quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Domingo Da Sagrada Família De Nazaré, 26/12/2021

SAGRADA FAMÍLIA DE NAZARÉ

Primeira Leitura: Eclo 3,3-7.14-17ª

3 Deus honra o pai nos filhos e confirma, sobre eles, a autoridade da mãe. 4 Quem honra o seu pai, alcança o perdão dos pecados; evita cometê-los e será ouvido na oração cotidiana. 5Quem respeita a sua mãe é como alguém que ajunta tesouros. 6 Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido. 7 Quem respeita o seu pai, terá vida longa, e quem obedece ao pai é o consolo da sua mãe. 14 Meu filho, ampara o teu pai na velhice e não lhe causes desgosto enquanto ele vive. 15 Mesmo que ele esteja perdendo a lucidez, procura ser compreensivo para com ele; não o humilhes, em nenhum dos dias de sua vida: a caridade feita ao teu pai não será esquecida, 16 mas servirá para reparar os teus pecados 17ª e, na justiça, será para tua edificação. 

Segunda Leitura: Cl 3,12-21

Irmãos: 12 Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos. Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, 13 suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se um tiver queixa contra o outro. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai vós também. 14 Mas, sobretudo, amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição. 15 Que a paz de Cristo reine em vossos corações, à qual fostes chamados como membros de um só corpo. E sede agradecidos. 16 Que a palavra de Cristo, com toda a sua riqueza, habite em vós. Ensinai e admoestai-vos uns aos outros com toda a sabedoria. Do fundo dos vossos corações, cantai a Deus salmos, hinos e cânticos espirituais, em ação de graças. 17 Tudo o que fizerdes, em palavras ou obras, seja feito em nome do Senhor Jesus Cristo. Por meio dele dai graças a Deus, o Pai. 18 Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. 19 Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas. 20 Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor. 21 Pais, não intimideis os vossos filhos, para que eles não desanimem. 

Evangelho: Lc 2,41-52

41 Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa. 42 Quando ele completou doze anos, subiram para a festa, como de costume. 43 Passados os dias da Páscoa, começaram a viagem de volta, mas o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem. 44 Pensando que ele estivesse na caravana, caminharam um dia inteiro. Depois começaram a procurá-lo entre os parentes e conhecidos. 45 Não o tendo encontrado, voltaram para Jerusalém à sua procura. 46 Três dias depois, o encontraram no Templo. Estava sentado no meio dos mestres, escutando e fazendo perguntas. 47 Todos os que ouviam o menino estavam maravilhados com sua inteligência e suas respostas. 48 Ao vê-lo, seus pais ficaram muito admirados e sua mãe lhe disse: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura”. 49 Jesus respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?” 50 Eles, porém, não compreenderam as palavras que lhes dissera. 51 Jesus desceu então com seus pais para Nazaré, e era-lhes obediente. Sua mãe, porém, conservava no coração todas estas coisas. 52 E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens.

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Em um domingo que cai durante a oitava de Natal (como este domingo) é celebrada a festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José. Esta festa recorda que o mistério da encarnação é um mistério de partilha. O Filho de Deus veio partilhar em tudo, menos no pecado, da nossa condição humana; veio para fazer parte da família humana, vivendo na obediência e no trabalho dentro de uma família concreta, embora única e irrepetível. Nessa Sagrada Família de Nazaré surgem os valores e as virtudes que devem caracterizar qualquer família cristã.

Um Olhar Geral Sobre As Leituras Deste Domingo 

A Primeira Leitura deste domingo é tirada do livro de Eclesiástico. Cerca de dois séculos antes de Cristo, a helenização das ideias e de costumes começou na Palestina. No início foi um processo favorecido pela moda da classe dominante, depois imposto de forma pragmática pela política de Antíoco Epífanes (175-173 a.C). Ben Sirac, o autor de Eclesiástico, representa a velha sabedoria de Israel que surge dessas inovações estrangeiras. É compreensível que naquela situação de colonização cultural, o sábio de Israel se preocupasse especialmente com a educação dos jovens e fixasse os olhos na família, que sempre foi o baluarte das tradições de um povo. 

