sábado, 27 de fevereiro de 2021

03 de Março de 2021

SER VOZ DE DEUS E SERVIR A CRISTO NO IRMÃO

Quarta-Feira da II Semana da Quaresma

Primeira Leitura: Jr 18,18-20

Naqueles dias, 18 disseram eles: “Vinde para conspirarmos juntos contra Jeremias; um sacerdote não deixará morrer a lei; nem um sábio, o conselho; nem um profeta, a palavra. Vinde para o atacarmos com a língua, e não vamos prestar atenção a todas as suas palavras”. 19 Atende-me, Senhor, ouve o que dizem meus adversários. 20 Acaso pode-se retribuir o bem com o mal? Pois eles cavaram uma cova para mim. Lembra-te de que fui à tua presença, para interceder por eles e tentar afastar deles a tua ira.

Evangelho: Mt 20,17-28

Naquele tempo, 17enquanto Jesus subia para Jerusalém, ele tomou os doze discípulos à parte e, durante a caminhada, disse-lhes: 18Eis que estamos subindo para Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos sumos sacerdotes e aos mestres da Lei. Eles o condenarão à morte, 19e o entregarão aos pagãos para zombarem dele, para flagelá-lo e crucificá-lo. Mas no terceiro dia ressuscitará”. 20A mãe dos filhos de Zebedeu aproximou-se de Jesus com seus filhos e ajoelhou-se com a intenção de fazer um pedido. 21Jesus perguntou: “Que queres?” Ela respondeu: “Manda que estes meus dois filhos se sentem, no teu Reino, um à tua direita e outro à tua esquerda”. 22Jesus, então, respondeu-lhes: “Não sabeis o que estais pedindo. Por acaso podeis beber o cálice que eu vou beber?” Eles responderam: “Podemos”. 23Então Jesus lhes disse: “De fato, vós bebereis do meu cálice, mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. Meu Pai é quem dará esses lugares àqueles para os quais ele os preparou”. 24Quando os outros dez discípulos ouviram isso, ficaram irritados contra os dois irmãos. 25Jesus, porém, chamou-os, e disse: “Vós sabeis que os chefes das nações têm poder sobre elas e os grandes as oprimem. 26Entre vós não deverá ser assim. Quem quiser tornar-se grande, torne-se vosso servidor; 27quem quiser ser o primeiro, seja vosso servo. 28Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate em favor de muitos”.

--------------------

A Presença Do Justo Incomoda Os Desonestos Que Querem Manter Sua Desonestidade

Vinde para conspirarmos juntos contra Jeremias. Vinde para o atacarmos com a língua, e não vamos prestar atenção a todas as suas palavras”. São palavras da conspiração dos judeus contra o profeta Jeremias.

A Primeira leitura faz parte de uma seção, no livro de Jeremias, chamada, Confissões de Jeremias. Vários textos do livro de Jeremias nos esclarecem a respeito das intrigas contra Jeremias: Jr 11,8; 12,6; 11,19-20; 12,3; 11,20b-23 (É preciso ler estes textos nesta ordem).

Jeremias é um profeta que sofre com o povo (Jr 8,18-21), mas sofre também por causa do povo. Alguns fazem Jeremias sofrer de modo prticular. Para Jeremias o verdadeiro conhecimento do Senhor não está no culto e sim na justiça (Jr 22,16). Jeremias convida o povo à conversão, uma conversão de coração, pois o pecado está profundamente arraigado. Jeremias é um profeta de coração aberto, que deixa transparecer sua grandeza e sua tragédia.

Os inimigos do profeta julgam que a morte de Jeremias (que eles planejam) não será prejudicial, pois ainda resta muita “palavra” no povo pela presença dos sacerdotes e dos sábios institucionais que falam o que lhes agrada, mas são os falsos profetas que fazem carreira. Consequentemente, segundo eles, as palavras de Jeremias (verdadeiro profeta) não seriam necessárias para eles: Vinde para conspirarmos juntos contra Jeremias; um sacerdote não deixará morrer a lei; nem um sábio, o conselho; nem um profeta, a palavra. Vinde para o atacarmos com a língua, e não vamos prestar atenção a todas as suas palavras”. Os inimigos querem tirar para sempre de seu convívio Jeremias que denuncia sua desonestidade (pecados). Trata-se de uma perseguição mortal contra o profeta. O golpe da língua é uma forma de falar sobre o golpe homicida: “Vinde para o atacarmos com a língua, e não vamos prestar atenção a todas as suas palavras”. Eles querem condenar Jeremias diante da opinião pública como sacrilégio, pois anunciava coisas contra os interesses da nação eleita por Deus. É a mesma acusação que os contemporâneos de Jesus fizeram contra Ele.

Jeremias havia denunciado os pecados do povo e especialmente, os pecados dos chefes do povo, dos representantes oficiais da lei religiosa. Era o dever de Jeremias como profeta e o fazia em nome de Deus para suscitar a conversão.

Mas em vez de se converter, os inimigos querem matar o profeta. Agora Jeremias se vê numa perseguição. Os inimigos acusam Jeremias como “perturbador da ordem” e começam a espiá-lo a fim de surpreender o profeta numa acusação para acabar com ele. Eles podem acabar com o profeta, mas jamais podem acabar com o profetismo, pois Deus continua a mandar seus profetas para despertar a consciência do povo sobre seus pecados a fim de voltar a se converter.

Diante dessa perseguição, o profeta Jeremias se dirige a Deus com esta oração: “Atende-me, Senhor, ouve o que dizem meus adversários. Acaso pode-se retribuir o bem com o mal? Pois eles cavaram uma cova para mim. Lembra-te de que fui à tua presença, para interceder por eles e tentar afastar deles a tua ira”. Esta oração é o primeiro grito do justo, perseguido em nome da missão que Deus lhe confia. Jeremias não quer se vingar com as próprias mãos, mas ele invoca a lei do talião diante do tribunal de Deus (Jr 18,23). 

