JESUS CRISTO, A PALAVRA DO
PAI, É O NOSSO SALVADOR
III DOMINGO DO TEMPO COMUM
Primeira Leitura: Neemias
8,2-4a.5-6.8-10
Naqueles dias, 2 o sacerdote Esdras apresentou a Lei diante da assembleia de homens, de mulheres e de todos os que eram capazes de compreender. Era o primeiro dia do sétimo mês. 3 Assim, na praça que fica defronte da porta das Águas, Esdras fez a leitura do livro, desde o amanhecer até ao meio-dia, na presença dos homens, das mulheres e de todos os que eram capazes de compreender. E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei. 4ª Esdras, o escriba, estava de pé sobre um estrado de madeira, erguido para esse fim. 5 Estando num lugar mais alto, ele abriu o livro à vista de todo o povo. E, quando o abriu, todo o povo ficou de pé. 6Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus, e todo o povo respondeu, levantando as mãos: “Amém! Amém!” Depois inclinaram-se e prostraram-se diante do Senhor, com o rosto em terra. 8E leram clara e distintamente o livro da Lei de Deus e explicaram seu sentido, de maneira que se pudesse compreender a leitura. 9O governador Neemias e Esdras, sacerdote e escriba, e os levitas que instruíam o povo, disseram a todos: “Este é um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus! Não fiqueis tristes nem choreis”, pois todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei. 10E Neemias disse-lhes: “Ide para vossas casas e comei carnes gordas, tomai bebidas doces e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor. Não fiqueis tristes, porque a alegria do Senhor será a vossa força”.
Segunda Leitura: 1Cor 12,12-14.27
Irmãos: 12Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo. 13De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito. 14Com efeito, o corpo não é feito de um membro apenas, mas de muitos membros. 27Vós, todos juntos, sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros desse corpo.
Evangelho: Lc 1,1-4;4,14-21
1Muitas
pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se realizaram
entre nós, 2como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio,
foram testemunhas oculares e ministros da palavra. 3Assim sendo, após fazer um
estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi
escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo. 4Deste modo, poderás
verificar a solidez dos ensinamentos que recebeste. Naquele tempo, 4,14Jesus
voltou para a Galileia, com a força do Espírito, e sua fama espalhou-se por
toda a redondeza. 15Ele ensinava nas suas sinagogas e todos o elogiavam. 16E
veio à cidade de Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, entrou na
sinagoga no sábado, e levantou-se para fazer a leitura. 17Deram-lhe o livro do
profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está escrito:
18 “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção
para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos
cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos 19e para
proclamar um ano da graça do Senhor”. 20Depois fechou o livro, entregou-o ao
ajudante e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos
nele. 21Então começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura
que acabastes de ouvir”.
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Domingo Dedicado à Palavra de Deus
“A Palavra de Deus seja cada vez mais conhecida, celebrada e difundida” (Misericordia et Misera,7). Com essas palavras, o papa Francisco, no final do Jubileu da Misericórdia, encorajava a Igreja a cada vez mais colocar no centro de sua vida e de sua ação pastoral a Sagrada Escritura. O papa Francisco desejava, no final do Jubileu da Misericórdi, que “toda comunidade, em um domingo do ano litúrgico, pudesse renovar o empenho pela difusão, pelo conhecimento e aprofundamento da Sagrada Escritura, um domingo dedicado inteiramente à Palavra de Deus, para compreender a inexaurível que provém daquele diálogo constante de Deus com seu povo” (Misericórdia et Misera,7).
Como concretização do seu desejo, através de
seu Motu Próprio, APERUIT ILLIS (30/11/2019), o Papa Francisco estabelece
o Terceiro Domingo do Tempo Comum como Domingo dedicado à Palavra de Deus.
Quero destacar alguns pontos:
· “Estabeleço que o III Domingo do Tempo Comum seja dedicado à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus. Este Domingo da Palavra de Deus colocar-se-á, assim, num momento propício daquele período do ano em que somos convidados a reforçar os laços com os judeus e a rezar pela unidade dos cristãos. Não se trata de mera coincidência temporal: a celebração do Domingo da Palavra de Deus expressa uma valência ecuménica, porque a Sagrada Escritura indica, a quantos se colocam à sua escuta, o caminho a seguir para se chegar a uma unidade autêntica e sólida.