O esquema familiar, neste texto, é patriarcal: o pai, a mãe e os filhos constituem uma hierarquia, uma ordem sagrada que deve ser preservada a todo custo. Tal família privilegia o passado e a estabilidade, consequentemente tradição e ordem. Para manter essa estrutura em benefício do patrimônio espiritual de Israel, Ben Sirac infunde nos jovens todas as virtudes que os favorecem: obediência, respeito pelos idosos, cuidado pelos pais necessitados e confere a essas virtudes um valor religioso. Essas virtudes são consequência do temor do Senhor. Por isso, a honra aos pais deve durar toda a vida, inclusive na fraqueza mental da velhice dos pais. Por isso, para o autor, a honra ou a desonra dos pais resulta, quase automaticamente, positiva ou negativamente, no futuro dos filhos. Impiedade para com os pais implica impiedade para com Deus. 

Podemos entender que, para o autor, ter um pai e uma mãe é como um tesouro, como dizia a sabedoria antiga, porque sem pai e sem mãe não se pode ser pessoa. Por isso, Deus, apesar de ser Onipotente ou Todo-poderoso, não se aproximou de nós sem ser filho de uma mãe: Maria. E aprendeu a ter um pai (adotivo): são José e com ele, Jesus aprendeu a ser carpinteiro (cf. Mc 6,3). 

A família está formada por uns pais e uns filhos, e ninguém está no mundo sem esse processo. Não temos outra maneira de vir ao mundo, de crescer, de amadurecer; faz parte da criação de Deus. Ser pais, porque se têm filhos, é um mistério de vida que está nas mãos de Deus e que nós cristãos sabemos disso. Dentro deste mistério podemos entender um pouco a resposta de Jesus para a pergunta de seus pais: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?”. 

Mesmo que o relato de Lucas seja centrado na resposta de Jesus às "coisas de meu Pai" ou “devo estar na casa de meu Pai”, o louvor do pai humano de Jesus, que não é outro senão José, como era perfeitamente conhecido em Nazaré, foi levado em consideração. Embora Jesus, ou melhor, Lucas, quisesse dizer que o "Pai" de Jesus é Outro, não se quer ignorar o papel do "pai humano" que Jesus teve em Nazaré. A própria arqueologia nos mostra a casa de José onde ele levou Maria; onde Jesus viveu com eles até que, quando tinha cerca de trinta anos, deixou sua casa para se dedicar à pregação do Reino de Deus; onde mais tarde uma comunidade judaico-cristã se encontra para viver suas experiências religiosas.

O texto da Segunda Leitura deste domingo, tirado da Carta de são Paulo aos Colossenses, faz parte do conjunto sobre a vida nova em Cristo (Cl 3,1-4,1); trata-se da parte moral da Carta. A união com Cristo ressuscitado torna o cristão um homem novo ou homem em Cristo. Na comunidade cristã estão reunidos os que que foram revestidos do homem novo. Como membros de homens novos, na comunidade cristã somente há a igualdade, e as discriminações se tornam ilusórias. Como consequência, os cristãos têm que ser promotores dessa igualdade cuja base é a consciência da paternidade de Deus em relação a todos os homens e da condição de irmãos em Cristo. O que se pede da comunidade cristã são os valores que ultrapassam os simples valores humanos como misericórdia, bondade, humildade, mansidão, paciência, para os que fazem parte do “Corpo de Cristo”. Este é o ideal da vida cristã em suas linhas gerais. É um tipo de “código ético” da comunidade. 

Outra parte do texto de hoje fala do “código doméstico”, pode-se dizer assim (Cl 3,18-21); trata-se da vida familiar. Em suas linhas gerais a Carta quer sublinhar a importância da característica cristã de cada família. Por ser cristãos seus membros não  podem construir uma ética familiar que seja contra à dignidade humana. O código familiar cristão deve ter um perfil que assuma os valores que são pedidos ou exigidos para “revestir-se” e construir o “Corpo de Cristo, a Igreja (doméstica). Portanto, a misericórdia, a bondade, a humildade, a mansidão e a paciência que são necessárias para toda família, o devem ser com mais razão para uma família que se sinta cristã. 