É normal que o profeta Jeremias pense na vingança porque ele pertence a uma religião que ainda crê na retribuição temporal. Só o NT pode ajudar a ultrapassar este ponto de vista (cf. Mt 5,43-48). 

Através do Batismo recebemos a missão profética ao ser colocado o óleo de crisma na nossa fronte: “Que o Espirito Santo consagre....... (Nome) com este óleo para que participe da missão de Cristo, sacerdote, profeta e rei…”.

Mas não é simples aceitar as consequências do cumprimento fiel de nossa missão profética. Há duas coisas que temos que fazer na missão profética. Por um lado, temos a missão de denunciar o povo seus delitos. Mas, por outro lado, temos que propor caminhos de salvação. É claro que muitos se sentem afetados em seus interesses, carregados de maldades e de injustiças e consequentemente eles tentam acabar com nossa vida. No entanto, não por isso que permaneçamos calados. Ficar calado pode expressar uma atitude sábia. Mas pode também ser interpretado como conivência. Mas o Senhor Jesus Cristo nos ensina que há que orar por nossos inimigos, por aqueles que nos perseguem e amaldiçoam. Sejamos nós os primeiros em abris nosso coração a Deus. Deixemos nossos caminhos de maldade, de injustiça e de desonestidade. Reconheçamos humildemente nossos pecados e voltemos ao Senhor, rico em misericórdia e perdão. Ser Voz De Deus é não compactuar com o mal e maldade de qualquer pessoa e instituição.

Servir Os Outros Para Salvá-los

O Evangelho deste dia fala do anúncio da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo na sua subida para Jerusalém (vv. 17-19) e a reação dos discípulos diante do mesmo, especialmente dos irmãos Tiago e João (vv. 20-28). Em nove lugares diferentes dos evangelhos encontramos esse anúncio: Mt 16,21-23; 17,22-23; 20,17-23; Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34; Lc 9,22. 44-45; 18,31-33.

Notamos que Jesus não somente anuncia a sua morte, mas também a sua ressurreição. A vida em sintonia com a vontade de Deus não termina na cruz e sim na ressurreição ou na sua glorificação. Deus aprova com a glorificação todos aqueles que passarem por provações na vivência da vontade de Deus. Encarar as cruzes como consequência da vida vivida de acordo com os valores vividos por Cristo é sinal de nosso amor a Deus, e a ressurreição é o amor que Deus nos mostra por tudo isso ou a ressurreição é a resposta de Deus para quem vive de acordo com os ensinamentos de Cristo. Em outras palavras, com a ressurreição Deus quer dizer a cada um de nós, neste contexto: “Você está aprovado!”.

Ao ouvir o anuncio de Jesus sobre sua própria morte, os irmãos João e Tiago logo querem pedir a Jesus postos importantes para poder mandar mais. Mas Jesus nunca deu espaço para o egoísmo e para o poder mundano no seu coração. Sua existência é um serviço generoso para libertar os homens de qualquer tipo de escravidão. Pelo bem do homem e em nome do bem praticado para a salvação do homem Jesus aceitou ser crucificado e morto. Porém, Deus o ressuscitou. O mal não é capaz de enterrar o bem. O ódio é incapaz de eliminar o amor, pois “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). Por isso, o bem ou a bondade é o investimento que nunca falha, pois tudo isto tem característica divina. Tudo que é divino não conhece a morte.              

Contrastando com Jesus é a atitude dos filhos de Zebedeu: João e Tiago. Ambiciosos sem limite querem garantir um lugar de destaque no Reino do Messias para receberem honrarias e serem servidos. 

A ambição em si não é negativa. Dentro do seu limite, a ambição pode servir de estímulo para nobres ações e para melhorar uma condição humilde. A ambição se transformará em vício quando a afirmação de si mesmo for exagerada e os meios para atingir a glória forem desonestos. O ambicioso, quando dominado pelo vício, não suporta competidores ou rivais. Ele gosta de humilhar os outros até eliminá-los em nome de sua ambição. Um viciado em ambição dificilmente se preocupa com ser justo. Ele utiliza os outros como escada sobre os quais ele pisa para chegar à própria afirmação ou glória. Uma pessoa de coração nobre não sai à procura das honras e dos aplausos, mas do bem, e ela reconhece o bem onde estiver. 

Na cabeça dos dois filhos de Zebedeu têm apenas ideais de grandeza, postos a serviço do próprio egoísmo. Não lhes passa pela cabeça sacrificarem-se pelos outros, mas exigir que os demais se sacrifiquem por eles.

Diante da ambição dos filhos de Zebedeu Jesus dá esta lição para todos os seus discípulos e todos os cristãos de todos os tempos e lugares: “Quem quiser tornar-se grande, seja vosso servidor”. Para os discípulos de Jesus e para qualquer cristão existe uma grandeza reservada: servir com gratidão e gastar tudo que se tem (talentos, riquezas, cargos sociais etc.) para resgatar a vida do irmão. Servir no sentido cristão é igual a uma vela que se consome iluminando. 

