domingo, 19 de fevereiro de 2023

I Domingo Da Quaresma "A",26/02/2023

VIVER DE ACORDO COM A VONTADE DE DEUS NOS FAZ VENCERMOS AS TENTAÇÕES DESTE MUNDO

I DOMINGO DA QUARESMA “A”

 


  I Leitura: Gn 2,7-9; 3,1-7

7O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e o homem tornou-se um ser vivente. 8Depois, o Senhor Deus plantou um jardim em Éden, ao oriente, e ali pôs o homem que havia formado. 9E o Senhor Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores de aspecto atraente e de fruto saboroso ao paladar, a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal. 3,1A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos disse: ‘Não comereis de nenhuma das árvores do jardim?’” 2E a mulher respondeu à serpente: “Do fruto das árvores do jardim nós podemos comer. 3Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus nos disse: ‘Não comais dele, nem sequer o toqueis, do contrário, morrereis’”. 4A serpente disse à mulher: “Não, vós não morrereis. 5Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal”. 6A mulher viu que seria bom comer da árvore, pois era atraente para os olhos e desejável para se alcançar o conhecimento. E colheu um fruto, comeu e deu também ao marido, que estava com ela, e ele comeu. 7Então, os olhos dos dois se abriram; e, vendo que estavam nus, teceram tangas para si com folhas de figueira.

II Leitura: Rm 5,12.17-19

Irmãos: 12 Consideremos o seguinte: O pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a morte. E a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram...17 Por um só homem, pela falta de um só homem, a morte começou a reinar. Muito mais reinarão na vida, pela mediação de um só, Jesus Cristo, os que recebem o dom gratuito e superabundante da justiça. 18 Como a falta de um só acarretou condenação para todos os homens, assim o ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida. 19 Com efeito, como pela desobediência de um só homem a humanidade toda foi estabelecida numa situação de pecado, assim também, pela obediência de um só, toda a humanidade passará para uma situação de justiça. 

Evangelho: Mt 4,1-11

Naquele tempo, 1o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo. 2Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, teve fome. 3Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!” 4Mas Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’”. 5Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, 6e lhe disse: “Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. 7Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus!’” 8Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, 9e lhe disse: “Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. 10Jesus lhe disse: “Vai-te embora, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás culto’”. 11Então o diabo o deixou. E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus.

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Neste Primeiro Domingo da Quaresma, a Igreja nos apresenta as duas grandes figuras que centram toda a história da humanidade: Adão e Jesus Cristo. Adão, o primeiro homem no plano do tempo, na verdade inclui tanto o masculino quanto o feminino. Jesus, o filho de Deus em forma de homem (Deus encarnado), também está associado à sua missão uma mulher, Maria de Nazaré, Sua Mãe com seu Fiat ao Plano de Deus de ser Mãe do Salvador. Nas leituras de hoje, esses dois "homens" (Adão e Jesus) aparecem frente a frente e, ao mesmo tempo, relacionados. E os dois são tentados. Um caiu na tentação pela desobediência à Palavra de Deus (Adão) e o Outro venceu as tentações, pois viveu de acordo com a Palavra do Pai (Jesus). Adão foi expulso do Paraíso pela desobediência à Palavra de Deus. Jesus expulsou satanás de sua missão para salvar o mundo.

O primeiro homem (Adão) é colocado no Paraíso na harmonia da criação e na harmonia da relação homem-Deus, assim como na harmonia do casal humano. Ser fiel à Palavra de Deus é permanecer em harmonia Homem-natureza, homem-mulher e Homem-Deus.

Ao contrário, não obedecer - cair em tentação - é quebrar o desígnio "harmônico" (de comunhão) de Deus Pai. Por isso, o segundo fragmento do texto da Primeira Leitura nos coloca na tentação de não obedecer à Palavra de Deus que resulta na desordem (perda da harmonia). Adão (o homem e a mulher) não confia em Deus; duvidam e desconfiam de Seus projetos e caminhos e por isso, eles decidem por conta própria. Ao Perder a comunhão com Deus e ao abandonar os caminhos de Deus, únicos onde poderiam encontrar vida, alegria e paz, o homem perdido, o homem desobediente à Palavra de Deus só encontra caminhos de amargura, dor e morte. Não é simplesmente porque somos "pó" (feito de barro) que pecamos, e sim porque somos livres. Se o homem conhecesse e reconhecesse que não vem de si mesmo, e sim que é “doado”, agraciado, que vem de Alguém (Deus), ele escolheria os caminhos de Deus de Quem o criou.

