DIA DE FINADOS
“Aqueles que nos deixaram
não estão ausentes, e sim invisíveis. Têm seus olhos cheios de glória, fixos nos nossos cheios de lágrimas”
(Santo Agostinho)
Viver a Esperança Na Ressurreição
“Não enganes a ti mesmo. Gostes ou não, não é mais que um convidado, um transeunte, um peregrino neste mundo. Podes, pois, adoçar teu caminho; porém, por mais que queiras, não poderás converte-te em residente”
(Santo Agostinho: In ps. 120,14)
“A morte não deve ser tida como uma tragédia, quando é a culminância de uma vida de bondade”
(Santo Agostinho: De civ. Dei 1,11)
Dedicar um dia do ano litúrgico à oração pelos defuntos apareceu coo costume de algumas ordens monásticas no século IX. No ano 998 o abade santo Odilão de Cluny (994-1048) decretou que em todos os mosteiros sob sua jurisdição se fizesse a comemoração festiva de todos os fieis defuntos no dia 2 de Novembro. Com o tempo se foi extendendo para a Igreja universal. No ano 1915, em consideração aos mortos da Primeira Guerra Mundial, o papa Bento XV concedeu que os sacerdotes pudessem celebrar este dia três missas e assim poder atender à demanda de sufrágio.
A reforma conciliar (Concílio Vatican II) através da Constituição sore a Sagrada Liturgia afirma: “As exéquias devem exprimir melhor o sentido pascal da morte cristã. Adapte-se mais o rito às condições e tradições das várias regiões, mesmo na cor litúrgica” (Sacrosanctum Concilium n.81). Dai as novidades nas leituras, orações e cor de ornamentação que temos visto nas exéquias.
Na missa desta comemoração de Todos os Fiéis defuntos não há leituras bíblicas próprias. São escolhidas os textos do Elenco de Leituras para as missas de defuntos.
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O dia de finados é o dia de saudade porque ele nos leva às nossas raízes familiares. Ele leva as pessoas à memória familiar. Cada um de nós sempre tem algum lugar especial no coração para a lembrança daqueles que conviveram conosco, mas partiram antes de nós. Por isso, neste dia as lágrimas rolam dos olhos espontaneamente. A lágrima é a única linguagem que é capaz de expressar toda a nossa emoção e todo o nosso sentimento. Neste dia, cada um leva as flores ao cemitério para enfeitar o túmulo do ente querido por um dia e acende umas velas. Levar flores aos túmulos é um rito muito significativo. Além de ser uma expressão de gratidão e de reconhecimento pelo que Deus realizou, por sua graça naqueles que nos precederam na fé, as flores simbolizam, principalmente, o jardim, o paraíso, a felicidade eterna, que todos desejam aos seus entes queridos, como também nós desejamos para nós mesmos que estamos peregrinando neste mundo.
Dia de Finados é o dia especial em que todos nós somos chamados a voltar para a raiz familiar. É o dia em que todos nós voltamos a sentir, de uma maneira especial, a presença de todos os membros de nossa família que já partiram. Por algum instante visitamos, na memória, o passado no qual convivíamos e que no presente estão ausentes fisicamente. É um dia de saudade dos que conviveram conosco, mas partiram antes de nós. É o dia de saudade porque quando a morte atinge nossos entes queridos, uma parte de nós se vai com eles. Nós nos unimos à sua entrega total e sabemos que também nós estamos partindo (morrendo). Algo de nós se vai para sempre quando uma pessoa amada morre.
A partir da morte percebemos que a vida é um mosaico de tempos diversos. Cada momento é assinalado por algo que se deixa ou por algo que se descobre. Cada momento comporta a separação daquilo que se era, para se aventurar em direção do que se pode vir a ser. Nesta dinâmica universal e constitutiva da vida, relação e separação, encontro e despedida, nascimento e morte, não se excluem, mas se atraem. A relação atrai a separação. O encontro atrai a despedida. O nascimento atrai a morte. Aquele que é capaz de acolher, saberá também se separar, assim como a separação é pré-requisito de qualquer encontro. Talvez na linguagem bíblica possamos dizer: “Tudo tem seu tempo. Há um momento oportuno para cada coisa de baixo do céu: tempo para nascer, e tempo para morrer... Tempo para chorar, e tempo para rir... Tempo para dar abraços, e tempo para afastar dos abraços” (Ecl 3,1-2.4.5b). Cedo ou tarde chegará o momento de dizer “adeus”: o amor ganha, então, as feições da dor. E repentinamente o passado reaparece com suas recordações, o presente se impregna de solidão e o futuro se desdenha repleto de incertezas para quem não se prepara e não sabe lidar com tudo isso. Um poeta espanhol escreveu: “Partiremos, quando nascermos, caminharemos enquanto vivermos, e chegaremos no momento em que morrermos”.