Quem quiser tornar-se grande, seja vosso servidor”. Atrás destas palavras Jesus quer nos alertar que existe um grande risco de transformar nossa missão, nossos trabalhos, nossaliderança” na comunidade/Igreja num exercício de poder e de ambição. Daí sairá a frase: “Quem manda aqui sou eu!”. Este tipo de frase na Igreja de Cristo é a expressão de um conceito de uma eclesiologia totalmente fora daquilo que Jesus quer: “Quanto a vós, nunca vos deixeis chamar de Mestre, pois um é vosso Mestre e todos vós sois irmãos”. (Mt 23,8). A comunidade cristã é uma comunidade de irmãos. Como irmãos um deve se preocupar com outro; um deve cuidar do outro e todos se protegem. Trata-se de uma família onde ninguém é superior ao outro. Consequentemente, na comunidade cristã, a autoridade e a responsabilidade, inclusive a fraternidade devem ser sinônimos de serviço. Na comunidade dos que seguem os ensinamentos de Cristo não tem cabimento o domínio, o autoritarismo, a ambição sem limite e a vontade de poder e de exibicionismo. Se alguém tiver alguma ambição na comunidade é porque está querendo tirar alguma vantagem pessoal em vez de pensar no bem comum. Aquele que serve aos outros em função do bem dos outros é grande no Reino de Deus. Porque se Deus é o Bem absoluto, logo aquele que pratica o bem é de Deus, tem algo de Deus nele e por isso, está com Deus ou do lado de Deus.

Vós sabeis que os chefes das nações têm poder sobre elas e os grandes as oprimem. Entre vós não deverá ser assim. Quem quiser tornar-se grande, torne-se vosso servidor; quem quiser ser o primeiro, seja vosso servo”.

A referência a “os chefes das nações” não pode menos que ser interpretada como referência ao império romano pelos leitores do evangelho. Porém o que interessa é o contraste. O Filho do Homem (Jesus) e os chefes das nações atuam de modos contrapostos e refletem duas atitudes contrapostas. Os chefes atuam “contra” e um exercício de poder que não seja em benefício do povo é pervertido. A atitude de serviço é exatamente contraposta: está em favor do povo. A diaconia é algo desprezado entre os chefes das nações.  O paralelismo de dois grupos e antítese de ambos reforça o contraste: chefes-dominam; os grandes-oprimem (grupo pervertido). Cristo propõe o contrário: ser grande-servidor; ser primeiro-servo.

A comunidade de Jesus deve ser constituída pelas pessoas capazes de abandonar definitivamente toda prática egoísta onde tudo se compra e se vende, até a consciência, em nome da vantagem pessoal. A opção pelo Reino equivale a uma opção pela humanização e fraternização. Tudo isto requer o abandono de todo tipo de ambição e de poder para deixar o poder da graça que salva operar na nossa vida e na nossa convivência. Assim, seremos o sacramento de Deus neste mundo. 

Enquanto Jesus subia para Jerusalém, ele tomou os doze discípulos à parte...”. A Quaresma é também uma “subida para Jerusalém”. É um caminho para a cruz. Nossa vida deve ser uma subida contínua até Deus. Podemos até fazer algumas paradas, mas jamais uma paralisia.

Em cada Eucaristia comungamos o Corpo de Cristo. Ao comungar o Corpo do Senhor estamos querendo proclamar a todos que queremos servir e praticar o bem, que queremos viver como Cristo viveu, que queremos mergulhar no amor sem limite de Jesus Cristo. Sem a sintonia com a vida de Cristo, a Eucaristia da qual participamos, supostamente, carecerá de sentido.               

Vós não sabeis o que estais pedindo”, diz Jesus aos filhos de Zebedeu. Também nós pedimos muitas coisas a Deus, sem que de fato, “saibamos” o significado de nossos pedidos.

Quem quiser tornar-se grande, torne-se vosso servidor; quem quiser ser o primeiro, seja vosso servo. Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate em favor de muitos”. A vida é dada a nós e nós a merecemos dando-a (Rabindranath Tagore). Nossa vida não é simplesmente uma série de dias que vão passando um dia atrás do outro dia, e sim que todos os dias de nossa vida são um dom de Deus, não somente para nós, mas sobretudo um dom de Deus para os demais, para aqueles que vivem conosco. Aproveitemos cada dia de nossa vida para o bem de todos. Nisto consiste nossa felicidade.

P. Vitus Gustama,svd


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

02 de Março de 2021

VIVER NO AMOR FRATERNO E NA JUSTIÇA É O FRUTO MAIS VISÍVEL DE UMA CONVERSÃO PROFUNDA

Terça-Feira da II Semana da Quaresma

Primeira Leitura: Is 1,10.16-20

10 Ouvi a palavra do Senhor, magistrados de Sodoma, prestai ouvidos ao ensinamento do nosso Deus, povo de Gomorra. 16 Lavai-vos, purificai-vos. Tirai a maldade de vossas ações de minha frente. Deixai de fazer o mal! 17 Aprendei a fazer o bem! Procurai o direito, corrigi o opressor. Julgai a causa do órfão, defendei a viúva. 18 Vinde, debatamos — diz o Senhor. Ainda que vossos pecados sejam como púrpura, tornar-se-ão brancos como a neve. Se forem vermelhos como o carmesim, tornar-se-ão como lã. 19 Se consentirdes em obedecer, comereis as coisas boas da terra. 20 Mas se recusardes e vos rebelardes, pela espada sereis devorados, porque a boca do Senhor falou!

Evangelho: Mt 23,1-12

Naquele tempo, 1Jesus falou às multidões e aos seus discípulos e lhes disse: 2Os escribas e os fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. 3Por isso, deveis fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imiteis suas ações! Pois eles falam e não praticam. 4Amarram pesados fardos e os colocam nos ombros dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo. 5Fazem todas as suas ações para serem vistos pelos outros. Eles usam faixas largas, com trechos da Escritura, na testa e nos braços, e põem na roupa longas franjas. 6Gostam de lugar de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas. 7Gostam de ser cumprimentados nas praças públicas e de serem chamados de Mestre. 8Quanto a vós, nunca vos deixeis chamar de Mestre, pois um é vosso Mestre e todos vós sois irmãos. 9Na terra, não chameis a ninguém de pai, pois um é vosso Pai, aquele que está nos céus. 10Não deixeis que vos chamem de guias, pois um é vosso Guia, Cristo. 11Pelo contrário, o maior dentre vós deve ser aquele que vos serve. 12Quem se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado”.