Jesus, como sublinham a Segunda Leitura e o Evangelho de hoje, é fiel à Palavra do Pai, permanece sob a Palavra de Deus, não cai em nenhuma tentação, envolve-nos em harmonia e reconcilia-nos, a partir da obediência, com a criação e com o Pai. 

Na segunda leitura, São Paulo confirma a triste experiência de Adão e esta infeliz herança que os primeiros pais nos deixaram. “O pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a morte. E a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram...”. Todos nós caímos, tropeçamos, cedemos ao princípio do prazer, ao orgulho e à autossuficiência. Desde que existimos, temos a tendência de nos rebelarmos, de nos tornarmos independentes, de nos distanciarmos de Deus e de seus caminhos. O resultado não pode ser outro senão o caos na nossa vida e na nossa convivência com os outros.

E o evangelho quer nos levar a uma reflexão de que o homem tem a ver com coisas, com pessoas e com Deus, que respectivamente lhe assegura a vida animal, a vida humana e a vida espiritual. Estas três vidas são as dimensões com possibilidade de vitória ou derrota na medida em que estamos revestidos do Espírito do Filho que tudo recebe como dom e doa, ou com aquele espírito do velho Adão que tudo quer roubar: é uma ironia: roubar o que é nos dado de Deus. Deus é o dom e tudo recebemos dele, menos o pecado. Consequentemente, a possessão representa o contrário, origem de todos os males, “Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6,10). Poder e dinheiro sempre andam de mãos dadas. As coisas, as pessoas e Deus são tres necessidades vitais: o homem pode satisfazer-se de modo diabólico ou filial, roubando ou recebendo tudo como dom, apossando-se ou partilhando.

As tres tentações de Jesus correspondem aos tres aspectos sedutores do fruto proibido (Gn 3,6): é bom possuir as coisas para comer (ídolo do ter), pois nos garante a vida animal. É bonito posssuir as pessoas porque garante a vida humana (ídolo do poder). E é desejável possuir Deus para ser autossuficiente em tudo (ídolo do apossar-se). São os tres ídolos que dominam o homem, projeção de suas necessidades: a idolatria das coisas, com um messianismo econômico que transforma as pedras em pão; a idolatria de Deus, com um messianismo milagroso que quer dispor do próprio Deus; e a idolatria do poder com um messianismo político que quer dominar a todos. Trata-se das tentações de sempre: trocar a salvação por saúde, Deus com nossos honorários/sensações, o outro com o nosso poder. Estes tres ídolos são a própria estrutura do mundo que resulta na sua própria anulação (nulidade nulificante). 

Jesus foi tentado por satanás com os três ídolos. Na verdade, são a luta que Jesus enfrentará em toda a vida no esforço de viver o próprio limite, mesmo aquele extremo, de ser Filho. Jesus, vivendo sua filiação, vence o satanás. Ele desmascara satanás ao lhe dizer: “Vai embora, satanás!”. Mais tarde Jesus vai dirigir o mesmo alerta a Pedro que propõe implicitamente a mesma coisa e por isso, o chamará de “satanás”. Mas Jesus não dirá a Pedro “Vai embora”, e sim “vai atrás de mim!” (Mt 16,23). 

Há, então, duas maneiras  de viver como cristãos: uma maneira de viver como filhos de Deus que nos leva a nos unir com os outros (partilha, solidariedade, compaxão etc.). Outra maneira é a do diabo que nos leva a nos distinguir dos outros pela riqueza, pela honra e pela arrogância. Onde há tentação diabólica há desunião, há miséria, há opressão.