Que tipo de relação deve ter, então, entre o marido e a esposa? Em relação aos esposos, limita-se a recomendar às mulheres o respeito “cristão” para com os maridos. E o autor da Carta convida os maridos a amarem suas esposas, evitando todo tipo de domínio tirânico sobre elas. Isto significa que se os esposos e as esposas são realmente pessoas renovadas em Cristo, a relação entre eles deve ser uma relação de parceria e de igualdade e não de domínio, muito menos qualquer domínio tirânico. A Carta aos Efésios explica melhor o relacionamento entre os esposos e as esposas ao exigir radicalmente dos esposos e das esposas, como qualidades, o amor e a fidelidade a exemplo de Cristo e a Igreja (Ef 5,22-33).  O amor e a fidelidade no matrimônio devem refletir o amor e a fidelidade de Cristo à Igreja. Cada família é uma Igreja doméstica. 

Que tipo de relação deve ter entre os filhos e os pais? Aos filhos recomenda-se a obediência. Esta obediência está com uma indicação: em tudo, a não ser que se trate de algo contra a vontade de Deus. É preciso ensinar os filhos a obedecer com liberdade de coração. Os pais devem advertir aos filhos que devem imitar a Cristo que obedeceu aos seus pais históricos (cf. Lc 2,51) e teve como norma de vida cumprir, em cada momento, a vontade do Pai (cf. Jo 4,34; 6,38). E aos pais, com intuição pedagógica, são advertidos para que não se deixem levar por uma excessiva severidade com os filhos, pois pode provocar neles um espírito pusilânime e impedir o desenvolvimento normal de suas capacidades e a plena maturidade cristã. 

O episódio que relata Jesus no Templo aos doze anos, por ocasião da festa da Páscoa, que lemos no Evangelho deste domingo, é a única cena dos trinta anos da “vida oculta” de Jesus em Nazaré relatada no evangelho de Lucas (nenhum outro evangelho relata o mesmo episódio). Fora dos evangelhos canônicos pode-se encontrar nos evangelhos apócrifos o relato sobre a juventude de Jesus, especialmente, como o melhor exemplo, no Evangelho de Tomé onde se relata a vida de Jesus aos 5, 6, 8, e 12 anos (apócrifo tem origem grega “apócryphos” que significa escondido, secreto, oculto. Os livros que não são canônicos se chamam “apócrifos” porque não eram de uso público, isto é, não eram usados oficialmente na   liturgia e no ensino).

1. Jesus e seus pais sobem a Jerusalém na Páscoa: os justos peregrinos          

O texto nos relata que os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa. Isto já nos informa que Maria e José eram pessoas piedosas e justas, no sentido de seguir fielmente a Lei divina. A Lei determina que todos os israelitas varões (a partir dos treze anos considerados como “filhos do preceito”) deviam ir ao Santuário do Senhor em Jerusalém três vezes por ano por ocasião das três grandes festas: Páscoa, Pentecostes e Tendas/Tabernáculos (cf. Ex 23,14-17;34,22-23; Dt 16,16). Mas muitos que moravam longe do Santuário iam somente uma vez, por ocasião da Páscoa. As mulheres e as crianças com menos de 13 anos não eram obrigadas a celebrar a Páscoa. Mas as esposas eram permitidas de acompanhar seus maridos e de levar os filhos pequenos. Os peregrinos normalmente caminhavam em grupos de parentes, amigos e conhecidos da mesma aldeia. Cada jornada começava e terminava com longas orações comunitárias.          