-----------------------         

A Verdadeira Conversão Consiste Na Prática Do Bem e Da Justiça

Ouvi a palavra do Senhor, magistrados de Sodoma, prestai ouvidos ao ensinamento do nosso Deus, povo de Gomorra. Lavai-vos, purificai-vos. Tirai a maldade de vossas ações de minha frente. Deixai de fazer o mal! Aprendei a fazer o bem! Procurai o direito, corrigi o opressor. Julgai a causa do órfão, defendei a viúva”.

O texto que lemos na Primeira Leitura é o primeiro oráculo do Senhor transmitido pelo profeta Isaías. Neste oráculo há uma crítica dura de um culto vazio, por não leva em conta a justiça social. O culto não se justifica sem a prática da justiça social. Positivamente pode-se dizer que é preciso evitar o mal e buscar o bem que concretamente se identifica com a justiça para os oprimidos, para as viúvas e para os órfãos (Cf Is 1,16-18). 

Uma das características da Quaresma é penitencial (conversão). Este tema sempre aparece nas leituras durante a Quaresma, como lemos nas leituras de hoje.

O pecado é sempre um afastamento. Com o pecado se estabelecem distâncias, se abandona a casa paterna. Por Jesus sabemos que o Pai continua esperando nossa volta: conversão. A conversão é uma viagem de volta para a casa paterna e por isso, é uma viagem prazerosa. A conversão implica um duplo movimento. O movimento do pecador que se volta para Deus. Este movimento cria a liberdade. E o movimento de Deus que abre o caminho do retorno. O movimento de Deus que possibilita nossa volta se chama a Graça. É voltar a fazer o bem e viver conforme a justiça de Deus que consiste no amor mútuo como irmãos.

A Primeira Leitura de hoje nos enfatiza que fazer o bem e buscar a justiça, tornando a própria a causa do pobre são manifestações de que o homem realmente deseja retornar ao Senhor, arrependido de seus pecados. A conversão profunda faz nascer um amor libertador. O amor que se libera para o bem dos outros é o amor que se mantém.

Este oráculo, que lemos na Primeira Leitura de hoje, remonta aos primeiros anos do ministério do profeta Isaías. Neste oráculo, o profeta Isaías ataca a hipocrisia religiosa do povo e de seus dirigentes. O povo pensa que vai dar muito prazer a Deus quando lota de gente os átrios de seu templo com oferendas tão opulentas. Mas a impureza moral daqueles que oferecem os sacrifícios é tão repugnante/nojenta que Deus não pode tolerar essa religião sem fé. Trata-se de um oráculo contra a religião formalista, externa e vazia, sem amor. Este povo podre é representado por duas cidades, Sodoma e Gomorra, que se aproveitam das fórmulas religiosas para oprimir e explorar os necessitados.

O profeta exorta o povo a mudar de conduta e assinala em que consiste a verdadeira religião: em obras de amor sincero que se expressa na prática do bem e da justiça, e na defesa do oprimido, como lemos nos textos de Isaías nos dias da semana de Cinzas: “Lavai-vos, purificai-vos. Tirai a maldade de vossas ações de minha frente. Deixai de fazer o mal! Aprendei a fazer o bem! Procurai o direito, corrigi o opressor. Julgai a causa do órfão, defendei a viúva”, assim escreveu o profeta. A verdadeira penitência consiste na procura do bem e da justiça. Caso contrário, o culto careceria de sentido. A boa relação com Deus se mede pela boa relação com o próximo. O meu tratamento com o próximo será usado como critério para o meu julgamento final (cf. Mt 25,31-46). Por isso, há uma possibilidade de Deus aceitar o culto: que o povo se converta acolhendo os pobres nas suas necessidades que são representados pelos órfãos e viúvas. 

Não estamos longe da atitude do povo da época do profeta Isaías. Temos o perigo de que nosso culto a Deus pode se situar apenas no plano de um religião sem fé. O rito, o culto deve traduzir sempre a conversão pessoal e a da comunidade.

A prática do amor fraterno é a essência da religião ou o espírito da religião. Uma religião sem o compromisso com o amor fraterno e sem o compromisso de uma conduta coerente é um ópio que adormece a própria consciência e um instrumento que engana os outros. Deus se importa menos com a religião que seus adeptos praticam do que com o amor fraterno que eles vivem (cf. Mt 25,31-46). Fiquemos atentos para que nossa prática religiosa não seja mais importante do que o próprio Deus e nosso próximo. 

É Preciso Ter Coerência Entre Fé e Vida

Os escribas e os fariseus estão sentados na cátedra de Moisés

A “cátedra de Moisés” é o lugar onde os profetas se sentavam para ensinar segundo aparece em Dt 18,15.18. Este símbolo da tradição judaica, de onde foram dadas as leis que o povo assumiu como mandadas por Deus, foi usurpado pelos poderosos para acomodar as regras à própria vontade e não conforme a vontade de Deus. O que menos importava para os manipuladores da Lei era a vida do povo.

Será que os nossos governantes também menos importam a vida do povo para pensar somente na defesa do próprio interesse egoísta? Será que os escribas e os fariseus da época de Jesus continuam vivendo entre nós? Quem pode, como Jesus, gritar em nome do povo sofredor para os manipuladores da vida do povo?

