quarta-feira, 6 de abril de 2022

Sexta-feira Santa,15/04/2022

A ESPIRITUALIDADE DA CRUZ DE JESUS

Sexta-feira Santa  

Hoje é, propriamente, o princípio da celebração da Páscoa. Páscoa significa passagem, a passagem da morte à vida. Dentro desta verdade concluímos que o sentido último da cruz é este: o que dá a vida ganha-a. A ressurreição autentifica o modo de viver e de ser de Jesus. A ressurreição está implícita no mistério da cruz. Por isso, a celebração de hoje não pode centrar-se somente ou simplesmente na dor e na paixão pela morte. Mas trata-se de um mistério cheio de sentido salvador para cada homem. Não é somente um mistério a ser contemplado e sim um mistério que devemos viver como a fonte mais profunda de todo nosso ser como cristãos.        

Além do mais, hoje somos convidados a contemplar e a viver o amor de Deus. Somos chamados a adorar e a dar graças porque Alguém decidiu amar totalmente. Adorar e dar graças porque Deus quer assumir a história humana totalmente para transformá-la em história divina. Diante da cruz de Jesus decidimos que cremos que seu amor é fonte de vida, que o amor é mais forte que o mal que O crucificou. Diante da Cruz de Jesus queremos afirmar: Jesus é o Senhor, pois somente Aquele que é capaz de morrer por todos pode ser chamado de Senhor. A adoração da cruz será hoje expressão de tudo isso. 

1. Contemplar A Cruz De Jesus A Partir Das Razões De Seu Sofrimento        

Hoje diante da Cruz de Jesus somos convidados a contemplá-la com os olhos da fé. A contemplação das dores sofridas por Jesus durante sua Paixão e morte não deve nos deixar unicamente impressão sensível e sentimental. Temos que chegar a uma compaixão mais profunda, aquela atitude espiritual que nos faz sintonizar com o fundo do sofrimento da pessoa que padece, isto é, com os motivos reais de seu sofrimento. Ao contemplar a Cruz de Jesus devemos chegar a uma “Com-Paixão”, aquela atitude espiritual que nos faz perceber o fundo da Paixão de Jesus, a raiz de seu sofrimento e a novidade exaltante que dela brota.        

Segundo o Cântico de Isaías, Jesus aceitou voluntariamente as dores da paixão para “saber dizer ao cansado uma palavra de conforto”(Is 50,4), isto é, para destruir o mal profundo dos homens. Num ato total de entrega consciente e lúcida, levando ao extremo Sua obediência, Sua fidelidade ao plano de Deus em prol dos homens, Jesus deu sua vida. Abertos os braços em atitude de Crucificado, Jesus abraça a cada um de nós e morre intercedendo por nós todos, pecadores: “Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem!” (Lc 23,34). A cruz de Jesus é o triunfo da paz sobre a violência, da simplicidade sobre as grandezas mundanas, da alegria sobre a tristeza, do amor sobre o ódio e da vida sobre a morte. Pela sua Cruz Jesus se salva e nos salva também. Jesus converteu o sofrimento, conseqüência de sua fidelidade à vontade de Deus, em um momento de comunhão com Deus e com os irmãos, todos nós. A cruz de Jesus é uma prova de uma vida dada, oferecida e entrega em favor dos outros. É o sinal revelador da capacidade de perder a própria vida em benefício dos demais. Isto é que qualifica a cruz cristã. Por isso, na Cruz de Jesus temos a vida e a vitória definitiva, como cantamos sempre: “Vitória, Tu reinarás, ó Cruz, Tu nos salvarás!” Adoraremos verdadeiramente a Cruz de Cristo quando nos levantarmos e nos convertermos em pessoas abertas para todos, pessoas capazes de perder tempo e bens para que também os outros possam viver e sobreviver.       