A vida é uma peregrinação. Estamos em permanente partida. Partir faz parte da vida. Partir é sempre para frente. Podemos até caminhar devagar, mas nunca para trás. Quem anda, há possibilidade de tropeçar ou cair. É melhor cair por tentar andar do que cair por não querer andar. A intolerância ao erro ou ao fracasso não nos leva a confiar em nós mesmos e perseverar quando um obstáculo nos repele. Você não andará para frente, proibindo-se de cair. Seus erros o colocam frente a frente com seus limites para os fazer recuar, e não para fazê-lo fracassar. O terreno onde caímos podemos até usá-lo como apoio para que possamos nos levantar novamente. Assim como o pássaro ganha rapidamente a sua liberdade, confiando apenas em suas asas, sua vida também convida você a olhar para o presente e para o futuro e para o alto, voltando sua confiança para as suas próprias forças e para Deus, fonte destas forças.          

Somos peregrinos rumo à casa do Pai eterno onde Jesus nos prepara morada: “Na casa do meu Pai há muitas moradas…Eu vou preparar um lugar para vós. E depois que eu tiver ido e preparado um lugar para vós, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que, onde eu estiver, estejais vós também” (Jo 14,2-3). Na nossa peregrinação cotidiana, precisamos fazer várias paradas para criar os nossos momentos de deserto, momentos de oração e de reflexão. Sem estas paradas, nossa fé se tornará paralisada e consequentemente nos paralisará para caminharmos para frente. Sem estes momentos de deserto, nossa fé se tornará cada vez mais individualista e teórica; e no fim, nos deixará um grande vazio dentro de nós mesmos. Por isso, é bom sempre nos perguntarmos: “Quais são os momentos de deserto criados por mim no meu dia-a-dia? E a Eucaristia, que é a Nova Páscoa da Nova Aliança, o princípio, o centro e o ápice da fé e da vida cristã, ainda tem lugar no meu cotidiano?” 

2. Jesus procurado por seus pais é uma parábola de nossa busca de Jesus na nossa vida cotidiana.          

A festa da Páscoa durava oito dias. E o texto nos relata que no momento de retorno, Jesus fica no Templo em Jerusalém sem se comunicar com os pais. Por outro lado, Maria e José não percebem a ausência de Jesus durante o retorno. Podemos entender o comportamento dos pais porque as caravanas eram compostas por grupos de familiares e conhecidos da aldeia, como foi dito anteriormente. E entre eles não havia lugar para “mães possessivas”. Por isso, em algumas culturas orientais, se alguém perguntar, por exemplo,: “De quem este filho?” O pai ou a mãe responderá: “Ele é meu e seu filho”. Eles vivem o senso de pertença (sense of belongingness) e o “senso de coletividade” (we-feeling). O que se acentua não somente o “eu”, mas também o “nós” na e da convivência.          

É normal que Maria e José se angustiem pela ausência de Jesus. A ausência os move a procurarem Jesus. É a primeira vez que Maria e José experimentam a separação e a ausência de Jesus de acordo com o evangelho. Cremos que a angústia dos dois nesse momento foi maior que a da noite do nascimento de Jesus na pobreza e na exclusão em Belém. E nesta busca ninguém foi capaz de dar pista alguma para Maria e José.          

A cena da busca deve servir para nós como uma parábola da busca de Jesus na nossa vida como cristãos. Para ser verdadeiro cristão é necessário que cada um busque Jesus e O busque sem parar: “Procurai a Deus enquanto pode ser achado, invocai- O enquanto está perto” (Is 55,6). E à experiência da sua perda e da sua busca vão unidos, de uma ou de outra forma e em graus diversos, sentimentos de dor e de angústia. Mas se buscarmos Jesus movidos pela fé verdadeira e pelo amor por ele e se o buscarmos no lugar certo, com certeza O encontraremos, como O encontraram Maria e José. Para achá-lo, o próprio Jesus dá uma das pistas: “Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6,33). Como também os pastores, os magos, Simeão e Ana O encontraram. Herodes, ao contrário, não O encontrou porque O buscava movido pela ambição do poder e pela prepotência, porque o buscava para matá-lo.          