As comunidades encontrarão a forma de viver este Domingo como um dia solene. Entretanto será importante que, na celebração eucarística, se possa entronizar o texto sagrado, de modo a tornar evidente aos olhos da assembleia o valor normativo que possui a Palavra de Deus. Neste Domingo, em particular, será útil colocar em evidência a sua proclamação e adaptar a homilia para se pôr em destaque o serviço que se presta à Palavra do Senhor. Neste Domingo, os Bispos poderão celebrar o rito do Leitorado ou confiar um ministério semelhante, a fim de chamar a atenção para a importância da proclamação da Palavra de Deus na liturgia. De fato, é fundamental que se faça todo o esforço possível no sentido de preparar alguns fiéis para serem verdadeiros anunciadores da Palavra com uma preparação adequada, tal como já acontece habitualmente com os acólitos ou os ministros extraordinários da comunhão. Da mesma maneira, os párocos poderão encontrar formas de entregar a Bíblia, ou um dos seus livros, a toda a assembleia, de modo a fazer emergir a importância de continuar na vida diária a leitura, o aprofundamento e a oração com a Sagrada Escritura, com particular referência à lectio divina” (Aperuit Illis n.3).
· A Bíblia não pode ser património só de alguns e, menos ainda, uma coletânea de livros para poucos privilegiados. Pertence, antes de mais nada, ao povo convocado para a escutar e se reconhecer nesta Palavra. ... A Bíblia é o livro do povo do Senhor que, escutando-a, passa da dispersão e divisão à unidade. A Palavra de Deus une os crentes e faz deles um só povo (n.4).
· Nesta unidade gerada pela escuta, primariamente os Pastores têm a grande responsabilidade de explicar e fazer compreender a todos a Sagrada Escritura. Uma vez que é o livro do povo, todos os que têm a vocação de ser ministros da Palavra devem sentir fortemente a exigência de a tornar acessível à sua comunidade (n.5).
· É preciso dedicar tempo conveniente à preparação da homilia. Não se pode improvisar o comentário às leituras sagradas. Sobretudo a nós, pregadores, pede-se o esforço de não nos alongarmos desmesuradamente com homilias enfatuadas ou sobre assuntos não atinentes. Se nos detivermos a meditar e rezar sobre o texto sagrado, então seremos capazes de falar com o coração para chegar ao coração das pessoas que escutam, de modo a expressar o essencial que é recebido e produz fruto. Nunca nos cansemos de dedicar tempo e oração à Sagrada Escritura, para que seja acolhida, «não como palavra de homens, mas como ela é realmente, palavra de Deus» [1Ts 2, 13] (n.5).
· O dia dedicado à Bíblia pretende ser, não «uma vez no ano», mas uma vez por todo o ano, porque temos urgente necessidade de nos tornar familiares e íntimos da Sagrada Escritura e do Ressuscitado, que não cessa de partir a Palavra e o Pão na comunidade dos crentes. Para tal, precisamos de entrar em confidência assídua com a Sagrada Escritura; caso contrário, o coração fica frio e os olhos permanecem fechados, atingidos, como somos, por inumeráveis formas de cegueira (n.8).
· A Bíblia não é uma coletânea de livros de história nem de crónicas, mas está orientada completamente para a salvação integral da pessoa. A inegável radicação histórica dos livros contidos no texto sagrado não deve fazer esquecer esta finalidade primordial: a nossa salvação. Tudo está orientado para esta finalidade inscrita na própria natureza da Bíblia, composta como história de salvação na qual Deus fala e age para ir ao encontro de todos os homens e salvá-los do mal e da morte (n.9b).
