quarta-feira, 7 de abril de 2021

II Domingo Da Páscoa,11/04/2021

JESUS RESSUSCITADO DEVE OCUPAR O LUGAR CENTRAL NA VIDA DOS HOMENS PARA QUE HAJA A PAZ NA CONVIVÊNCIA

II DOMINGO DA PÁSCOA

I Leitura: At 4,32-35

32 A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava como próprias as coisas que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum. 33 Com grandes sinais de poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E os fiéis eram estimados por todos. 34 Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas, vendiam-nas, levavam o dinheiro, 35 e o colocavam aos pés dos apóstolos. Depois, era distribuído conforme a necessidade de cada um.

II Leitura: 1Jo 5,1-6

Caríssimos: 1 Todo o que crê que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus, e quem ama aquele que gerou alguém, amará também aquele que dele nasceu. 2 Podemos saber que amamos os filhos de Deus, quando amamos a Deus e guardamos os seus mandamentos. 3 Pois isto é amar a Deus: observar os seus mandamentos. E os seus mandamentos não são pesados, 4 pois todo o que nasceu de Deus vence o mundo. E esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé. 5 Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus? 6Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo. (Não veio somente com a água, mas com a água e o sangue.) E o Espírito é que dá testemunho, porque o Espírito é a Verdade.

Evangelho: Jo 20,19-31

19Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: “A paz esteja convosco”. 20Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor. 21Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. 22E, depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. 23A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos”. 24Tomé, chamado Dídimo, que era um dos doze, não estava com eles quando Jesus veio. 25Os outros discípulos contaram-lhe depois: “Vimos o Senhor!” Mas Tomé disse-lhes: “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei”. 26Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”. 27Depois disse a Tomé: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel”. 28Tomé respondeu: “Meu Senhor e meu Deus!” 29Jesus lhe disse: “Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” 30Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. 31Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e, para que, crendo, tenhais a vida em seu nome.

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I. Domingo Da Divina Misericórdia 

Neste Domingo é encerrada a oitava da Páscoa. Ao mesmo tempo este Segundo Domingo da Páscoa é conhecido como o Domingo da Divina Misericórdia, instituído pelo Papa João Paulo II, por ocasião da canonização da Irmã Faustina Kowalska, (conhecida como Irmã da misericórdia), em 30 de Abril de 2000. Na sua homilia nesse dia (30/04/2000), o Papa João Paulo II disse: “É importante, então, que acolhamos inteiramente a mensagem que nos vem da Palavra de Deus neste segundo Domingo de Páscoa, que de agora em diante na Igreja inteira tomará o nome de ‘Domingo da Divina Misericórdia’. Nas diversas leituras, a liturgia parece traçar o caminho da misericórdia que, enquanto reconstrói a relação de cada um com Deus, suscita também entre os homens novas relações de solidariedade fraterna. Cristo ensinou-nos que o homem não só recebe e experimenta a misericórdia de Deus, mas é também chamado a ter misericórdia para com os demais. ‘Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia’ (Mt 5, 7)’ (Dives in misericordia, 14). Depois, Ele indicou-nos as múltiplas vias da misericórdia, que não só perdoa os pecados, mas vai também ao encontro de todas as necessidades dos homens. Jesus inclinou-se sobre toda a miséria humana, material e espiritual”. 

No Antigo Testamento há uma das palavras hebraicas que se traduzem simplesmente com a palavra misericórdia: RAHAMIM/ RACHAMIM, que deriva de réhem: o útero da mulher. 

RACHAMIM/RAHAMIM, literalmente, quer dizer “vísceras maternas”. Pela raiz da palavra denota o amor da mãe. Trata-se do vínculo mais profundo da unidade que liga a mãe ao filho (através da placenta), uma relação particular, um amor particular. Trata-se de uma relação simbiótica. Este amor visceral é totalmente gratuito, não fruto de merecimento. É uma exigência do coração. Rahamim dá origem a bondade e a ternura, a paciência e a compreensão e a perdão.  Em relação com Deus, rahamim significa que Deus ama com o amor visceral de uma mãe, não em relação ao mérito da Sua criatura, mas simplesmente porque a Sua criatura existe (cf. Is 49,14-16;63,16; Jr 31,20;Sl 131).Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando ainda éramos pecadores(Rm 5,7s). É um amor que existiu antes que qualquer rejeição fosse possível e permanecerá depois de todas as rejeições tenham existido. É o primeiro e o eterno amor de um Deus que é Pai - Mãe. É a fonte de todo o amor humano verdadeiro, mesmo o mais limitado. O amor de Deus por nós não é, portanto, “o fruto” ou o “rendimento” de nossas “obras” ou de nossos “méritos”. Seu amor é anterior a tudo. Ele nos amou primeiro, como diz S. João (1Jo 4,19). 