Tudo isso nos faz perguntar: ”O que significa a presença e a ausência de Jesus na nossa vida cotidiana? Onde devemos buscá-lo para encontrá-lo facilmente? Mas será que sentimos a falta de Jesus, nosso Salvador. Já experimentamos a angústia em buscá-lo, como sentiram Maria e José? Já encontramos realmente Jesus, como Maria e José O encontraram? “...fizeste-nos para Ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em Ti.... Ensina-me para onde eu devo ir para que possa Te encontrar...Tarde Te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais Te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu Te procurava do lado de fora!...Estavas comigo, mas eu não estava contigo”(Sto. Agostinho, Confissões I,1;X,27).

3. Jesus é encontrado no Templo: Ele é a própria Sabedoria.          

Jesus foi encontrado depois de três dias de busca, e é encontrado no Templo. Alguns exegetas consideram a expressão “três dias depois” e “O encontraram no Templo, “na casa de seu Pai” como uma prefiguração simbólica da morte e da ressurreição do Senhor, que acontecerão também em Jerusalém. Estas expressões são traços que aludem ao drama da paixão de Jesus que acontecerá em Jerusalém.          

Sem levar em consideração a preocupação dos pais pela sua ausência nas caravanas de volta para Nazaré, Jesus toma a iniciativa de participar da discussão dos escribas no Templo em Jerusalém. Esta cena antecipa os debates que Jesus vai ter com os escribas e fariseus ao longo do seu ministério público. Mas aqui não há nenhuma hostilidade como acontecerá mais tarde no ministério público de Jesus. Ao contrário, a sabedoria do adolescente Jesus suscita a admiração nos escribas que também antecipa a admiração pela sabedoria de Jesus mais tarde (cf. Lc 4,32;20,26).          

O verbo em grego que o evangelista usa em relação à admiração de todos os que ouviam Jesus é exístemi que indica uma admiração extrema, produzida por uma manifestação sobrenatural ou uma estupefação diante do que não se entende. Isto quer dizer que Jesus é a revelação da sabedoria de Deus (cf. Lc 7,35;11,31). Ele é a própria “sabedoria”, isto é, a revelação plena da vontade de Deus. A verdadeira sabedoria é a de Jesus. Sem ela, nenhuma outra sabedoria tem consistência. Se quisermos ter a sabedoria verdadeira, devemos buscá-la em Deus, pois somente Deus, que é o próprio Sábio por excelência, é capaz de dar ao homem “um coração capaz de discernir o bem do mal” (1Rs 3,9) que leva o homem a uma arte de viver bem com os demais. A sabedoria é a distribuidora de todos os bens (Pr 8,21; Sb 7,11), vida e felicidade, segurança, graça e glória e todas as virtudes (cf. Sb 8,7s). Unido a Jesus Cristo, o homem participa da Sabedoria divina e entra na intimidade de Deus, o Sábio por excelência. 

4. A pergunta dos pais e a resposta de Jesus: Deus está acima de tudo          

Depois de tanta busca durante três dias finalmente os pais encontraram Jesus, no meio dos escribas, no Templo, incapazes de entender o que estava acontecendo. Por isso, segue a pergunta que tem um tom de angústia e  de censura: “Meu filho (téknon, grego: filho saído das entranhas), por que agiste assim conosco? Teu pai e eu estávamos aflitos à tua procura”, pergunta Maria, a Mãe de Jesus (Lc 2,48; veja e faça comparação também com Mc 3,31; Jo 2,3-4). Com esta pergunta Maria abre o coração ferido para que o filho possa ver sua dor e a dor do pai que passaram três dias atormentados pela angústia e pela dor na busca do mesmo. A pergunta mostra a perplexidade de Maria diante do comportamento de Jesus.          