O Dia de finados quer nos relembrar que a vida é sempre uma partida. Há uma partida para os olhos que se fecham, para os ouvidos que se cansam e para o corpo que envelhece. A condição humana é ser passageiro, ser transitório, ser limitado. Estamos sempre na saudação dos que chegam, no nascimento, e da despedida dos que partem sem volta para este mundo fisicamente, na morte. Em tudo há um adeus. E ninguém tem poder de parar o tempo. Todo nascimento é uma referência existencial à morte que é seu termo. Em outras palavras, a chegada será sempre uma partida. Um encontro será sempre uma despedida. Em cada nascimento esconde-se a morte.
Se a morte é a certeza, a imortalidade é a esperança. A teologia da esperança nos leva à verdade que nós existimos no mundo, mas acima do mundo, no tempo, mas acima do tempo. O nosso Credo termina com uma afirmação de esperança: “Creio na ressurreição da carne e na vida eterna”. E o prefácio da missa destaca a crença cristã: “Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada...” Por isso, olhando para todos os túmulos, que possamos dizer: “Tudo isto vai ser vencido. Um dia, os túmulos se abrirão à voz de Deus. Mais do que para os cemitérios, caminhemos para Deus”
A partir da teologia da esperança, o dia de finados é também, e principalmente, o dia da esperança. O filósofo Aristóteles chama a esperança como “sonho de quem está acordado”. De onde vem esta esperança? Ela vem das próprias palavras de Jesus Cristo: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crer em mim, ainda que esteja morto, viverá” (Jo 11,25) e da sua própria ressurreição: “Se Cristo não ressuscitasse seria vã a nossa pregação e seria vã a vossa fé” (1Cor 15,14). Por isso, crer em Jesus Cristo, o Ressuscitado, significa jamais parar de existir. A partir da ressurreição do Senhor em quem acreditamos, não vivemos mais para morrer e sim morremos para viver. A vida não mais pertence à morte e sim a morte pertence à vida. A vida é real, enquanto que a morte é passageira. Temos que abraçar o que é real, e largar o que é passageiro. Dizia muito bem Tertuliano, um dos padres da Igreja dos primeiros séculos: “A esperança cristã é a ressurreição dos mortos; tudo o que somos nós o somos enquanto acreditamos na ressurreição”. A ressurreição de Cristo coloca o ser humano na dimensão de salvação, anunciando que a vida é mais forte do que a morte, que a nova vida nasce da morte, assim como cada dia é precedido pela noite.
Para nós que acreditamos no Deus da Vida a morte é o caminho que termina em Deus, de onde, um dia, saímos e um outro dia voltaremos. Isto significa que nós pertencemos ao Senhor: “Se vivemos, é para o Senhor, que vivemos; se morremos, é para o Senhor que morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor” (Rm 14,8). A vida que nos foi dada não pertence ao homem, mas a Deus. Essa pertença a Deus é o que torna a vida algo sagrado. E para todos os homens, a vida temporal é dada como semente de vida eterna (cf. 1Cor 15,35-58). Por isso, morrer significa entregar totalmente a vida a Deus. O mesmo Senhor que nos criou por amor, nos acolhe também para um amor infinito, para uma perfeita comunhão com Ele, para uma eternidade (cf. Jo 14,1-6). É uma partida com chegada definitiva. São Pedro expressa esta realidade nestas palavras: “Fugindo da corrupção, nos tornamos participantes da natureza divina” (2Pd 1,4). Para nós, morrer é entregar a vida para Deus a exemplo de Jesus Cristo, que ao entregar a vida totalmente à vontade de Deus, ele experimentou a ressurreição. A ressurreição de Jesus é a mensagem mais clara sobre o futuro do homem (cf. 1Cor 15,12-19).
A Igreja sempre acredita na imortalidade da alma. Por isso, no Credo professamos: “Creio na comunhão dos santos... Creio na ressurreição da carne... Creio na ressurreição da carne...Creio na remissão dos pecados”. Este Credo se baseia sobre a ressurreição de Jesus. Até São Paulo chegou a dizer que se Cristo não ressuscitasse, seria vã a nossa pregação e seria vã também a nossa fé (cf. 1Cor 15,14). A ressurreição do Senhor vem nos dizer que o homem não nasce para morrer, mas nasce para ressuscitar, para viver. A vida não pertence à morte e sim a morte pertence à vida. Por isso, um cristão nunca morre, e sim ele nasce duas vezes: nasceu do ventre materno pela primeira vez e nasce para a vida eterna pela segunda vez. A morte é considerada como uma passagem para a vida. O destino do homem, então, não é o cemitério. Não estamos caminhando para o cemitério, mas para a Casa do Pai que está pronto para nos acolher e abraçar (cf. Jo 14,1-6).