Jesus realizou a escolha do Filho: solidariedade com os irmãos. Jesus recebe tudo do Pai e tudo dá aos irmãos. O seu relacionamento com as coisas não é de apossar-se, mas de doar-se, até o dom de si próprio, quando se fará o Pão para todos em obediência à Palavra do Pai (cf. Jo 6,22-71). O relcionamento de Jesus com Deus não é a vontade de usar Deus para sua própria vantagem, mas a confiança n´Ele. E seu relacionamento com os outros não é de dominar e sim de servir (cf. Mc 10,45), até fazer-se “o Servo” (cf. Jo 13,1-20: lavá-pés). O caminho de Deus, que é amor e partilha, é oposto ao do diábo/satanás que é egoismo (pensar apenas nos próprios interesses e vantagens) e divisão (desunir as pessoas para poder dominá-las facilmente). Trata-se de uma oposição interna que perpassa o coração de cada ser humano. 

Graças a essa entrega de Jesus aos caminhos de seu Deus Pai, Ele triunfou sobre a morte e nos deu a vida, aquela vida e aquele triunfo que a Igreja nos aplica em sua pregação, sua oração, seus sacramentos, seu cuidado pastoral. Se ao nascer como filhos dos homens fomos inseridos no velho Adão, tronco do pecado e da morte, pelo batismo fomos inseridos no novo Adão, para sermos filhos no Filho: filhos de Deus. A Igreja nos convida a nos prepararmos para renovar nosso batismo na próxima Páscoa, meta principal da Quaresma. 

Por isso, estejamos conscientes de que a Quaresma é tempo de conversão, de renovação e de aprofundamento de nossa vida cristã. Tempo de intensificar nossa oração e de revisar nossos caminhos para adaptá-los cada vez mais aos caminhos de Deus, ao seguimento de Jesus Cristo. 

Em cada Eucaristia, o Senhor renova Sua Aliança, uma Aliança eterna e estável. Jesus Cristo sempre foi fiel, tanto ao Pai como a nós (cf. Jo 3,16). É preciso que renovemos nossa entrega agora ao Pai, com Cristo e com a comunidade. Por meio da comunhão na Eucaristia, vamos nos deixar penetrar e plenificar de Sua presença, para que, com seu amor e com sua força, com sua sabedoria e com sua companhia, possamos caminhar pelos caminhos do Senhor para chegar à Páscoa definitiva. 

Se Quiser Estender Mais Sua Reflexão Sobre o Texto Do Evangelho, Leia A Seguinte Meditação!

 

O Evangelho deste dia fala das tentações de Jesus. Como em outros evangelhos sinóticos, o evangelho de Mateus também relata as tentações de Jesus antes de começar sua vida pública. As tentações relatadas no evangelho deste dia acontecem logo depois da cena do Batismo de Jesus (Mt 3,13-17). Toda a vida de Jesus foi, na verdade, uma luta contínua durante sua vida terrena, pois o número “três” nas suas tentações indica o completo e o definitivo. A tríplice negação de Pedro significa, por exemplo, sua renúncia total a ser discípulo (cf. Mc 14,30), uma tomada de posição decidida, no grande combate contra o adversário. O relato nos mostra que Jesus não é conivente do mal. Sua vida é totalmente orientada para Deus e centrada em Deus.         

Como já foi dito na reflexão sobre o Batismo do Senhor, este texto faz parte do complexo literário de Mt 3,1-4,16 que fala da preparação para a missão de Jesus. O evangelista Mt segue nestas passagens o relato de Mc 1,2-13, mas ele o completa com outras informações de outra fonte conhecida como fonte “Q” (Mt 3,7-10.12;4,3-11) e com a própria contribuição (Mt 4,12-17.23-25).          

O motivo condutor desses capítulos é a apresentação de Jesus como Filho de Deus (cf. Mt 2,15;3,17; 4,3.6). Na Genealogia Mt apresenta Jesus como filho de Davi e filho de Abraão provisoriamente (Mt 1,1), porque para ele, Jesus é, antes de tudo, o Filho de Deus. A afirmação velada de Mt 2,15 ao citar Os 11,1: “Do Egito chamei meu Filho” se torna uma confissão explícita no relato do Batismo de Jesus: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3,17). E nas tentações, essa filiação divina é testada. Por três vezes em suas tentações, o tentador apela certamente a essa filiação ao dizer: “Se és Filho de Deus...” (Mt 4,3.6).          