No evangelho de hoje, Jesus condena duramente os fariseus “que dizem e não fazem”. Nossas palavras não podem ultrapassar nossa vida ou nossas ações para não nos tornarmos hipócritas. O que menos importava para os manipuladores da Lei (os escribas e fariseus) era a vida do povo. A grandeza na nova forma de vida inaugurada por Jesus se baseava no serviço, especialmente aos pobres, aos simples e aos que não tinham nenhum privilegio, pois deles não se esperava nada de troca: “O maior dentre vós deve ser aquele que vos serve”. Prestar serviço sem humildade é, ao mesmo tempo, egoísmo e egocentrismo (Mahatma Gandhi). O objetivo da crítica de ambos (Isaías e Jesus) é provocar a conversão nos seus ouvintes. Uma religião sem fé e sem amor não leva ninguém para o céu.

Sem dúvida nenhuma que o capítulo 23 do Evangelho de Mateus é uma das páginas mais violentas do Novo Testamento. Quem o fica impressionado, sobretudo, com a linguagem dura de Jesus. Neste capítulo, o evangelista Mt inicia com uma introdução (vv.1-12) para um extenso discurso que Jesus pronuncia contra os líderes religiosos de Israel da sua época (vv.13-36) como consequência de um longo enfrentamento com eles (Mt 21-22). Estes ataques completam a obra dos profetas contra a falsa religiosidade. As palavras são duras porque o perigo que é denunciado é grave. E a validade da denúncia profética que ouvimos dos lábios de Jesus, neste capítulo, não perde sua atualidade, pois seu alcance é universal. O “fariseu” a quem Jesus dirige suas palavras duras e denúncia é personagem típico, representa um paradigma de comportamento oposto ao Evangelho.

Uma religião que não liberta as pessoas, mas somente está cheia de regras por regras, não é uma verdadeira religião. A intenção de Jesus é chamar a atenção para um perigo que ronda toda comunidade cristã: o risco de esconder-se atrás de normas e regras, atrás dos preceitos, o risco do abuso espiritual, de exercer o poder sobre os outros sob um pretexto religioso, o risco de usar a moralização para desviar a atenção das fraquezas humanas.

A religião real é na essência uma relação interior entre Deus e o homem. As regras são necessárias, se forem instrumentos para facilitar este relacionamento a fim de alcançar a graça e a misericórdia de Deus.

É verdade que a experiência interior precisa achar expressão externa, porém, esta expressão exterior deve ser natural, sem exibicionismo religioso. Sabemos que o exibicionista é uma pessoa de personalidade superficial, fraca e sem ideais sólidos. A norma de seu comportamento é a ostentação de si próprio. Sua preocupação é colocar-se em evidencia, ser notado e elogiado. Toda pessoa possui algum lado bom, e ninguém consegue resistir à tentação de considerar-se mais do que vale e de parecer mais do que é. Mas um exibicionista exagera tudo. Ele não quer ser bom, mas quer parecer bom. Por isso, ele fica com um coração vazio. Por esta razão, Jesus quer que abandonemos este comportamento para não nos tornarmos pessoas vazias, mas pessoas cheias de espírito de fraternidade e de igualdade. 

Por isso, outro ponto que Jesus condena é o autoritarismo religioso e o uso da religião em função do prestigio e do poder pessoal. Jesus pede aos cristãos, seus seguidores que sejam irmãos, e que se constituam como comunidades igualitárias e evitem os títulos e as dependências: “Quanto a vós, nunca vos deixeis chamar de mestre, pois um é vosso mestre e todos vós sois irmãos” (Mt 23,8). É bom lembrar que o primeiro pecado, modelo de todos os outros, é contado na Bíblia como fruto da fome de poder e vaidade: vinha do desejo de competir até com Deus (cf. Gn 3,1ss).        

Além do exibicionismo e o autoritarismo religioso, Jesus critica também a hipocrisia dos fariseus e dos escribas. A palavra hipócrita designava no mundo grego antigo o ator que, com uma máscara e um disfarce, assumia uma personalidade alheia. O ator representa um papel, não o que ele é inteiramente. Fingia diante do público ser outra pessoa frequentemente sem nada a ver com a sua própria personalidade, porque trabalhava para a plateia. Ele não vivia sua própria identidade. 

A hipocrisia consiste em enganar os outros através dos gestos religiosos ou das prerrogativas sacrais a quem não se tem direito. Em outras palavras, tem-se a aparência de um santo, mas por trás há podridão. Aparentemente, o hipócrita presta culto a Deus, mas que, na verdade, ele procura várias maneiras para que ele esteja em destaque sempre, e não Deus. Deste modo ele toma o lugar de Deus atribuindo a si mesmo um poder que não merece (Mt 23,8-10; cf. Mt 15,3-14). Em vez de conduzir as pessoas para Deus, o hipócrita faz com que as pessoas estejam ao serviço de seu egoísmo. O hipócrita põe sua ciência teológica a serviço de seu egoísmo. Por causa do desejo de querer estar sempre em destaque o hipócrita acaba desviando o sentido das práticas religiosas. Segundo o Evangelho de hoje hipócrita é aquele que diz, mas não faz. É aparentar ser bom, sem sê-lo. É uma incoerência de vida. É uma duplicidade, um fingimento. Ele extremamente se apresenta como um homem religioso, alguém que faz questão de proferir palestras bonitas sobre o amor, sobre a paz, sobre o respeito para com os outros, mas quando ninguém o viver assim. 

A condenação da hipocrisia religiosa por parte de Jesus é um aviso para todos nós cristãos. A hipocrisia é uma tentação permanente ao longo da história da Igreja. Ela está presente nos sacerdotes, bispos e leigos. Todo cristão é candidato a este sistema de falsidade que se manifesta de múltiplas maneiras: na dissociação de crenças e conduta, no divórcio entre a e a vida, no orgulho religioso de quem se crê bom e santo e despreza os outros porque falham; em contentar-se com a estrita observância legal, esquecendo a conversão do coração. A dignidade da pessoa humana não consiste em parecer bom, mas em ser bom.      

