vida. Consequentemente, Ele quer a vida para suas criaturas e não o castigo: “Será que tenho prazer na morte do ímpio? — oráculo do Senhor Deus. Não desejo, antes, que mude de conduta e viva?” (Ez 18,23; cf. Os 11,8-9). A vida aqui deve ser entendida como a comunicação, o amor, a plenitude, a participação no gozo da verdadeira vida, na graça do Ser que é o próprio Deus. Trata-se da vida em plenitude. 

Será que tenho prazer na morte do ímpio?  Não desejo, antes, que mude de conduta e viva?” O profeta Ezequiel nos apresenta a compaixão de Deus. Em Deus há uma paixão; o amor para o homem caído (cf. Jo 3,16). Em Deus há compaixão e misericórdia. Aqui se fundamenta a paixão e compaixão de Jesus (cf. Lc 6,36). 

Este Deus de compaixão e de misericórdia há de castigar o pecado de acordo com a verdade, mas por outro lado, Ele não pode destruir a vida, pois seria contra a Si mesmo porque Ele mesmo é a Vida (cf. Jo 14,6; 11,25). A misericórdia de Deus atravessa a História sem fim, por mil gerações. O profeta Ezequiel insiste nisso. E esta misericórdia se tornou carne em Jesus Cristo. Jesus Cristo é a misericórdia feita carne.

Além de apresentar o Deus da compaixão e da misericórdia, o profeta Ezequiel derruba todo o gênero de coletivismo sobre o pecado.

A teologia tradicional judaica afirmava que o castigo, o sofrimento, dor do presente são consequências do pecado ou de pecados do passado, cometidos por si mesmo que os sofre ou por algum antepassado seu. É a teologia da responsabilidade coletiva que ouvimos dos lábios de Jó, dos dirigentes judeus diante do cego de nascença (cf. Jo 9,2-3) e de tantos pregadores recentes. Os desterrados de Babilônia expressavam esta ideia com a seguinte frase: “Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram(Jr 31,29; Ez 18,2). O conceito de comunidade, de povo era como um “dogma” na mentalidade semítica: a comunidade se salva, a comunidade perece. O individual se dilui no coletivo, com todas as suas consequências. 

Sem anular o princípio da responsabilidade coletiva (que liga solidariamente os membros da comunidade entre si e com seus antepassados), o profeta Ezequiel desenvolve o princípio da responsabilidade pessoal, que supõe uma avança revolucionária na teologia. Este princípio reza assim: “Eu vos julgarei a cada um conforme o seu procedimento (Ez 18,30). O homem, cada homem sempre será dono de seu destino, e por isso, poderá escolher entre o bem e o mal, entre a morte e a vida, mas tudo depende dele (cf. Ez 18,5ss). Assim é possível romper a cadeia do passado, já que o Senhor não quer a morte de nenhum homem. No entanto, para obter a vida não bastam os atos isolados, é necessário uma atitude firme e decidida: “Quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado que ele morre. Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida. Arrependendo-se de todos os seus pecados, com certeza viverá; não morrerá(Ez 18,26-28). A responsabilidade recai sobre cada pessoa humana (responsabilidade individual). Para o profeta Ezequiel cada um é responsável pelos seus atos, de modo que, quem pecar, morrerá (Ez 18,4.18.20.24.26). Resta apenas a possibilidade de converter-se para viver (Ez 18,32), pois Deus é misericordioso que não quer a morte do pecador e sim sua conversão. 

Em teoria, todos nós estamos de acordo com o princípio de responsabilidade individual, mas a práxis é outra coisa. Por causa do erro de um sacerdote, condenamos todos os sacerdotes; por causa da culpa ou do crime de um membro de um partido ou de uma instituição, logo dizemos que tal partido ou tal instituição não vale para nada! Emitimos juízos categóricos e rotundos/redondos contra aquele partido ou aquele grupo ou instituição.  O profeta Ezequiel nos ensina que devemos nos despojar de uma mentalidade religiosa baseada nos méritos contraídos. Cada coisa deve ser tratada como uma coisa. Ou cada caso é um caso como dizemos frequentemente. Assim também cada pessoa deve ser tratada como uma pessoa. O descobrimento da unicidade da pessoa é o coração da liberdade. Este descobrimento é o fruto da fé em Deus-pessoa ou provem do Deus-pessoa. Este Deus não é instrumento da escravidão. O valor indestrutível da pessoa depende da presença de um Deus pessoal. 