· Outra provocação que nos vem da Sagrada Escritura tem a ver com a caridade. A Palavra de Deus apela constantemente para o amor misericordioso do Pai, que pede a seus filhos para viverem na caridade. ... Escutar as sagradas Escrituras para praticar a misericórdia: este é um grande desafio lançado à nossa vida. A Palavra de Deus é capaz de abrir os nossos olhos, permitindo-nos sair do individualismo que leva à asfixia e à esterilidade enquanto abre a estrada da partilha e da solidariedade (n.13).
· Possa o domingo dedicado à Palavra fazer crescer no povo de Deus uma religiosa e assídua familiaridade com as sagradas Escrituras, tal como ensinava o autor sagrado já nos tempos antigos: esta palavra «está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a praticares» [Dt 30, 14] (n.15).
Neste documento, o Papa Francisco enfatiza a
ligação entre a Sagrada Escritura e a fé;
a Sagrada Escritura e a Eucaristia; a Sagrada Escritura e os Sacramentos:
·
“É profundo o vínculo entre a Sagrada Escritura e a fé dos crentes. Sabendo que a fé
vem da escuta, e a escuta centra-se na Palavra de Cristo (cf. Rm 10,
17), daí se vê a urgência e a importância que os crentes devem dar à escuta
da Palavra do Senhor, tanto na ação litúrgica, como na oração e reflexão
pessoais” (n.7)
·
Sagrada
Escritura e Sacramentos são inseparáveis entre si. Quando os Sacramentos
são introduzidos e iluminados pela Palavra, manifestam-se mais claramente como
a meta dum caminho onde o próprio Cristo abre a mente e o coração ao
reconhecimento da sua ação salvífica. Neste contexto, é preciso não esquecer um
ensinamento que vem do livro do Apocalipse; lá se ensina que o Senhor está à
porta e bate. Se uma pessoa ouvir a sua voz e Lhe abrir a porta, Ele entra para
cear junto com ela (cf. 3, 20). Cristo Jesus bate à nossa porta através da
Sagrada Escritura; se ouvirmos e abrirmos a porta da mente e do coração, então
Ele entra na nossa vida e permanece conosco (n.8).
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A Bíblia é um discurso de Deus. Nela Deus rompe o silêncio, intervem e se pronuncia. Na Bíblia, Deus não tanto fala de Si Próprio quanto do homem. Melhor: Deus fala de Si Próprio em relação ao homem. Este falar de Deus é dirigido essencialmente a um povo. O interlocutor de Deus é um povo, mais que cada indivíduo. Não esqueçamos de que a Bíblia é o livro de uma comunidade, de um povo e é dirigida a uma comunidade, a um povo. Deus convoca seu povo, dirige-lhe a Palavra e sela com ele uma aliança.
A Palavra de Deus, como espada de dois gumes, é uma palavra que penetra. É uma Palavra que põe a descoberto as ações e inclusive as intenções secretas do coração. É uma Palavra “reveladora”, enquanto revela, em primeiro lugar, a confusão que há dentro de nós. Ela arranca o véu de nossas aparências, tira a máscara de nossas hipocrisias. Diante da Palavra de Deus cada um fica indefeso, pois ela revela a realidade nua e crua de nossa vida. Toda vez que se estabelece um contato com Deus, o homem não tem mais remédio que reconhecer a própria miséria e arrepender-se.
1. A Palavra De Deus Na Comunidade
A primeira leitura (Ne 8,1-10) e o Evangelho deste domingo nos falam da Palavra de Deus num contexto comunitário. E todas as profecias se cumpriram em Jesus Cristo (conforme o Evangelho). Ele é a Palavra de Deus encarnada. Nesta primeira parte queremos refletir sobre dois pontos: a Palavra de Deus ao homem e a atitude do homem frente a esta Palavra.
O Deus da Bíblia, o Deus da revelação não é o Deus mudo; é um Deus vivo; um Deus que fala, um Deus que se comunica, não só por meio de palavras, mas também por meio de fatos salvadores (DV, 2; cf. também Hb 1,1).