Ao relatar tudo isso, Mt expressa a fé de sua comunidade no Senhor ressuscitado que é o Filho de Deus diante das objeções dos judeus que negavam-se a reconhecer a origem divina de Jesus. Por isso, é fácil perceber nesta passagem um reflexo das controvérsias que a comunidade mateana sustentava com seus vizinhos judeus. Muitos judeus não podiam entender o escândalo de que Jesus tinha morto na cruz desprovido de todo poder e glória e por isso, se negavam a reconhecer Jesus como Filho de Deus. Mas sem dúvida nenhuma, para os cristãos a morte de Jesus em obediência absoluta à vontade do Pai (cf. Mt 26,36-46) era o sinal mais evidente de sua filiação divina.

Vamos aprofundar mais nossa meditação sobre alguns pontos do texto do evangelho deste dia.

1. Jesus Foi Levado Para O Deserto: O Que É O Deserto?        

Logo depois de seu Batismo “Jesus foi levado pelo Espírito para o deserto” (Mt 4,1). Ao dizer que depois do Batismo “Jesus foi levado pelo Espírito” (Mc usa uma palavra mais forte: “impelir” ou “empurrar” Mc 1,12), o texto quer nos dizer que a partir de então Jesus não tinha mais vida privada para si, mas sua vida foi uma obediência plena à voz do Espírito, uma vida sob a direção total do Espírito de Deus. A partir de então sua vida se tornou inteiramente missão. Sua vida se tornou uma vida para Deus e para nós.        

Quando nos deixarmos levar ou guiar pelo Espírito de Deus, nós nos tornaremos uma ocasião de salvação para os outros; nossa vida se tornará uma missão; nossa vida se tornará útil para os demais.        

Jesus foi conduzido para o deserto. O que significa essa condução? Em primeiro lugar, o deserto é o lugar de silêncio e de solidão, longe das ocupações diárias, do ruído e da superficialidade. O deserto é o lugar do absoluto, é o lugar da liberdade que situa o homem diante das questões fundamentais de sua vida. No deserto foi que surgiu o monoteísmo, e por isso, é o lugar da graça. Quando o homem se esvaziar de suas preocupações, ele vai encontrar seu Criador. As grandes coisas começam sempre no silêncio, no deserto, na pobreza. Ninguém poderá participar da missão de Jesus, ninguém poderá participar da missão do evangelho se não participar na experiência do deserto, se não sofrer sua pobreza e sua fome. Não pode nascer um homem novo estando farto de tudo. Pedimos a graça do Senhor que nos permita descobrir aquele silêncio profundo, aquele deserto onde habita sua palavra.        

Em segundo lugar, o deserto é também o lugar da morte: no deserto não há água, elemento fundamental da vida. Com seu ardente e cruel calor o deserto se mostra como o extremo oposto da vida. No AT a solidão faz parte da morte porque o homem, como pessoa, vive de amor, vive de relação. O deserto é, portanto, não é unicamente uma região que destrói a vida biológica, mas ele é também um lugar da tentação onde se põe de manifesto o poder do mal. Jesus está diante desse poder e ele se enfrenta com esse poder para fazer valer de tudo.        

Em terceiro lugar, ao entrar no deserto, Jesus entra também na história da salvação do seu povo, do povo eleito. Esta história começa a raiz da saída do Egito, com os 40 anos de peregrinação através do deserto. No centro desses 40 anos estão os 40 dias de Moisés no monte: dias com Deus cara a cara, dias de jejum absoluto, dias de isolamento do povo na solidão da nuvem, no topo da montanha, e desses dias é que brota a fonte da revelação. Os 40 dias aparecem novamente na vida de Elias, perseguido pelo Rei Acab, o profeta caminha durante 40 dias pelo deserto, voltando, assim, ao ponto de origem da aliança, à voz de Deus para um novo princípio da história de salvação.        

Neste sentido, converter-se ao Senhor é entrar na história da salvação, voltar com Jesus às origens, é refazer o caminho de Moisés e de Elias que é a via que conduz até Jesus e o Pai. 