Quando temos entre as mãos os corações daqueles que queremos melhores e os sabemos atrair com a mansidão de Cristo, percorremos metade do nosso caminho apostólico. Ao perceberem isto, os corações deles se tornam abertos, como terra boa, onde podemos semear a semente da Palavra de Deus. A Igreja nunca deve esquecer-se de que foi instituída para servir. O serviço é o único critério da grandeza para um cristão segundo o evangelho (Mt 23,11). O próprio Cristo é o exemplo disso (cf. Jo 13,15). Para se manter nessa missão a Igreja deve converter-se permanentemente. Segundo o profeta Isaías (cf. Is 1,10.16-20) o âmago da penitência está na procura do bem e da justiça, da retidão e da honestidade, da caridade e da solidariedade. 

A Palavra de Deus proclamada hoje nos chama à conversão que se traduz no serviço despretensioso. Viver em estado permanente de conversão é a lei de crescimento para qualquer pessoa que acredita em Deus. Quem não reconhecer seus pecados ata-os às costas como uma mochila e põe em evidência os pecados dos outros. Não por diligência, mas por inveja. Acusando o próximo, procura esquecer a si mesmo (Santo Agostinho. In ps. 100,3). O móvel da conversão não é tanto a ameaça de castigo ou de perder a salvação, quanto a fascinação de penetrar na vida do amor trinitário divino. A conversão conduz as pessoas juntas à maturidade espiritual, que se reflete em sua aversão ao mal e sua atração pelo bem. 

Se quisermos mostrar nossa fé aos outros não digamos em quantas verdades acreditamos; precisamos mostrar aos outros como vivemos o amor fraterno. Não nos transformamos em crentes ou fieis quando mudamos apenas nossa forma de pensar, e sim quando mudamos nossa forma de viver na fraternidade. Quando deixamos de acreditar em Deus com nossa forma de viver, começaremos a venerar muitos ídolos e explorar e oprimir os mais fracos da sociedade. Se nosso Deus só vende seguros para depois da morte e não tem respostas para esta vida, muitos não vão querer partilhar de nossa fé. Creio que muitos ateus não se opõem a Deus e sim se opõem às caricaturas de Deus que os crentes ou fieis lhes mostram.             

P. Vitus Gustama,svd

01 de Março de 2021

A MISERICÓRDIA NOS APROXIMA DE DEUS E NOS TORNA IRMÃOS PARA O PRÓXIMO

Segunda-Feira da II Semana da Quaresma

Primeira Leitura: Dn 9,4-10

4 “Eu te suplico, Senhor, Deus grande e terrível, que preservas a aliança e a benevolência aos que te amam e cumprem teus mandamentos; 5 temos pecado, temos praticado a injustiça e a impiedade, temos sido rebeldes, afastando-nos de teus mandamentos e de tua lei; 6 não temos prestado ouvidos a teus servos, os profetas, que, em teu nome, falaram a nossos reis e príncipes, a nossos antepassados e a todo povo do país. 7 A ti, Senhor, convém a justiça; e a nós, hoje, resta-nos ter vergonha no rosto: seja ao homem de Judá, aos habitantes de Jerusalém e a todo Israel, seja aos que moram perto e aos que moram longe, de todos os países, para onde os escorraçaste por causa das infidelidades cometidas contra ti. 8 A nós, Senhor, resta-nos ter vergonha no rosto: a nossos reis e príncipes, e a nossos antepassados, pois que pecamos contra ti; 9 mas a ti, Senhor, nosso Deus, cabe misericórdia e perdão, pois nos temos rebelado contra ti, 10 e não ouvimos a voz do Senhor, nosso Deus, indicando-nos o caminho de sua lei, que nos propôs mediante seus servos, os profetas”.

Evangelho: Lc 6,36-38

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: 36 "Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso. 37 Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados; 38 dai, e dar-se-vos-á. Colocar-vos-ão no regaço medida boa, cheia, recalcada e transbordante, porque, com a mesma medida com que medirdes, sereis medidos vós também".

---------------------

Reconhecer-se Pecador É o Ponto De Partida Para a Conversão 

Começamos a Segunda Semana da Quaresma com uma oração penitencial muito bela, posta nos lábios de Daniel. Ele reconhece a culpa do povo eleito, tanto do Sul (Judá) como do Norte (Israel), tanto do povo como de seus dirigentes. Em outras palavras, todos pecaram. Eles não levaram em conta as denúncias dos profetas que Deus lhes enviou: “Temos pecado, temos praticado a injustiça e a impiedade, temos sido rebeldes, afastando-nos de teus mandamentos e de tua lei; não temos prestado ouvidos a teus servos, os profetas, que, em teu nome, falaram a nossos reis e príncipes, a nossos antepassados e a todo povo do país (Dn 9,5-6). Daniel pede o perdão a Deus pelos pecados de todos.

Além da confissão do pecado e o pedido de perdão, Daniel faz uma emocionada confissão da bondade de Deus que continua sendo fiel à Aliança com seu povo: “Deus grande e terrível, que preservas a aliança e a benevolência aos que te amam e cumprem teus mandamentos”. 

Eu te suplico, Senhor, Deus grande e terrível, que preservas a aliança e a benevolência aos que te amam e cumprem teus mandamentos; temos pecado, temos praticado a injustiça e a impiedade, temos sido rebeldes, afastando-nos de teus mandamentos e de tua lei; não temos prestado ouvidos a teus servos, os profetas, que, em teu nome, falaram a nossos reis e príncipes, a nossos antepassados e a todo povo do país”.  É a oração de Daniel que lemos na Primeira Leitura. Toda a súplica de Daniel nesta oração tem uma nítida influência da doutrina do profeta Jeremias. A calamidade (pecado) do povo serve como fundo para sua súplica. Essa prece obedece às leis das orações penitenciais em virtude das quais um homem se dirige a Deus em nome de todo o povo, confessa o caráter pecador desse povo que não se importa com seu Criador.