Na Igreja as dores de Cristo continuam porque a comunidade cristã é o lugar da luta contra o mal. O amor de Deus não nos protege de todo sofrimento, mas nos protege em todos os sofrimentos. Se Deus nos protege em todos os sofrimentos, crer na Cruz de Jesus significa, então, descobrir a proximidade de Deus e Sua presença em nossa dor e sofrimento sabendo que um dia “Ele mesmo enxugará toda lágrima dos nossos olhos, pois nunca mais haverá morte nem luto nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram” (Ap 21,4). Em cada sofrimento temos que saber nos entregar nas mãos de Deus a exemplo de Cristo: “Pai, em Tuas mãos entrego meu espírito”(Lc 23,46). Esta é a última palavra de Jesus. Não é o grito da dúvida e sim o grito da confiança. No momento decisivo da morte, Jesus renova sua confiança total ao Pai. Jesus sabe que a morte não é uma queda no vazio, e sim um dormir nas mãos de seu Pai. Se alguma vez passou por noites escuras, agora, para Jesus, tudo se ilumina e se serena. A serenidade é o fruto da fé, da entrega nas mãos de Deus. Quem acredita profundamente em Deus, vive sempre na serenidade, pois ele sabe que Deus o protege em todos os momentos: nas alegrias e nos sofrimentos.        

Por ser o lugar contra o mal não há nenhuma dor humana que seja estranha para a verdadeira Igreja de Cristo. A Paixão de Cristo continua hoje em todos os homens que sofrem qualquer tipo de dor física e moral: fome, nudez, pobreza e abandono, tristeza, desespero, falta de compreensão e falta de amor. A Paixão de Cristo continua em todos os homens vítimas do ódio dos demais. Desde que Cristo obedeceu à vontade de Deus e desde que os cristãos vivem seriamente os ensinamentos de Cristo, é uma lei ou uma conseqüência inevitável a necessidade da dor, da “derrota”, da morte para alcançar a vitória, a liberdade, a vida, pois não há ressurreição sem cruz, sem sofrimento, como conseqüência do bem vivido e praticado. Por isso, chegaremos ao núcleo essencial da compaixão até Cristo, quando fizermos ou mantivermos uma luta efetiva contra o pecado e todo o mal em nós e nos demais; quando estivermos de braços abertos para abraçar todos como irmãos e para protegê-los de todo o mal; quando perdermos tempo para ajudar os outros, pois o tempo que perdemos para ajudar os outros é o tempo que ganhamos para Deus e para nós mesmos, para nossa salvação e a salvação dos favorecidos. 

2. Um Amor Que Não Conhece Limites: A Cruz Como Espiritualidade        

A espiritualidade mais legítima da cruz, aquilo que move Jesus a aceitar a cruz, é o amor: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15,13). Mas todo amor vivido sempre tem suas conseqüências, sejam positivas sejam negativas. O Jesus que ama a todos, especialmente os pobres e os desprezados e que intercede por eles ganhou a inimizade das classes dirigentes que querem manter a desigualdade. Jesus não foi condenado por ter pretensões divinas nem porque fosse fraco humanamente, mas pela força com que tomou partido a favor do homem, um partido subversivo para os apegados ao poder e não à fraternidade. Sua forma de ser obrigou os poderosos a tirar as máscaras. Os que pretendem manter as máscaras a fim de manter seu poder dominador geralmente recorrem à mentira e à contradição. Mas os hipócritas de sempre que, no momento em que se justificam, desqualificam-se a si mesmos. Por isso, a cruz de Jesus não é o autopagamento de uma dívida devida pelos homens a Deus, mas a manifestação extrema do pecado do mundo, que rejeita o Filho de Deus (cf. Jo 16,9), e, portanto, rejeita o amor de Deus. A cruz foi resposta do mundo ao oferecimento salvífico de Jesus, ao oferecimento de seu amor pela humanidade. Foi esse compromisso de amor que levou Jesus à morte. A cruz é o fim de um amor radical no qual já não importa considerar as conseqüências para a própria vida. Quem não põe limites a seu compromisso a favor dos outros, cedo ou tarde termina pagando com a vida (cf. 2Tm 3,12).        

Mas precisamos estar conscientes de que na Cruz de Jesus não fica justificado o sofrimento humano. O que aparece na cruz é o tremendo respeito de Deus pelo homem, embora Deus não concorde com tudo o que os homens fazem. Na cruz, trata-se de um combate entre a verdade e a mentira, entre o amor e o ódio, entre a justiça e a injustiça de quem se apega ao poder do que da busca do bem de todos, especialmente dos mais necessitados.  O poder de Deus não se manifesta de forma destruidora, mas se manifesta no amor que devolve ao homem a capacidade de viver na fraternidade onde um se torna protetor do outro, pois todos são irmãos, filho do Pai Comum: Deus.        