Ao responder à pergunta de sua Mãe, Jesus expressa suas convicções com a mais absoluta segurança: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Lc 2,49).  Positivamente, Jesus queria lhes dizer: “Devíeis saber que eu devo estar junto a meu Pai”. A pergunta de Jesus aos pais parece-nos bastante estranha. Ou pode-se dizer que aparentemente a resposta de Jesus é um pouco irreverente à pergunta de sua mãe. Os pais não entenderam o que Jesus estava dizendo. Entra em conflito, aqui, o modo de ver e pensar de Jesus e o dos pais. Certamente dentro deste conflito é que o evangelista quer transmitir sua mensagem teológica para seus leitores.  Maria, como mãe, fala das obrigações do filho em relação aos pais. Jesus transcende as relações familiares para o nível do dever em relação ao Pai celeste. As relações familiares devem submeter-se aos valores do Reino para que seus membros possam se tornar mãe, irmão e irmã de Jesus (cf. Mc 3,33-34). Jesus desperta os pais sobre este novo relacionamento que faz qualquer relacionamento humano mais profundo, pois Deus se torna o centro de todos. Maria fala dos pais terrenos: eu e seu pai. Jesus fala do seu Pai celeste: “meu Pai”, que será o “Nosso Pai” (cf. Mt 6,9-15).  A pergunta de Jesus faz do relato do encontro um veículo de auto-revelação de Jesus: Jesus está admitindo que é o Filho de Deus. Certamente a pergunta de Jesus contém o segredo de sua vida e o seu ministério mais profundo. A sua relação profunda com o Pai determina e explica todas as suas atitudes e ações. Para Jesus realizar a vontade do Pai celeste e estar com Ele são uma “necessidade” vital. Não é por acaso que Jesus usa a palavra “dever” na sua pergunta: “...devo estar na casa de meu Pai”. A mesma palavra “Pai” e na mesma relação pessoal, será a última palavra pronunciada por Jesus na cruz: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). Para Jesus o desígnio salvífico do Pai tem uma prioridade absoluta e sobrepõe-se a todos os outros deveres, até os deveres familiares.       

Para pertencer verdadeiramente e profundamente à família terrena, cada membro deve pertencer inteiramente ao Pai celeste. A pertença ao Pai celeste transcende a pertença humana e familiar para o nível divino. Quem se entrega incondicionalmente a Deus, terá a luz e a força necessárias para enfrentar as situações mais adversas. Na medida em que vivermos uma relação de obediência à vontade de Deus e de comunhão com ele, estaremos junto do Pai. Estar junto do Pai é estar na salvação eterna.  E viver segundo a vontade de Deus significa superar qualquer forma de estreiteza e mesquinhez, significa ir além dos limitados horizontes da própria família ou do próprio grupo, da própria cidade, da própria nação para abrir o coração ao amor universal e criar a fraternidade universal. 

5. Precisamos de tempo e de muita reflexão para entender o mistério de Jesus          

O texto também nos diz: “Eles, porém, não compreenderam as palavras que ele lhes dissera” (v.50). Com esta frase o evangelista Lucas quer nos dizer que o mistério de Jesus é insondável, até mesmo por Maria e José. Esse mistério que é de uma riqueza inesgotável só pode ser compreendido quando é acolhido na fé e quando é longamente meditado no coração, como fez Maria. A compreensão do mistério de Jesus precisa de tempo para crescer. Como pobres criaturas nunca compreendemos perfeitamente todo o mistério divino. Se nós compreendêssemos Deus e seu mistério, o nosso cérebro seria maior do que Deus, nosso Criador. Se o cérebro humano conseguisse dominar o mistério de Deus, o que ele compreendeu não seria o Deus verdadeiro. Talvez Santo Agostinho tenha razão quando diz: “É melhor dizer o que Deus não é do que o que Deus é”. “Senhor, que eu Te deseje e, desejando, Te busque e, buscando, te ache, e achando- Te que Te ame e me emende de meus pecados e não torne mais a eles!” (L. Cartuxo). “Louvarão o Senhor aqueles que O procuram. Quem O procura O encontra, e, tendo- O encontrado, O louvará. Que eu Te busque, Senhor, invocando- Te; e que eu Te invoque, crendo em Ti: Tu nos foste anunciado” (Sto. Agostinho, Confissões,I,1). 