2. Quem Caminha Com Deus É Tentado: As Tentações De Jesus São Nossas Tentações

Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1)        

A tentação é uma verificação da fidelidade do homem a Deus. “Nossa maturidade se forja nas tentações. Ninguém conhece a si mesmo se não é tentado; nem pode ser coroado, se não vence; nem vencer, se não luta; nem lutar, se lhe faltam inimigos” (Santo Agostinho, In Ps. 60,30).  Quem é tentado não é propriamente o pecador, mas o homem piedoso, que caminha com o Senhor. Por isso, a tentação é, a partir desta ótica, uma prova da predileção de Deus para com aquele que é tentado (cf. Dt 8,2). Jesus é o Filho de Deus. Apesar disso, ele não está isento de qualquer tipo de tentação. A santidade de Jesus não anula sua condição como um ser humano. A tentação faz o cristão rever mais uma vez sua compreensão do desígnio de Deus e o perigo que possa desvi­á-lo do caminho de Deus.        

No relato das tentações observamos que tanto Jesus como o diabo utilizam os texto do AT nesse enfrentamento extraordinário. Aparece aqui um disputa sobre a verdadeira interpretação do AT em relação com o conteúdo desse acontecimento. O evangelho quer enfatizar nessa tentação a seguinte questão fundamental: O AT, lido com Jesus, é Palavra de Deus, revelação de sua verdadeira salvação. “O AT separado de Jesus se torna instrumento de anticristo, de inimigo, de perturbador” (Joseph Ratzinger). 

2.1. Tentação Do Pão (Materialismo)

Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães” (Mt 4,3)       

A tentação do pão nos leva a buscarmos realidades transitórias, finitas, como se fossem o básico da vida. Leva-nos a crer que um pode bastar-se a si mesmo independentemente de qualquer outro e de Deus. Mas esta forma de viver não nos deixa viver satisfeitos. E não nos deixa amar nem no sentir amados.        

Na primeira tentação o Diabo propõe que Jesus converta as pedras do deserto em pão, referindo-se assim ao milagre mosaico do maná. Segundo a tradição rabínica, o Messias tem que repetir esse milagre de forma definitiva, isto é, o Messias deve dar para sempre o pão à humanidade, desterrar a fome e criar um mundo onde todos ficam satisfeitos, o mundo da perfeita prosperidade. Isto seria sinal do Messias, a verdadeira redenção de uma humanidade que padece o flagelo da fome. Segundo esta interpretação, o Messias é aquele que satisfaz plenamente a fome e traz o pão para todos e para sempre. Esta tentação é sempre vinculada com a tentação do poder.        

A proposta do diabo é, na verdade, atendível, porque a fome é uma das pragas mais trágicas que padece a humanidade. Se tivéssemos que expressar espontaneamente uma idéia da redenção, o pão seria, sem dúvida nenhuma, o problema central.        

Na verdade, Jesus nos dá o pão; este é seu dom principal. Mas nos o dá de uma maneira completamente distinta da que propõe o diabo: Jesus, o grão de trigo que morre por nós, se faz pão. A multiplicação dos pães se prolonga na Eucaristia até o fim dos tempos, quando Deus, já sem véu, será para sempre nosso pão. Com sua morte, Jesus realiza o sinal do maná e se revela como o verdadeiro e definitivo Moisés.        

A verdadeira diferença entre o milagre eucarístico (o milagre divino) e o milagre sugerido pelo diabo consiste na resposta do Senhor: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4; Dt 8,3). Quando Deus e a verdade estiverem ausentes, o homem não pode se salvar. Aqui descobrimos a essência da mentira diabólica: na visão do diabo sobre o mundo, Deus aparece como algo supérfluo, inútil, como algo que não é necessário para a salvação do homem. Segundo o diabo, a única coisa decisiva é o pão, a matéria. O centro do homem seria o estômago. O homem não vive apenas de bem-estar material. Em nossos dias um número cada vez maior de indivíduos dispõe de recursos para viver, mas não de um sentido pelo qual viver. A verdade é que, a luta pela sobrevivência não se acaba, e ponto. De repente brota a pergunta: ‘Sobreviver? Mas para que?” (Viktor E. Frankl).       