A misericórdia não é simplesmente amor: é um amor que não conhece limites, barreiras, obstáculos, fronteiras: é um amor que sabe amar também quem se tornou indigno do amor. Enquanto o amor diz somente doação, a misericórdia diz superdoação. O misericordioso não doa algo somente ao pobre ou ao necessitado, mas também a quem é indigno de ser presenteado. A misericórdia é um especial poder do amor, que prevalece sobre o ódio, a infidelidade, a deslealdade, a ingratidão. “A misericórdia”, como diz João Paulo II, “tem a forma interior do amor, que no Novo Testamento é chamado ágape. Esse amor é capaz de curvar-se ante o filho pródigo, ante a miséria humana e, sobretudo, ante a miséria moral, ante o pecado. A misericórdia se manifesta em seu aspecto verdadeiro e próprio quando valoriza, promove e explicita o bem em todas as formas de mal existente no mundo e no homem” (Dives in misericordia, no.6). O amor de Deus pelo homem é um amor essencialmente misericordioso, pois é dado a alguém que se tornou indigno, pela soberba, pela desobediência, pela ingratidão, pelos pecados, pela maldade, pela rebelião. E Deus ama o homem a ponto de fazer-se homem em Jesus Cristo: ele veio para o nosso meio, viveu como nós e ofereceu sua vida por nós. Assim ele revela esse traço de Deus misericordioso. 

Na Bula Misericordiae Vultus, bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia, Papa Francisco nos recorda: “Na Sagrada Escritura, como se vê, a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para conosco. Ele não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna-o visível e palpável. Aliás, o amor nunca poderia ser uma palavra abstrata. Por sua própria natureza, é vida concreta: intenções, atitudes, comportamentos que se verificam na atividade de todos os dias. A misericórdia de Deus é a sua responsabilidade por nós. Ele sente-Se responsável, isto é, deseja o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos. E, em sintonia com isto, se deve orientar o amor misericordioso dos cristãos. Tal como ama o Pai, assim também amam os filhos. Tal como Ele é misericordioso, assim somos chamados também nós a ser misericordiosos uns para com os outros” (n.9d). 

II. APARIÇÃO DE JESUS SEM TOMÉ          

Voltamos os olhos ao apostolo Tomé, o cético, o incrédulo, o modelo dos realistas, de todos os pessimistas, dos que desconfiam quando as coisas saem bem. São Tomé é, como muitos homens modernos, um existencialista que não crê naquilo que não pode ser tocado ou visto porque não quer viver de ilusões. Para Tomé, como para muitos, o pior é sempre o mais seguro, paradoxalmente. Mas o que mais comovente, o que faz tão fraternal o apóstolo Tomé é sua violenta resistência. Porque ele sofreu muito mais do que os outros na paixão do Mestre. Mas sofrer por não crer é uma forma discreta, humilde, trágica, leal de começar a crer. Mas Tomé tem a humildade para voltar à comunidade que ele abandonou.

A cena do evangelho deste dia acontece em Jerusalém num lugar não especificado. A tradição o identificou, embora não tenha fundamento, com o Cenáculo, a sala de cima na qual os discípulos se reuniram antes de Pentecostes (At 1,13), e onde fora instituída a Eucaristia (Lc 22,12). Jo só nos relatou que os discípulos estavam reunidos num mesmo lugar para sublinhar o caráter eclesial da aparição. A primeira unidade do evangelho de hoje (Jo 20,19-23) narra sobre a aparição do Ressuscitado aos discípulos sem a presença de Tomé. 

2.1. Jesus Vem Nos Trazer “Shalom” Conquanto Ele Deve Estar No Meio De Nós          

O relato diz que as portas estão fechadas por medo dos judeus. “Todos os homens têm medo. Todos. Aquele que não tem medo não é normal, isso nada tem a ver com a coragem”, escreveu Sarte. “Sem o medo nenhuma espécie teria sobrevivido”, acrescentou G. Delpierre.          