6. Em Maria Encontramos a Educação de Valores e Valor Da Educação 

O texto do Evangelho de hoje termina com a seguinte frase: “Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens”.

Por que Jesus cresceu na graça e na sabedoria diante de Deus e diante dos homens? A resposta é simples: Maria com José foi uma grande educadora muito completa. Maria vive e respira sua fé. Maria vive da fé e se alimenta dela, e a partir da fé Maria se abre a Deus. Esse viver e respirar a fé é passado para Jesus. E por isso, Jesus cresce na graça de Deus. 

Maria não somente educa seu filho, Jesus, na graça, mas também na sabedoria. A palavra “sabedoria” provém do latim “sapere” que quer dizer ter inteligência, ser compreendido. Mas propriamente significa ter gosto, exercer o sentido do gosto, ter este ou aquele sabor, capacidade desenvolvida de saborear. A sabedoria simplesmente significa a capacidade de fazer as escolhas corretas, de tomar as decisões certas, de escolher os valores verdadeiros que conduzem o homem à sua realização, e à sua felicidade. A sabedoria é um tipo de "luz" que indica caminhos e que permite discernir as opções corretas a tomar. É ela que permite ao homem gozar os bens terrenos com maturidade e equilíbrio, sem obsessão e sem cobiça, colocando-os nos seu devido lugar e não deixando que sejam eles a conduzir a vida do homem e a ditar as suas opções. 

Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens”. Trata-se de uma educação completa. Maria é, por isso, uma pessoa que sabe do valor da educação e passa para Jesus a educação de valores (valor da educação e educação de valores). Maria é o espelho em que cada família deve se espelhar na educação dos membros de sua família.

Sagrada Família e Nossa Família: Será Que Nossa Família é Sagrada Como a Família de Nazaré? 

Ao celebrar a festa da Sagrada Família: Jesus, Maria e José, celebra-se assim a família como lugar da manifestação de Deus neste mundo. Biblicamente a família é uma comunidade de alegrias, tristezas, lutas e esperanças sempre compartilhadas. A união dos esposos é considerada como aliança, que é termo sagrado das relações com Deus (Ml 2,14). A família também é comunidade educativa na qual os filhos se capacitam para a vida (Pr 1,8s; Eclo 7,25s; Hb 12,4-8). E por fim, a família é ainda uma comunidade de gerações, que une os homens na linha interminável do tempo (Gn 10.1s; 1Cr 1,1s; Lc 3,23s).         

Quando se fala da Sagrada Família de Nazaré, o nosso modo habitual de pensar em Jesus como Filho de Deus gerado pelo Pai pela ação do Espírito Santo, poderia levar-nos a não compreender a ligação profunda que existe entre a situação da Sagrada Família e a situação de nossas famílias. Seria um erro, porque a graça não anula a natureza.        

Os membros da Sagrada Família de Nazaré são unidos pela obediência e vivência da vontade de Deus. Maria Santíssima, Nossa Senhora, com seu Fiat, se entrega totalmente à vontade de Deus (cf. Lc 1,38). São Jose, mesmo não entendendo o plano de Deus, colabora com a vontade de Deus (cf. Mt 1,24-25). A vida de Jesus é alimentada totalmente pela vontade de Deus (cf. Jo 4,34). A família de Nazaré vive a fé e da fé e é conduzida, momento a momento, pela descoberta da vontade e do desígnio de Deus como qualquer família humana.      

A família deveria ser, no desígnio de Deus, a continuação da criação. E a criação é a participação da vida por amor. Deus cria, dá a vida a seres livres, porque é bom, porque é amor e o amor tende, por natureza, a se difundir e a se comunicar. Sob essa luz a família é como a realidade querida por Deus a fim de que a vida se difunda no tempo por meio do amor. Por isso, toda a família é sagrada porque é chamada a fazer da criança o adulto capaz de amar como Deus ama. 