A mentira do diabo é uma mentira perigosa porque absolutiza uma parte da verdade. Para o diabo basta somente o pão. O homem vive também do pão, mas não somente do pão. A fome do mundo é verdadeiramente um mal terrível, mas suprimindo unicamente este mal não se alcançam as raízes da enfermidade do homem. Jesus multiplica os pães, mas os multiplica por meio da caridade que distribui através de sua palavra, palavra em virtude da qual o homem se abre à verdade e deste modo se salva realmente.        

O desenvolvimento econômico que não é acompanhado de ou pelo desenvolvimento espiritual destrói o homem e o mundo. Sabemos que a terra tem riquezas suficientes para saciar a todos; não são os bens materiais os que faltam, mas as forças espirituais, que poderiam criar um mundo de justiça e de paz. Vivemos num mundo em que, paradoxalmente, se peca por converter os pães em pedras destruindo excedentes alimentações para manter o nível de vida de uns, enquanto outros morrer com este provocado dilúvio da fome. O pecado que o homem frequentemente comete é o egoísmo. Deus pede que nos arrependamos e deixemos o egoísmo, a fim de amar, servir os outros e partilhar com eles o que temos.        

O homem nunca fica satisfeito somente com o pão material. Ele precisa se alimentar com outros pães que são igualmente imprescindíveis para viver feliz: a confiança em Deus, a ação de graças e a adoração de Deus, a verdade, o amor, a generosidade, a compaixão, a solidariedade, a alegria, a esperança, a fidelidade, o serviço etc.... O homem deve aprender a viver de um pão novo, que é a vontade de Deus. Por isso, citando Dt 8,3, Jesus responde ao tentador: “O homem não pode viver só de pão, mas de toda palavra que Deus diz”(Mt 4,4).  Jesus não precisa provar de que é Filho de Deus fazendo milagres pretensiosos. Seja na alegria ou na dor, Jesus está consciente de que é o Filho de Deus. Não por estar na dor é que Deus deixará de amar Jesus, como uma mãe que continua a amar o filho mesmo estando doente. A partir do momento em que o homem se deixa investir ou guiar pela Palavra de Deus, ele participará da vitória de Cristo.        

O diabo (aquele que causa a divisão dentro da pessoa e entre as pessoas) pode nos invadir unicamente quando Deus se converter em algo secundário na vida pessoal. Na confusão de nossas ocupações diárias acontece facilmente que Deus passa ou pode passar para o segundo plano. Deus é silencioso e por isso, precisamos estar com os ouvidos bem atentos. 

2.2. Tentação Do Poder: O Poder Não É Libertador

Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar” (Mt 4,9)        

O afã de poder é uma tentação que vem rondando o homem desde que vive no mundo. O homem ambiciona dominar, ficar acima dos demais. É um instinto primário e voraz em todo homem. Estamos estruturados nas sociedades que se impõem pela força.        

O desejo de poder, o mesmo que o desejo de riquezas, é cego, não se sacia nunca. Impede que possamos criar relações de fraternidade e de igualdade entre todos. Faz impossível um clima de liberdade, já que é necessário reprimir e reduzir os direitos dos demais para conservar os próprios privilégios, conseguidos a custo da escravidão da maioria. A ânsia de poder nos leva a aproveitarmos uns dos outros. Este desejo de domínio vai cristalizando em estruturas de poder, radicalmente injustas, que nos são impostas e que nos envolvem. Mas, consciente ou inconscientemente, os que exercem este tipo de poder são vítimas do próprio poder já que lhes impede de ser livres porque vivem escravos do mesmo poder para conservá-lo. O poder exige adoração, subordinar-lhe todo o demais. E assim surge o ídolo; é um ídolo que carecendo de valor, se coloca no centro da vida e nos pede submissão e obediência.        

A única submissão válida é a Deus que consiste em buscar a autêntica liberdade de todos e para o bem de todos. Jesus manteve totalmente fora das estruturas de pode de seu tempo.        