Será que tenho prazer na morte do ímpio? — oráculo do Senhor Deus. Não desejo, antes, que mude de conduta e viva.... Quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado que ele morre. Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida. Arrependendo-se de todos os seus pecados, com certeza viverá; não morrerá”. É o recado de Deus para cada um de nós através da boca do profeta Ezequiel. 

Deus nos ama como pessoas; Deus nos chama com um nome pessoal, conhecido unicamente por Ele (cf. Is 43; 49,16) e por aquele que recebe a chamada.

Ser Melhor Cristão

O texto do evangelho deste dia faz parte do Sermão da Montanha (Mt 5-7). O cristão deve recordar que já não está no Sinai e sim na Montanha das Bem-aventuranças (Sermão da Montanha); que não é um seguidor de Moises e sim um discípulo de Jesus que deve viver no amor, com amor e por amor. 

O texto do evangelho de hoje inicia com a confrontação entre a justiça dos escribas e dos fariseus e a justiça exigida para os cristãos: “Se a vossa justiça não for maior que a dos mestres da lei e dos fariseus, vós não entrareis no reino dos céus” (Mt 5,20). É um princípio ético fundamental de Jesus. Para Jesus não basta ser bom, mas tem que ser melhor. “O bom é inimigo do ótimo”, dizia São João Bosco. A justiça do Reino de Deus é o sinônimo de amor misericordioso, de solidariedade fraterna, de perdão reconciliador, de igualdade respeitosa, de empenho por construir a paz, e a recusa de toda forma de idolatria e de injustiça. 

Através desta afirmação que serve de alerta para quem quiser ser cristão, Jesus quer desenvolver o sentido profundo da Lei cristã. Por isso, o olhar se detém primeiramente nos deveres sociais (Mt 5) para passar às obras religiosas (Mt 6).       

A primeira das oposições concerne ao ensinamento do quinto mandamento: “Não matarás”. Jesus propõe uma interpretação mais exigente desta disposição que abarca não somente as ações ou os atos culpáveis nessa ordem, mas também a raiz de onde brotam essas ações ou esses atos: o sentimento e a interioridade do ser humano. A proibição do homicídio inclui na nova interpretação de Jesus a proibição de todo sentimento de ira e animosidade, maledicência, insulto, desprezo contra o irmão: “Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: 'patife!' será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de 'tolo' será condenado ao fogo do inferno”. Segundo Jesus a ira e as palavras ofensivas contra o irmão são equiparadas ao homicídio. Nas suas palavras Jesus enfatiza que a relação com o irmão adquire uma tal seriedade que com ela se chega a decidir o destino definitivo da pessoa humana diante de Deus: “Quem chamar o irmão de 'tolo' será condenado ao fogo do inferno”. 

Segundo Jesus o mandamento de “não matar” somente ficará superado no momento em que se pensar num amor universal que leva a amar e a perdoar. Uma sociedade não se torna justa somente por não matar. Somente o amor sem medida, convertido em solidariedade e igualdade de direitos para todos pode formar uma sociedade justa. O que está mandado não é “não matar” e sim “amar”. O pecado não é somente o mal que fazemos e sim o bem que deixamos de fazer (pecado de omissão). 