Realmente, a segurança fica cada vez mais distante de nós hoje em dia. Os homens perdem cada vez mais o direito de ir e de vir. Praticamente como se não fôssemos dono das coisas que conquistamos pelo nosso trabalho duro de cada dia. Perdemos o direito de usar as coisas que são nossas, fruto de nossa conquista e suor. Todos têm medo de andar na rua com coisas valiosas na mão. O muro de um prédio ou casa fica cada vez mais alto com intuito de impedir um pouco a invasão dos estranhos. As câmeras podem ser vistas em qualquer canto vigiando os que entram e saem num e dum prédio. Mas todas são feitas por um ser humana o que sugere a sua precariedade. Todos começam, por isso, a ter saudade dos tempos antigos em que podiam ficar na rua numa noite de lua cheia sem medo nem preocupação. É uma saudade do paraíso perdido pela própria culpa do ser humano. O pecado expulsa de nossa convivência a beleza do Paraíso da fraternidade. Consequentemente o ser humano se torna cada vez mais estranho para si e para os outros. Ele vive suspeitando qualquer outro desconhecido por causa da insegurança. O outro não é mais considerado como irmão, mas como uma ameaça. “A necessidade de segurança é, portanto, fundamental; está na base da afetividade e da moral humanas. A insegurança é símbolo de morte e a segurança símbolo da vida. Mas se ultrapassa uma dose suportável, ele se torna patológico e cria bloqueios. Pode-se morrer de medo, ou ao menos ficar paralisado por ele”, afirma Jean Delumeau. Nas cidades grandes tem-se impressão de que o medo já ultrapassou uma dose suportável. “O medo é um inimigo mais perigoso do que todos os outros” (Simenon). O medo constitui uma das maiores ameaças à vida; impede que a vida seja desfrutada e vivida em sua tranquilidade. O medo impede a criatividade e põe em perigo a esperança.          

Será que temos ainda alguma esperança de encontrar algum meio para arrancar todo este medo que ultrapassou uma dose suportável? A Bíblia conhece somente um meio pelo qual o coração humano se pode defender do medo: a fé em Deus. Só Deus é a rocha. As outras seguranças desiludem. Somos desafiados, por isso, a viver e a mostrar este Deus, Pai de todos para que a fraternidade universal volte a ser marca de uma convivência humana. Mas enquanto Deus continuar a ser marginalizado (ficar na margem de nosso coração), o medo e a insegurança permanecerão na convivência humana.          

O motivo do medo não é novo no quarto evangelho (cf. Jo 7,13;9,22;12,42). Os discípulos experimentaram amplamente o medo dos judeus. Seu Mestre foi executado e eles corriam risco de receber o mesmo castigo. O medo é uma emoção-choque, frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que ameaça.  Normalmente o medo provoca efeitos como: a aceleração dos movimentos do coração ou sua diminuição; uma respiração demasiadamente rápida ou lenta; um comportamento de imobilização ou uma exteriorização violenta etc. Nessa situação, para os discípulos, ter medo era ser realista.          

Certamente nessa situação Jesus apareceu no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”.  A paz, “Shalom”, é a palavra que os judeus usam até hoje como uma saudação comum. A ideia bíblica de paz, Shalom, é rica. Significa muito mais que a cessação de violência e conflito. É o estado para o qual o mundo foi criado por Deus. É a melhor descrição de como será o Reino de Deus: um “lugar” de segurança, justiça e verdade; “lugar” de confiança, inclusão e amor; “lugar” de alegria, felicidade e bem-estar. Talvez possamos traduzir a palavra “Shalom” para o português com a expressão: “Tudo de bom para você!”          

O “A paz esteja convosco” de Jesus, aqui neste texto, não é um desejo, e sim uma declaração. Ele vai além de um cumprimento por causa daquilo que Jesus proclamou na última ceia: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vos dou a paz como o mundo dá” (Jo 14,27). A própria presença de Jesus Ressuscitado oferece aos discípulos essa paz maravilhosa, pois essa é, agora, a experiência de Jesus. Seu sofrimento ficou atrás, e ele agora habita na paz de Deus. Jesus ressuscitado vem libertar os seus. Ele é fiel, pois cumpriu aquilo que ele tinha prometido: “Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós” (Jo 14,18). Aquele que se sente desamparado, aquele que está desorientado, aquele que se sente perdido deve escutar e refletir a verdade dessa promessa da presença de Jesus ressuscitado: “Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós”. A paz voltará para a convivência, se houve um lugar central para Jesus na convivência.          