O Deus da revelação é um Deus vivo que fala a pessoas concretas como Adão, Noé, Moisés, Davi...etc.; a todo o povo de Israel através dos profetas; a todos os homens por meio de Cristo, a Palavra de Deus encarnada, a revelação definitiva e suprema de Deus. Este mesmo Deus continua a falar porque ele continua sendo o Deus vivo. Por isso, a comunicação que Deus oferece ao homem é ininterrupta. Ele continua a falar por meio da natureza criada (cf. DV, 3); por meio dos acontecimentos: no mundo, na sociedade, na família, na nossa própria vida; por meio dos sinais dos tempos; por meio dos carismas dos irmãos (segunda leitura); Deus também fala dentro de nós a cada momento. Em cada um desses meios podemos ouvir a voz de Deus que nos fala.
Qual é a atitude do homem perante a Palavra de Deus? A palavra de Deus, assim como a palavra humana, inicia o diálogo e pede uma resposta. A nossa atitude perante a Palavra de Deus é ler esta Palavra e escutá-la diariamente para que possamos adquirir a ciência suprema de Jesus Cristo (cf. Fl 3,8), “visto que desconhecer a Escritura é desconhecer Cristo” (DV, 25).
A partir disto tudo podemos nos perguntar: lemos a Bíblia? Escutamos com interesse a Palavra de Deus na proclamação litúrgica da mesma? Conhecemos a Bíblia tão bem como os outros livros? Se a não conhecemos, não conhecemos Cristo; não somos cristãos de verdade. Cada cristão tem que abrir-se a essa Palavra mediante a fé, já que a Palavra de Deus é uma revelação; mediante a esperança, visto que é promessa; mediante o amor, atendendo a que é regra de vida.
2. Obrigação De Conhecer e De Proclamar A Palavra De Deus
A primeira parte do Evangelho deste domingo (Lc 4,1-4) serve de prólogo ao terceiro Evangelho (evangelho de Lucas) que contém um discurso programático de Jesus. Neste discurso já sabemos por antecipação o que Jesus vai fazer durante o seu ministério. Este prólogo apresenta um estilo clássico e um vocabulário escolhido: imita o grego dos historiadores da época helenista, como Heródoto, Tucídides, Políbio etc.... Lucas tem a consciência clara de estar, com seu trabalho, continuando uma série de vários antecessores que tentaram a mesma coisa: “Visto que muitos já tentaram escrever um relato dos acontecimentos que se cumpriram entre nós...” (v.1). Ele pesquisa os acontecimentos cuidadosamente “desde o princípio”, e procura se informar de tudo que as testemunhas oculares afirmaram. Imitando o estilo dos historiadores de sua época, o próprio Lucas nos informa que ele é uma pessoa cuidadosa e séria em procurar reunir e investigar as tradições anteriores, entre elas o evangelho de Marcos, o evangelho de Mateus que tem muito algo em comum com o seu evangelho e as testemunhas oculares dos fatos, que se tinham tornado “ministros da palavra” para que possa transmiti-las com muita segurança para sua comunidade ou seus leitores. Nesta investigação Lucas não recusa as tradições anteriores como inexatas, e sim como inadequadas para o fim que ele pretenderia alcançar à luz dos fatos que ele tem investigado. Este prólogo já nos informa que Lucas não é uma testemunha ocular de Jesus histórico. Com sua obra Lucas não somente quer fazer “história” e sim confirmar o ensinamento que sua comunidade tem recebido.
Lucas fala “dos acontecimentos” neste prólogo. Quais acontecimentos? Em primeiro lugar, todas as coisas que Jesus realizou e ensinou que abrangem a vida, a morte e a ressurreição de Jesus até o momento em que, tendo instruído os seus apóstolos por meio do Espírito, eleva-se até o céu (At 1,1-2). Certamente, para Lucas, Jesus Cristo é centro e expressão de toda a história salvadora. Outros fatos que aconteceram “entre nós” encontra-se a vinda do Espírito Santo, a vida e o testemunho da Igreja primitiva (Igreja nascente), a missão de Paulo entre os gentios que Lc relata na sua segunda obra, nos Atos dos Apóstolos. Para Lucas, a atividade de Jesus (palavras e atos/obras) e a atividade da Igreja remida constituem um único acontecimento que ele apresenta em duas obras (o evangelho de Lc e Atos dos Apóstolos) em que Cristo é o protagonista e os apóstolos são as testemunhas oculares e os ministros da palavra, isto é, aqueles cuja missão é conservar e preservar as palavras e os atos do Senhor. Ele quer nos dizer que a nossa fé não se baseia em mitos nem em lendas inventadas, e sim em acontecimentos históricos.