Ser Cristão Reconciliado      

Logo depois que apresentou a nova formulação da antiga lei, Jesus passa a expor sua concretização em forma de um caso para enfatizar até que ponto essa nova lei deve ser observada. Trata-se de uma explicitação que indica a radicalidade de sua aplicação com a ajuda de um exemplo (cf. Mt 5,23-26). O cristão que se aproxima do Senhor da Vida deve reconciliar-se primeiro com o irmão: “Quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar, e ali te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão. então vai apresentar a tua oferta. Se há discórdia entre os homens, a relação com Deus se rompe. Como se Deus quisesse nos dizer: “Antes de ter relações corretas comigo, tenham primeiro entre vocês, homens, essas relações corretas”. Não somente quem ofendeu está obrigado a se reconciliar, mas também quem sofreu uma ofensa (cf. Mt 18,15-18). Sublinha-se o caráter urgente deste dever diante do qual perde a importância de ter ou de não ter a razão no conflito. Cada um é chamado à superação de qualquer tipo de divisão comunitária que lhe afete. 

Jesus chama os cristãos a fazerem uma passagem urgente: de uma prática religiosa formalista que põe ênfase sobre o cumprimento cultual (cumprir apenas preceitos) para a vivência do amor fraterno. O amor fraterno passa diante do culto. O primeiro de tudo e o mais essencial para cada cristão é o amor, pois “a caridade é a plenitude da lei” (Rm 13,10). Por isso, “Quanto mais tu amas, mais alto tu sobes” (Santo Agostinho). 

Para Jesus a reconciliação é tarefa prioritária: a reconciliação está antes de qualquer culto a Deus, está antes que ir à missa, antes que rezar, porque o projeto de Deus sobre a humanidade é nada mais do que criar um mundo de irmãos onde todos podem chamar a Deus de Pai. É uma sociedade nova onde regem as relações humanas próprias do amor mútuo. Uma oferenda é agradável a Deus, se, quem a oferece, não guarda, em seu coração, ódio, nem rancor nem ressentimento contra o próximo. A oferenda a Deus seria inútil, se o coração do oferente fosse contaminado pela inimizade e o seu relacionamento com alguém estivesse rompido. Trata-se de uma exigência radical que escandalizam até os nossos sentimentos humanos.

Se houver discórdia entre os homens, a relação com Deu se rompe. Deus quer nos dizer: “Antes de ter relações corretas comigo, vocês devem tê-las entre vocês”. A caridade fraterna passa adiante do culto. A reconciliação é um princípio essencial de sobrevivência para as pessoas, as famílias, as profissões, as etnias de uma geração em geração.      

Portanto, convém reconciliar-se, pôr-se de acordo, antes que chegue o momento do juízo definitivo de Deus. Não se esqueça: “O bom é inimigo do ótimo”. Somos chamados a ser melhores diariamente no amor fraterno para ser dignos do Reino de Deus e para sermos reconhecidos como seguidores de Jesus (Jo 13,35). 

Todos nós somos pecadores e devemos ter consciência de pecadores. Ninguém pode olhar para o outro e dizer que o outro é mau. Se tivermos uma boa formação de nossa consciência e se trabalharmos seriamente na nossa sensibilidade, a consciência nos acusará como pecadores. O insensível carece de consciência e nisto consiste a ruína. Somente um santo é que capaz de se reconhecer pecador, pois ele está sempre frente a frente com o Deus santo. 

Para viver a vida cristã e a fé cristã temos necessidade de viver da superabundância da misericórdia de Deus. E somente tendo acolhido essa misericórdia infinita do Pai é que poderemos, por nossa vez, perdoar nossos irmãos. Amar é perdoar. Guardar rancor contra alguém é privar-se da bênção divina. De fato, cada pessoa não tem senão um só coração e não saberá parti-lo em dois, sob o risco de vê-lo dilacerar-se e morrer. A unidade do coração repousa sobre essa dupla misericórdia. O nosso mundo morre por falta de misericórdia, pois o mundo está repleto de agressividade de todos os tipos. Não tenhamos medo de denunciar esse drama, inclusive o mesmo drama que tem dentro de nosso coração.

P. Vitus Gustama,svd

V Domingo Da Páscoa, 28/04/2024

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