E nós que ainda nos resta a vida, o que devemos fazer?
Em primeiro lugar, precisamos valorizar a presença, pois ela é um dom. Muitas vezes sentimos a importância de uma pessoa somente na sua ausência. Precisamos estar conscientes de que como é bom estarmos juntos enquanto for dado a nós o dom de convivência, pois vai chegar um dia em que seremos obrigados a viver de outra maneira.
Em segundo lugar, não precisamos acumular as flores para formar um dia uma coroa de flores para um caixão, pois uma flor oferecida para uma pessoa viva vale muito mais do que uma coroa de flores para um morto. Que a coroa de flores oferecida na morte de alguém represente todas as flores dadas durante a vida daquele que já se foi.
Em terceiro lugar, não precisamos esperar alguém morrer para elogiá-lo ou para falar de suas virtudes. É bom elogiarmos quem merece ser elogiado enquanto ele estiver convivendo conosco. Pois um elogio sincero dado para um vivo vale muito mais do que um elogio triste para um caixão. Perdoemo-nos mutuamente enquanto estivermos vivos, pois como é bom experimentarmos o que é que a ressurreição ou a libertação enquanto para nós é dado o dom de viver um pouco mais.
Em quarto lugar, como é triste morrer sem ter sabido viver e ao mesmo tempo como é triste viver sem aprender a morrer. Para vivermos melhor e com outra intensidade precisamos aprender a morrer. É o paradoxo da vida: para viver verdadeiramente precisamos aprender a morrer.
Precisamos aprender a morrer de nosso egoísmo, de nossa prepotência, de nosso rancor, de nossa falta de perdão, de nossa vingança, de nossa soberba que mata a caridade e a fraternidade, de nossa preguiça de rezar e de participar do banquete celeste aqui na terra que é a eucaristia. Em outras palavras, precisamos aprender a morrer de nossa morte para que possamos ressuscitar para uma vida com Deus.
Para olhar o mundo, a nós mesmos e todos os acontecimentos na plenitude da verdade não há ponto de observação melhor que o da morte. A partir dali tudo é visto em sua justa perspectiva. Visto a partir desse ponto, tudo ganha seu justo valor. Olhar a vida a partir da morte nos ajuda extraordinariamente a vivermos bem e a valorizarmos cada segundo de nossa vida. A morte nos impede que nos prendamos às coisas, e nos impede que fixemos aqui embaixo a morada de nosso coração esquecendo que “não temos aqui residência permanente” (cf. Hb 13,14). Não é a morte que é absurda, mas a vida sem a morte.
Neste Dia de Finados, cada ser humano, cada homem e cada mulher é convidado a considerar sua peregrinação terrena não como um fim em si, mas como caminho que guia à vida sem fim: a vida com Deus. Ele também é convidado a viver sua existência cotidiana como um mistério a ser descoberto e não apenas como um problema para ser resolvido. Quanto mais se mergulha no mistério da vida, mais se descobre o mistério do homem e o mistério de Deus.
“Neste mundo só se vive uma vez. Mas se você o faz bem, uma vez é suficiente”, dizia Franz Kafka, um dos mais importantes nomes da literatura do século XX (Nascido em Praga, República Tcheca: 3/7/1883-3/6/1924).
A existência humana é uma viagem de uma única direção: sempre para a frente. Não podemos retornar ao passado, quando muito podemos evocá-lo com a mente para entender os caminhos que tomamos. O que fizemos corretamente fica como nossa herança. E aquilo que fizemos de errado já não pode ser desfeito. Vivemos numa viagem sem retorno. Por isso, somos obrigados a tomar decisões mais prudentes e sábias no aqui e agora para não nos lamentarmos mais tarde.
Muitas pessoas não descobrem o que é a vida até que estejam próximas do leito da morte. Estamos tão ocupados na busca dos maiores prazeres que perdemos a chance de aproveitar a simplicidade da vida em seus detalhes. Vivemos numa época em que conquistamos as montanhas mais altas, mas ainda não aprendemos a conquistar a nós mesmos. Temos mais posses e menos felicidade; mentes mais cheias, mas vidas mais vazias.
Que os que nos precederam descansem em paz (RIP) e que nós, que ainda estamos peregrinando neste mundo, vivamos em paz para que possamos alcançar a morada eterna, a casa do Pai do céu. Assim seja.
P. Vitus Gustama,SVD
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