Além do mais, o prólogo de Lucas nos informa também sobre o processo pelo qual Lc chega a escrever o seu evangelho. No centro de todo este processo está o acontecimento de Jesus e as testemunhas oculares que depois de sua ressurreição tem sido os pregadores dos atos e palavras de Jesus. Aos poucos vão surgindo diversos relatos, entre eles os evangelhos de Mc e Mt. Com estes relatos junto com outras tradições próprias Lucas compõe seu evangelho.
Lucas dedica sua obra ao ilustre Teófilo, a quem Lucas dedica também a sua segunda obra (= “theo-philus” significa “amigo de Deus” ou “amado por Deus”). Quem é o ilustre Teófilo? O atributo “ilustre” (krátiste) ou “excelentíssimo” era reservado às grandes autoridades como senadores e governadores (cf. At 23,26;24,3;26,25). Isto quer dizer que “Teófilo”, pelo atributo, é uma pessoa de alta posição que seria o protetor de Lucas ou pode ser que seja alguém, buscador da verdade.
Como o evangelista Lucas que pesquisou várias fontes antes de escrever para uma segurança para a sua comunidade ou para os seus leitores, a obrigação de conhecer profundamente a pessoa e a doutrina de Jesus estende-se a todos os cristãos e durará enquanto prosseguir a nossa caminhada sobre a terra. Nunca devemos considerar-nos suficientemente formados, nunca devemos nos conformar com o conhecimento de Jesus Cristo e dos seus ensinamentos que já possuímos. O amor pede que se conheçam sempre mais coisas da pessoa amada, pois se ama o que se conhece. Se quisermos ser bons pregadores da palavra e dos atos de Jesus Cristo, precisamos de tempo para refletir e meditar sobre os mesmos. Devemos parar de dizer “Já sei o que vou falar para o povo”. Em vez disso, devemos dar o espaço para a Palavra de Deus operar em nós e questionar o nosso modo de viver e de julgar as pessoas e todos os acontecimentos. Até o último minuto de nossa vida temos ainda a possibilidade de aprender muita coisa como o bom ladrão que aprendeu a pedir o perdão a Jesus por tudo que ele cometeu certamente nos últimos segundos de sua vida (Lc 23,42). Santo Agostinho disse: “Disseste basta? Pereceste”. E São João Crisóstomo disse: “Freqüentemente, a ignorância é filha da preguiça”. A boa formação exige tempo, constância e o silêncio, como disse Albert Einstein: “Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio: e eis que a verdade se me revela” (veja: Einstein Por Ele Mesmo, Martin Claret, p.28), e acrescentou: “A ciência sem a religião é paralítica- a religião sem a ciência é cega” (ibid. p.63). O ser humano é um ser nunca pronto. É um ser de abertura. Na verdade, não somos seres humanos ainda, e sim estamos seres humanos. Estamos em permanente formação. A formação intelectual e espiritual, inclusive social e comunitária é sempre uma carreira inacabada. É um trabalho silencioso de todos os dias. O ser humano sonha para além daquilo que é dado e feito. E sempre acrescenta algo ao real. A grandeza do homem certamente mede-se pelas interrogações que ele se faz a si mesmo e pela honestidade com que vive procurando ser coerente com as respostas que vai encontrando. Ele é um ser que interroga a vida. Não deixa que a vida o viva, mas faz-se senhor de sua existência. Por menos que queira, o homem é um pesquisador de Deus. Por menos que queira, o homem é um eterno nômade caminhando para Deus. Não é homem quem não parte ou interroga, ao menos para uma busca de respostas para suas interrogações essenciais e existenciais.