Reconhecer nossa debilidade é o melhor ponto de partida para a conversão pascal, para nossa volta aos caminhos de Deus. Aquele que se crê santo, não se converte. Aquele que se sente rico, não pede. Aquele que se acha sabe de tudo, não pergunta mais. E quem não pergunta, fica bobo eternamente. O verdadeiro santo é aquele que se converte permanentemente, pois ele percebe a santidade de Deus, por um lado, e reconhece sua própria pecaminosidade, por outro lado. O santo é aquele que sempre se considera pecador.

A partir da oração de Daniel, cada um de nós precisa se perguntar: quais são meus pecados, minhas falhas desde a Páscoa do ano passado? Quais são pecados dos meus pais, dos meus filhos, dos meus irmãos, da minha comunidade? Eu preciso, como Daniel, fazer uma oração de intercessão. Depois do exame da consciência, façamos nossa a súplica do Salmo Responsorial: “Não lembreis as nossas culpas do passado, mas venha logo sobre nós vossa bondade, pois estamos humilhados em extremo. Ajudai-nos, nosso Deus e Salvador! Por vosso nome e vossa glória, libertai-nos! Por vosso nome, perdoai nossos pecados!”.

Em segundo lugar, a oração de Daniel pode ser um perfeito guia para compor nossa oração mundial em momentos tão críticos como os que vivemos. Cada cristão é batizado para ser enviado ao mundo a fim de conduzir as pessoas para Deus. Cada cristão é irmão de todos e todos são seus irmão, pois temos Deus como nosso Pai comum. Por isso, cada cristão tem tarefa, para não dizer tem obrigação de rezar não somente pelas próprias necessidades, mas também pela necessidade do mundo inteiro. Rezar tem como objetivo principal conformar-se com a vontade de Deus. O cristão tem que pedir também o perdão pelos pecados que a humanidade cometeu para que todos possam voltar a viver na fraternidade universal. Temos que rezar por todos os que encontramos em qualquer lugar e em qualquer situação. Somos irmãos de todos, pois o Deus em que acreditamos é o Pai comum como já foi dito.

Somos chamados a Ser Misericordiosos Como Deus Pai Que Não Se Cansa De Nos Perdoar

Se a direção da Primeira Leitura é o reconhecimento dos pecados e o pedido do perdão a Deus, o texto do Evangelho de hoje nos faz tirarmos as consequências: Jesus nos ensina a sabermos perdoar o próximo. E o programa é muito concreto e progressivo: “Sede misericordiosos...Não julgueis... Não condeneis... perdoai...Dai...”. E o modelo a ser seguido é o próprio Deus: “Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso”.  Na misericórdia há espaço para todos: para Deus e para o irmão/irmã que pecou contra nós. Esta atitude de perdão Jesus põe como condição para que sejamos perdoados por Deus: “Com a mesma medida com que medirdes, sereis medidos vós também". É o que pedimos no Pai-Nosso: “Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Às vezes somos duros de coração e sem piedade em nossos julgamentos contra o próximo. Por isso, devemos aceitar o outro passo que Jesus propõe: ser misericordioso e perdoar os demais como Deus é misericordioso e nos perdoa sempre.

O texto do evangelho deste dia faz parte do Sermão de Jesus chamado Sermão da Planície no evangelho de Lucas (Lc 6,20-49). Chamado de Sermão da Planície é para distingui-lo do Sermão da Montanha de Mateus (Mt 5-7). Se em Mateus Jesus faz seu Sermão no topo da montanha, em Lucas Jesus faz o Sermão na planície depois que Jesus na companhia dos discípulos desceram da montanha onde os Doze Apóstolos foram escolhidos (Lc 6,12-16). O Sermão da Planície é muito mais breve do que o Sermão da Montanha.

“Sede misericordiosos.......”

É uma palavra intraduzível que hoje corre o risco de ser mal interpretada. Procuremos seus sinônimos: Compartilhem as tristezas dos outros, sejam indulgentes, deixem-se comover, perdoem-se/desculpem-se, participem na tribulação de seus irmãos, esqueçam as injúrias, sejam sensíveis, não guardem rancor, tenham bom coração! Ser misericordioso significa amar e perdoar até aquele que não mereceria ser amado e perdoado.

...como também o vosso Pai é misericordioso”. A moral cristã se caracteriza pelo fato de que é, habitualmente, uma imitação de Deus. São João dirá: “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). Lucas diz: “Deus é misericordioso”. Jesus insiste sobre este ponto. Ele próprio era uma perfeita “imagem de Deus”, que modelava seu comportamento segundo o do Pai. A medida do amor misericordioso de Deus deve ser a medida de nosso amor aos outros. A maneira como Deus nos ama deve ser refletida na nossa maneira de amor ao próximo: ““Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso”. 

E eu? Muitas vezes, infelizmente, não me assemelho ao Pai nem a Jesus no minha vida e nos meus procedimentos. Muitas vezes, eu desfiguro a imagem de Deus em mim a ponto de apagar a imagem de Deus que sou eu. Como o meu modo de viver, muitas vezes, eu dou uma má ideia do Senhor, especialmente toda vez que eu não vivo de acordo com o amor. É preciso pedir o perdão ao Senhor.

“Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso”. O texto do evangelho lido e proclamado neste dia fala da moral cristã que se caracteriza pelo fato de que é, habitualmente, uma imitação de Deus, como foi dito, e por isso, não é uma simples moral humana. Na sua primeira Carta são João diz: “Deus é amor” (1Jo 4,8.16), e são Lucas diz no evangelho deste dia: “Deus é misericórdia”.  Em Mateus Jesus diz: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48). Em Lucas Jesus diz: “Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso”. Para o evangelista Lucas a perfeição cristã consiste na prática da misericórdia. Ser verdadeiro cristão, segundo Lucas, é imitar o Deus de amor e de misericórdia. Consequentemente, na vivência do amor e da misericórdia não haverá lugar para o julgar e o condenar do próximo. 