O lar que dá espaço para Deus se torna a morada de Deus. E Deus dá o brilho por dentro à família. Quando nosso brilho vem do interior, aquece a família inteira, preenchendo-a de uma paz e de uma suavidade que serão sentidos por todos que nela entram. Assim o nosso lar se torna um ponto de partida seguro que nos dá confiança para explorar o terreno de um mundo imprevisível e frequentemente perigoso. É nesse lar que aprendemos a sobreviver, a trabalhar e a brincar, a ser tranquilos conosco e com os outros. Quando Deus se torna centro de nossa família, ela não pode viver sem a verdade, pois a família é o ponto de vida social em que existe extrema sensibilidade para a verdade. E se falta a verdade na relação, na comunhão das pessoas: marido, esposa, pais, filhos, irmãos, rompe-se a comunhão, consequentemente a harmonia e a missão da família é destruída (João Paulo II). De nada adiantam desenvolvimento, riqueza e opulência se faltar a verdade.        

Portanto, olhando para a Sagrada Família de Nazaré na qual Jesus é o centro entendemos que não há graça maior e mais desejável, neste mundo do que ter uma família. Porque ela é a base de uma história, de nossa história. A sua existência é tão importante até nenhuma instituição ou riqueza no mundo pode substituí-la; ela é insubstituível. Só a família é capaz de matar a saudade que sentimos quando ficarmos longe dela ou quando nos sentirmos desamparados, porque todas as portas podem fechar-se, mas jamais a da nossa família. Por isso, a família é um tesouro sem preço, é um sonho vivo, desejável e um porto seguro nas horas de alegria e de dificuldades. E isto vale para todo mundo: rico ou pobre, jovem ou velho. A família, por isso, continua ocupando o lugar muito importante para a vida de um ser humano em qualquer lugar e época.

A Sagrada Família de Nazaré aparece hoje como uma lição para as nossas famílias. São várias as direções ou orientações que podemos tirar. 

Em primeiro lugar, Deus quer encarnar-se numa família humana com raízes genealógicas em um povo: Abarão, Davi. O que era “da mesma natureza do Pai”, se fez um de nós e “compartilhou em toda nossa condição humana, menos no pecado”.

Em segundo lugar, precisamos nos aproximar da Sagrada Família com muito respeito. Esta Família formada por Maria, José e Jesus foi chamada para o serviço do plano salvador de Deus de maneira muito especial. Especial porque Maria é virgem, José não é o pai biológico de Jesus e Jesus é o Deus Encarnado. Todos eles estão em sintonia total com a vontade de Deus. É verdadeiramente uma Família Sagrada e Consagrada totalmente ao plano salvador de Deus.

Em terceiro lugar, a Sagrada Família de Nazaré nos convida a revisarmos o clima de amor, compreensão e comunicação em nossa própria família ou comunidade. O segredo da Sagrada Família é estar unidos e submetidos à vontade de Deus. O Natal nos convida a uma verdade de que a caridade começa em casa e pela família por ter experimentado a proximidade do amor de Deus. 

Por isso, em quatro lugar, a saúde de uma família cristã, seu equilíbrio tem um fator decisivo em sua atitude diante de Deus: a escuta obediente a Sua Palavra, a oração, a “apresentação no Templo” e o encontro com Deus na Eucaristia, pois tudo isto que dá a solidez ao amor mútuo e firmeza a uma fé que não poucas vezes atravessa momentos difíceis.         

Por tanto, com a festa da Sagrada Família a Igreja quer acima de tudo exaltar e reafirmar a dignidade da família, através da qual ela mesma recebe o Salvador; além disso, quer ajudar-nos a refletir como cristãos sobre a realidade em cujo seio vivemos todos e à qual, antes de mais nada, devemos a própria vida.

P. Vitus Gustama,svd

2 comentários:

Márcio Higa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Márcio Higa disse...

Maravilhoso ensinamento Pe. Vitus! Obrigado!

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