Os Pobres e A Missão Histórica De Jesus: Opção Pelos Pobres
A segunda parte do Evangelho (4,14-21) pertence à seção da atividade de Jesus na Galiléia. Trata-se do discurso programático de Jesus na Sinagoga de Nazaré (Lc 4,14-9,50). Neste discurso Jesus já traça o que Ele vai fazer na sua passagem neste mundo. Durante este período Jesus não sai da território da Galileia (ao contrário do que nos diz Marcos, cf. Mc 7,24,31;8,27). Jesus se revela nesses capítulos através de sua ação e palavras: ele evangeliza (Lc 4,43;8,1), cura muitas enfermidades (Lc 4,36;5,17;6,19;8,46), expulsa os demônios (Lc 4,33-37.41;6,18;7,21; 8,2.26-29; 9,38-43), chama os pecadores à conversão (Lc 5,20.29-32;7,36-50). Todos estes atos reveladores não são reconhecidos pelas autoridades de Israel (Lc 5,17-6,11), e sim por grande parte do povo (Lc 5,1.17; 6,17-18;8,4.40;9,37). Pouco a pouco vai se formando em torno dele um grupo de amigos e seguidores (Lc 5,1-11.27;6,13-16), aos que Jesus envia para pregar o Reino e curar enfermos (Lc 8,1-3;9,1-6). Lucas reconhece nessa atividade de Jesus na Galiléia não somente um momento revelador de Jesus, mas também uma proposta programática para o futuro tempo da missão, que para Lucas já uma realidade presente.
Esta segunda parte do texto evangélico pode ser divida em duas pequenas partes. A primeira parte (vv.14-15) fala de um pequeno resumo da atividade itinerante de Jesus: “Jesus voltou então a Galiléia, com a força do Espírito”. É aquele Espírito que ele recebeu no batismo (Lc 3,21-22) e que o conduz ao deserto, para uma escolha programática, superando as três formas de messianismo alternativo presentes nos ambientes judeus: miraculismo, sucesso econômico e poder (Lc 4,1-13).
A segunda parte (4,16-21, que na verdade até v.30) tem por tema a apresentação da prática libertadora de Jesus como programa messiânico ou esta parte é conhecida como o discurso programático de Jesus na sinagoga de Nazaré. O contexto é o da liturgia festiva hebraica do sábado, no qual é prevista a leitura da Torá ou Pentateuco; segue-se, em correspondência com o trecho do Pentateuco, um texto ou seção dos Profetas. Depois da homilia seguiam-se as intercessões. Jesus toma a palavra na hora da homilia, da qual podiam participar os hebreus do sexo masculino dos 13 anos para cima, maiores em termos religiosos para fazer comentário sobre a segunda leitura.
O texto lido, durante a liturgia do sábado (Is 61,1-2;35,5;58,6), é explicado por Jesus com duas frases. “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu”. É aquele Espírito que Jesus recebeu no batismo e em virtude do qual foi designado como Filho amado, escolhido por Deus para uma missão (Lc 3,22). É aquele que guia Jesus nas tentações. A unção não é mais o gesto simbólico do óleo derramado na cabeça do candidato à realeza, mas a efusão do Espírito Santo. É o poder de Deus, pelo qual Jesus foi habilitado para a sua missão.
O pano de fundo dessa cena é o tema bíblico do messias sobre o qual pousará o Espírito do Senhor, “espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor do Senhor” (Is 11,2). São os dons ou qualidades para um bom governo. O Espírito recebido por Jesus é o que foi prometido ao “servo” para reconduzir os deportados e reconstruir a comunidade pós-exílica. Esse Espírito está na origem da missão histórica de Jesus. Guiado por ele, Jesus escolheu, como conseqüência, um messianismo não político ou econômico, mas o messias do Filho. O poder do Espírito de Deus torna Jesus o grande libertador dos oprimidos, descritos aqui como aqueles que são mantidos sob o poder do mal.