O cristão deve ser reconhecível e reconhecido pelo amor (e pela misericórdia; cf. Jo 13,35). Jesus concebe este amor não como um sentimento e sim como uma atuação. Não é um simples sentimento humanitário. Este amor do qual fala Jesus tem uma raiz existencial: a realidade do Pai: "Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso”. É o Pai quem dá sentido ao amor vivido na fraternidade. Através do amor misericordioso vivido Deus reconhece o homem como filho Seu e o homem se reconhece como filho de Deus.

Segundo Jesus, ser misericordioso deve ser uma regra para todos os discípulos. Se no Antigo Testamento o ideal da perfeição era ser santo (cf. Lv 19,2; veja também 11,44), o Jesus de Lucas coloca a misericórdia como o ideal da perfeição para um cristão. O ideal da perfeição cristã consiste em estar em conformidade ou em sintonia com a misericórdia de Deus. A imitação e a vivência da misericórdia excluem o cristão de qualquer tipo de julgamento para assumir a atitude de perdão, pois o próprio Deus não usa de justiça contra nós pecadores e sim Ele usa de misericórdia. Sem a misericórdia de Deus ninguém sobreviveria sobre a face da terra. “O amor apaixonado de Deus pelo seu povo — pelo homem — é ao mesmo tempo um amor que perdoa. E é tão grande, que chega a virar Deus contra Si próprio, o seu amor contra a sua justiça. Nisto, o cristão vê já esboçar-se veladamente o mistério da Cruz: Deus ama tanto o homem que, tendo-Se feito Ele próprio homem, segue-o até à morte e, deste modo, reconcilia justiça e amor” (Bento XVI: Carta Encíclica: Deus Caritas Est, 10).

A misericórdia não é simplesmente amor: é um amor que não conhece limites, barreiras, obstáculos, fronteiras: é um amor que sabe amar também quem se tornou indigno do amor. Enquanto o amor diz somente doação, a misericórdia diz super-doação. A misericórdia é um especial poder do amor, que prevalece sobre o ódio, a infidelidade, a deslealdade, a ingratidão. Como diz João Paulo II: “Esse amor misericordioso é capaz de curvar-se ante o filho pródigo, ante a miséria humana e, sobretudo, ante a miséria moral, ante o pecado. A misericórdia se manifesta em seu aspecto verdadeiro e próprio quando valoriza, promove e explicita o bem em todas as formas de mal existente no mundo e no homem” (Dives In Misericordia, no.6).

O melhor caminho para humanizar cada vez mais um ser humano é o do amor e da misericórdia. Um cristão cheio de amor e de misericórdia é muito humano e educado. Ele é tão humano que se transforma em uma manifestação daquilo que é divino. Naquele que ama tem algo divino, poisDeus é amor”. Jesus Cristo foi tão humano e por isso, foi tão divino. Para sermos divinos temos que ser muito humanos. É o paradoxo de ser cristão. 

Para Jesus todos os pecados da humanidade têm a mesma origem: a cobiça que é a manifestação clara do próprio egoísmo. O objetivo de todos os atos de um egoísta é apenas seu próprio interesse. Enquanto que o verdadeiro amor é feito de doação, sem cálculos e sem interesses. Quem ama, ama o próprio amor. “O amor não tem mais razões que o próprio amor” (Santo Agostinho. In epist. Joan. 8,5). 

Em muitos momentos não fomos capazes de ser misericordiosos para com o próximo. Naquele momento em que fomos tão duros, impiedosos, inflexíveis até tão cruéis, apagamos a imagem do Deus misericordioso de nossa vida. Com esta atitude esquecemos aquilo que São Paulo nos diz: “Sois uma carta de Cristo escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tabuas de pedra, mas em tabuas de carne, nos corações” (2Cor 3,3). O Espírito de Deus vivo deve ser manifestado muito claro e muito encarnado na nossa vida para que os outros, até os “analfabetos” na consigam lê-lo. 

Reconhecer nossa debilidade é o melhor ponto de partida para a conversão, para a nossa volta aos caminhos de Deus de misericórdia. Quem se acha santo, não se converte. Quem se acha rico, não pede. Quem se acha saber de tudo, não pergunta. Será que reconhecemos pecadores? Será que somos capazes de pedir o perdoa do fundo de nosso ser? 

Além de reconhecer nossa debilidade, temos que aceitar outro passo que Jesus nos propõe hoje: ser misericordioso e perdoar os demais como o próprio Deus é misericordioso e perdoa nossos pecados. Perdoar significa crer na capacidade que nós seres humanos temos para começar de novo. O perdão não é uma simples trégua para fazer tolerável a vida sem uma nova criação que nos aproxima do plano de Deus. Nosso grande desafio é chegarmos a entender que precisamos viver toda a existência cristã na dinâmica do perdão que é a dinâmica do começo e do recomeço permanente. 

Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso”. Para Jesus as relações com o próximo são vistas a partir da perspectiva da misericórdia. O cristão não é aquele que tem função de condenar e sim a tarefa de ser benigno e indulgente; é aquele que, como o Pai do céu, outorga misericórdia e encontra o gozo na ação. E são Tiago nos recorda: “O julgamento será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia. A misericórdia, porém desdenha o julgamento” (Tg 2,13).

P. Vitus Gustama,svd

V Domingo Da Páscoa, 28/04/2024

PERMANECER EM CRISTO PARA PRODUZIR BONS FRUTO, POIS ELE É A VERDADEIRA VIDEIRA V DOMINGO DA PÁSCOA ANO “B” Primeira Leitura: At 9,26-31...