A tentação de poder é uma tentação constante da Igreja e de cada cristão. Ceder à tentação de poder é aceitar uma verdadeira corrupção da mensagem de Jesus Cristo, ficando absorvido pela vontade de poder. A vontade de poder impossibilita a transmissão da mensagem de Jesus. Cada cristão tem que superar, como Jesus, toda estrutura de poder: entre pais e filhos, entre irmãos, entre os menores e maiores, entre chefes e seus funcionários. O mal não se vence com nenhum tipo de domínio e sim a partir de dentro de cada um, sendo homens novos que seguem do amor de Jesus. Esta utopia do homem novo parece impossível. Mas Jesus de Nazaré realizou este impossível: recusou para sempre o poder e demonstrou com sua vida inteira que é possível viver totalmente para os demais, sem mandar neles, sem ter nenhuma forma de poder ou de domínio sobre os demais. Somente há um Senhor: Deus a quem adorar e uma só ocupação fundamental: o amor. 

2.3. Tentação Do Triunfalismo: Tentação Do Messianismo Espetacular        

Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra” (Mt 4,6).        

Vivemos numa sociedade da facilidade em que tudo carece de importância. Passamos do tabu do pecado ao liberalismo ou à libertinagem de considerar tudo como relativo: cada um tem sua própria moral que fundamenta na lei do mínimo esforço.        

Jesus encarou a tentação do messianismo espetacular. É uma tentação de pensar que Deus esteja sempre ao seu dispor ou à sua ordem (Mt 4,5-7). É a tentação de crer em um Deus fácil, um Deus que nos dá tudo feito e que se adapta a nossas conveniências. Seria brincar com o poder de Deus, transformando-o em magia teatral, numa espécie de consagração da vitória sem guerra, do triunfo sem luta, de querer ganhar dinheiro sem trabalho.        

Jesus quer servir a Deus e não servir-se dele. Jesus não quer nos apresentar um Deus que elimine o risco e as decisões da liberdade humana. Toda superficialidade e facilidade são traição ao Deus de Jesus Cristo.          

Jesus não precisa de provas para acreditar que o Pai o ama, porque o próprio Deus chama Jesus de o Filho amado no batismo (Mt 3,17), e que está permanentemente ao seu lado. Jesus rejeita frontalmente o falso messianismo dos prodígios, o messias milagreiro. Jesus não precisa verificar sua confiança em Deus porque ela é incondicional, mesmo Jesus estando na cruz. Por isso, ao citar Dt 6,16, Jesus diz ao tentador: “Não tentarás o Senhor, teu Deus”(Mt 4,7).          

Tentar Deus hoje em dia quem espera que Ele faça aquilo que nos compete fazer, quem se omite e deixa tudo por conta de Deus. Não podemos pedir a Deus que nos livre(na base de milagre) de todas as dificuldades. Temos que pedir-lhe, isto sim, que em qualquer situação, agradável ou triste, nos conceda a luz e a força para sairmos sempre vencedores e mais amadurecidos, mais homens.                    

Jesus é o Filho de Deus, mas, ao mesmo tempo, um verdadeiramente homem que vive uma vida autenticamente humana, limitada e exposta ao fracasso. Apesar desta debilidade Jesus triunfa porque tem total confiança em seu Pai. O único que Jesus busca é submeter-se à vontade do Pai. Chegou a dizer: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra” (Jo 4,34). Jesus venceu as tentações por nós. E logo depois “os anjos o serviram” (v.11). É uma afirmação que enfatiza a plenitude de comunicação entre o céu e a terra, e no centro está a pessoa de Jesus. Ele é servido pelos anjos como aquele que é reconhecido como o Filho amado de Deus. Ele restabelece a harmonia no cosmos e por causa disto os anjos o servem.          

Nesta situação, Jesus é o símbolo de toda pessoa que, depois de ter atravessado as provações fortes, é reconhecida como filho e readquire o domínio sobre si, sobre as forças obscuras da própria psique, sobre as forças destrutivas que se agitam nela, e passa a conviver harmoniosamente com elas, em familiaridade com Deus, com as outras pessoas e com os anjos.         

 As tentações nos fazem mais próximos de Jesus. Elas são paradigmáticas para o nosso discernimento e a nossa conduta. Não estamos a sós nas nossas tentações. Se Jesus, nosso Senhor, venceu as tentações por nós, venceremos também as mesmas se estivermos sempre unidos com ele. Porque sem ele nada podemos fazer (Jo 15,5).

P. Vitus Gustama,svd

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