Os destinatários do anúncio do evangelho são os pobres e empobrecidos (o termo “pobre”, ptochos, ocorre 10 vezes em Lucas, contra 5 em Mateus) e enfraquecidos pela ambição dos que os governam. Mas quem são os pobres? Pode ser que eles sejam os pobres “econômicos” (“Economia” vem do grego “oikos”, a casa). São, então, aqueles para os quais a casa, o lar, o símbolo do que é o mínimo de vida, as coisas básicas elementares, não estão assegurados. Eles estariam personificados, biblicamente, na viúva (naquele tempo não havia seguro social para as viúvas); nos órfãos; nos doentes que não têm acesso à saúde. Pode ser que eles sejam os pobres “sociais”, isto é, os que aos quais a sociedade priva da dignidade elementar de pessoas, de seres humanos. Biblicamente são simbolizados pelos crianças, pelas mulheres, pelos que tinham profissões desvalorizados, os bêbados, as prostitutas, etc... Numa visão de conjunto pode-se dizer que, para Jesus, os pobres são aqueles a quem a vida é negada ou muito dificultada e a quem é negada a dignidade que vem de viver em fraternidade.
Em Lucas a atitude crítica diante dos ricos é muito radical. A bem-aventurança dos pobres, por exemplo, é completada com o “ai” sobre os ricos (Lc 6,24). Para Lucas todos os bens deste mundo pertencem a Deus (cf. Lc 16,12). O limite extremo dessa condição de empobrecimento é a marginalização: o povo perdeu a liberdade(prisão) e a capacidade de enxergar a realidade de forma crítica (cegueira); vive continuamente pressionado(oprimido) por dentro e por fora, e cada vez mais vai perdendo a vida e o acesso aos bens para sustentá-la. A missão de Jesus, portanto, é trazer uma palavra de esperança para esse povo explorado e oprimido e , ao mesmo tempo, realizar a ação que o liberta concretamente da situação de marginalidade.
Na linguagem concreta do evangelho, a boa notícia para quem está no cárcere consiste em ouvir: “podes sair”. Para um cego, a boa notícia consiste em ouvir o convite: “podes enxergar”; para quem não caminha ou é coxo: “Levanta-te e anda”. Para Jesus é inconcebível separar o anúncio da boa notícia e a libertação. A partir de Jesus e com ele, a figura do homem é restaurada. O anúncio da boa notícia sem a libertação se torna o ópio para o povo, uma alienação.
O Deus que Jesus Cristo anuncia através de sua palavra e ação é aquele que em vez de vigiar de maneira severa e ciumenta a observância de leis e cerimônias, ele liga muito mais por uma convivência humana onde não haja exploração, não haja opressão, onde não se conhecem marginalizados e pobres/empobrecidos. Contra todos aqueles que fizeram da religião apenas exercício para a santificação pessoal, ele formula sempre de novo as suas prioridades que são outras: soltar as algemas injustas, dá liberdade aos oprimidos, repartir o pão com o faminto etc.... (leia Is 58,5-7).
Se queremos descobrir o verdadeiro Deus e não criar uma imagem de Deus ao nosso gosto, então, devemos aceitar este Deus anunciado por Jesus Cristo. Para alguns será duro; mas para uma imensa massa de homens e de mulheres, será uma imensa alegria. Ter fé no Deus de Jesus Cristo não é acreditar numa doutrina e se fixar estática em sentenças religiosas. Ter fé é a grande dinâmica de uma vida humana.
Diante de tal mensagem, põe-se a pergunta sobre a conduta que Deus de nos exige ou, pelo menos espera de nós. Quem quiser trabalhar para que seja superada a exploração dos fracos e a ambição pelo poder, é convidado. É convidado também quem quiser lutar para que a corrida pelo dinheiro e pelo lucro seja substituída por uma distribuição mais igualitária dos bens, baseada na fraternidade e na solidariedade em vez do egoísmo.
O Reino de Deus não se realizará na nossa vida sem que haja conversão ao amor dos irmãos e à justiça social. A libertação integral do homem só se conseguirá através do amor e perdão, respeito pela dignidade da pessoa, serviço à verdade e à vida, fraternidade e solidariedade. O Reino de Deus é processo que já começou e os três elementos básicos no seu andamento são estes: Converter-se, encontrar a Deus no próximo e tomar o partido dos oprimidos e empobrecidos através da vivência da justiça e do amor. Em que etapa estamos?
P. Vitus Gustama,SVD
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