A partir desta perspectiva e dentro do contexto da espiritualidade da cruz, para os cristãos a cruz deixa de ser um acontecimento do passado para se transformar em algo presente. Isto quer nos dizer que a espiritualidade dos cristãos, a partir da cruz, é e será sempre a mesma que a do Crucificado: crucificar o próprio eu (cf. Rm 6,6), a fim de poder agir com o espírito de Jesus a favor dos outros. Seremos irmãos dos outros quando prestarmos serviços aos necessitados desinteressadamente.        

Além do mais através da cruz Deus quer nos dar um recado importantíssimo: o mal não tem futuro algum. O mal acabará se destruindo a si mesmo. Por essa razão, Jesus não pede ao Pai nenhum poder destruidor: não pede legiões de anjos que o protejam. Tampouco devolve o mal pelo mal, nem insulto por insulto, nem profere ameaças (cf. 1Pd 2,23), pois tudo isto a nada conduz e estaria no nível do mal e estaria em contradição com o próprio modo de ser de Deus. Jesus prefere o poder do amor, um poder desarmado. O poder do amor que permite Jesus exclamar: “Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Palavras que somente podem escutar-se com profundo respeito: Jesus não só perdoa seus inimigos, mas faz mais: justifica-os, torna-os justos. Por isso, a cruz se converte em redentora por causa do grande amor de Deus e do Filho que, inclusive quando são rejeitados, continuam amando os homens. Na entrega, Jesus não somente dava a vida, mas também encontrava a vida: “Dou a minha vida para a retornar” (Jo 10,17; Mc 8,25). Tal é o poder do amor. Essa profunda convicção foi que guiou Jesus: o amor jamais uma perda. O amor é sempre fonte de vida. Quando alguém se dá, ganha-se muito mais. O poder do amor que é um poder desarmado e vulnerável se transforma em um poder que desarma. Quem se oferece em sua vulnerabilidade por amor pode desarmar a maldade. 

3. Nossas Cruzes E A Nossa Cruz Existencial Sob A Cruz De Cristo: Um Chamado À Conversão Contínua         

Todos nós carregamos alguma cruz na nossa vida. Há cruzes de todos os tipos. Há cruzes em todos os caminhos. Para encará-la cada um tem seu próprio modo. Para alguns, a cruz pode ser vivida como tribulação, para os outros ela pode ser vivida como libertação. Há cruzes com Cristo, mas há também cruzes sem Cristo. Cada cruz, então, tem uma história e cada história tem uma cruz. A cruz sem Cristo é a cruz-condenação. É a cruz de quem deseja ser um deus. É a cruz que não tem finalidade em si mesmo. É a cruz sem fé, sem amor, sem sentido da vida, sem renúncia por amor. É a cruz de quem deseja viver numa liberdade sem responsabilidade, de quem vive no prazer desenfreado que resulta no sofrimento sem fim. Jesus Cristo, que foi crucificado, transformou a cruz de castigo em bênção.          

A mãe de Jesus acompanhava o filho Jesus que estava carregando a cruz silenciosamente. A cruz do filho é a cruz da mãe. Ela também carrega esta cruz silenciosamente. A ressurreição do filho é a ressurreição da mãe. Na Mãe de Jesus podemos ver tantas mães do mundo. Sem dúvida, muitas mães carregam silenciosamente a cruz ao saber que seu filho se droga ou se perde no mundo da criminalidade ou sofre de alguma doença incurável. Crucificadas, essas mães acompanham a cruz de seu(s) filho(s) com o amor incondicional como a Mãe de Jesus que se encontrou ao pé da cruz com o amor incondicional.          

Todos nós somos convidados a refletir tais situações e outros tipos de cruz sob a cruz de Jesus ressuscitado que transformou a cruz em momento de transfiguração cujo ápice é a sua ressurreição. A partir de Cristo e somente com Cristo podemos sofrer, mas nunca sofreremos em vão. Sem Cristo é que sofreremos em vão. Este tipo de sofrimento tortura e angustia e não liberta.        

Além das cruzes que encontramos na vida, ou por nossa própria culpa ou como consequência de uma opção pelos valores cristãos, carregamos também a cruz existencial. Gostaríamos de viver eternamente nesta terra, e livres de qualquer contratempo, por um lado, mas os nossos limites como criaturas não nos deixam sermos o que gostaríamos de ser, por outro lado. Temos desejo infinito por vida ou pela vida, mas somos obrigados a aceitar um fato brutal de que temos que morrer. A vida em si, em sua estrutura, hospeda a morte. Jesus, o homem verdadeiro e o Deus verdadeiro, participou da estrutura humana. Ele morreu não somente porque os homens O mataram, mas também porque ele é o homem que morreu como todos nós morremos. Mas para que esta estrutura de uma criatura limitada se torne em uma transfiguração, precisamos ser despojados como Cristo para que o Deus da vida, o Absoluto, o Eterno, o Infinito possa hospedar na nossa estrutura mortal para transformá-la em uma estrutura imortal. Somente com isto teremos outra concepção sobre a morte: morrer não é mais um fim de tudo(acabou tudo), e sim uma peregrinação para a fonte da vida, para o Deus vivo que nos espera. Esta consciência e a fé nesta certeza nos leva a dizermos que o homem nunca morre e sim uma criatura que nasce duas vezes: nasce quando deixa o seio materno para entrar num mundo maior onde ele se junta com outros companheiros de viagem rumo para o outro nascimento que é a entrada na vida eterna.        

Cristo carregou uma cruz mas nunca foi cruz para os outros nem colocou cruzes nos caminhos dos outros. Quando contrariarmos a vontade de Deus por causa do pecado que faz ninho dentro de nós, nos tornaremos cruzes para os outros e colocaremos cruzes em seus caminhos. Quando os outros contrariarem a vontade de Deus, tornar-se-ão cruzes para nós e colocarão cruzes em nossos caminhos. Assim, os outros são cruzes para nós e nós somos cruzes para os outros. Cristo quer que não sejamos cruzes para ninguém mas imitadores de seu amor apaixonado.          

Por isso, pregar a cruz a partir de Cristo significa ter consciência do pecado que faz ninho no nosso coração que causa tantas cruzes na própria vida de quem o comete e na vida dos outros com quem convive. A presença do pecado como uma força destruidora cria muitas cruzes na convivência humana, pois nunca somente vivemos, mas sempre convivemos. Cada ato nosso, seja positivo ou negativo, sempre tem conseqüência direto ou indiretamente para a vida dos outros. Esta consciência de ser nosso coração a hospedagem também do pecado, nos leva a um ato de acabar com as muitas cruzes que criamos através do trabalho contínuo de arrancar o ninho do pecado dentro de nós através da conversão contínua. Não podemos esquecer que a cruz de Jesus é uma revolta contra a dignidade humana violada, contra aquilo que deveria ter evitado para não criar tantos sofrimentos na própria vida e na vida alheia. Pregar a cruz de Cristo significa convocar as pessoas para um amor e para um perdão incondicionais, para a capacidade de não permitir que o ódio e suas múltiplas manifestações reinem o coração humano onde Deus deposita seus segredos. Sem esta atitude não haverá a paz e a ressurreição; não haverá a passagem do homem velho para o homem novo criado para o céu. Que sejamos uma ressurreição e não a cruz para os outros. Que sejamos solução e não problema para os outros. 

A partir do amor de Cristo, por nós, que foi levado até o fim percebemos que estávamos lá no Calvário. Todos nós estávamos lá na mente e no coração de Cristo. Ele nos conhecia todos, sofria por todos, nos amava e nos redimia a todos. Ele “tomou as nossas enfermidades e sobrecarregou-se dos nossos males” (Is 53,4; Mt 8,17). Estávamos lá cravados na cruz com Cristo, moremos com ele e ressuscitamos com ele. 

Olhando para a Cruz de Cristo, a partir de nós, percebemos que a cruz de Cristo é um produto terrível do pecado. Foi meu pecado que crucificou Jesus. Da cruz sabemos que o preço do pecado é a morte. Jesus morreu porque o ser humano não tolera a defesa do pobre e do inocente, nem o desvelamento da hipocrisia, nem a denúncia da injustiça, nem a ruptura das convenções e privilégios sociais e religiosos. Jesus morreu porque era bom e não compactou com a maldade, com a corrupção, com a desonestidade, com a exploração, com a deslealdade, com a injustiça, mas se colocou, do lado dos oprimidos, dos justos, dos leais, dos honestos, dos inocentes sem retroceder diante das consequências. Cristo prefere ser crucificado a trair a verdade, o amor, a justiça, a honestidade. Por isso é que Ele foi ressuscitado por Deus Pai.

P. Vitus Gustama,svd

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