Sejam órfãos no sentido literal da palavra, sejam aqueles órfãos de sentido, de carinho, de reconhecimento, de amor etc., todos encontrarão o amparo em Jesus Cristo. Procuremos este Amparo para que não sejamos órfãos de tudo. Não é por acaso que o evangelista João usa esta expressão “pôr-se no meio (centro) deles” (v.19). Isto quer dizer que Jesus deve ser o centro de nossa vida, deve ser o centro da vida da comunidade, pois ele é a fonte da vida, ele é o tronco dos galhos (cf. Jo 15,1-8), ele é o ponto de referência, o fator da unidade (cf. Jo 17,11.21-22). Para que uma comunidade se torne cristã, ela deve estar centrada em Jesus Cristo e somente nele.  Somente quando Jesus se torna centro de uma comunidade, evitar-se-á todo tipo de disputa desnecessária, a não ser somente uma disputa para servir. Sem este centro ficaremos órfãos, desamparados e perderemos a segurança. Além do mais a presença do outro se torna sempre uma ameaça e não mais uma presença de um irmão ou de uma irmã, quando Jesus Cristo não se torna único centro para todos.          

Os discípulos são convidados a superar o medo e a abrir-se à fé; só assim tornam-se disponíveis para o dom da paz e da alegria, os dois dons que Jesus lhes tinha prometido no seu discurso de despedida (cf. Jo 14,27;16,33). A paz e a alegria são o dom do Cristo Ressuscitado, mas também condição para reconhecê-lo.          

Ao contar a reação dos discípulos, Jo escreveu: “Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v.20b). O uso deste título-padrão “Senhor” pós-ressurreição é o mais próximo que João podia empregar para nos dizer que os discípulos acreditavam. Certamente “crer” no Senhor é o objetivo principal do Evangelho de João.

2.2. Missão de Jesus é a missão dos discípulos que tem origem no Pai          

O que se segue é a missão dos discípulos: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (v.21). Jesus é o Enviado por excelência (Jo 3,31-34; 5,30; 7,17s.28; 8,16.28s.42; 12,44s; 16,28).        A missão provém de Deus, que quer dar a vida ao mundo. O envio dos discípulos implica tudo o que visava o ministério confiado a Jesus: glorificar o Pai, fazendo conhecer seu nome e manifestando seu amor (cf. 17,6.26). Do mesmo modo como o Pai esteve presente com Jesus na sua missão, assim os discípulos não estarão nunca sozinhos no cumprimento de sua missão (cf. Mt 28,20).  O uso do termo “como” aqui (vv.17.18.20.21), por isso, expressa ao mesmo tempo semelhança e causalidade. A missão dos discípulos deve ser uma continuação da missão de Jesus que tem como modelo na missão de revelação e de salvação que Jesus recebeu do Pai (cf. Jo 3,17.34; 5,36.38;6,57 etc.). Isto significa que os discípulos devem seguir o caminho que Jesus percorreu, devem agir como Jesus agiu, servir como ele serviu, perdoar como ele perdoou; ou simplesmente pode-se dizer que devem amar como ele amou (cf. Jo 13,34; 15,12). Trata-se, por isso, de uma única missão.          

Aqui a ressurreição está vinculada à missão. Os discípulos são chamados e enviados para ser testemunhas do anúncio da morte que foi vencida, para ser testemunhas do “Shalom”. A Igreja surge ao redor dessa fé na ressurreição. Os discípulos são enviados para proclamar a verdade de que não é qualquer vida pode ressuscitar gloriosamente como a de Jesus, e sim somente uma vida que tem como características: vida de doação, de serviço, de perdão, de fidelidade plena a Deus, como foi a vida de Jesus. Somente assim, o cristão possuirá a vida eterna ressuscitada. Ser enviado significa ser pessoa que lança as sementes da ressurreição feito de justiça, de amor, de reconciliação e de abertura incondicional a Deus. Se um cristão, o enviado, fizer assim, a vida nova e a ressurreição estão germinando. E ele tem que cuidar bem deste germe para que ele possa chegar à sua plenitude. 

2.3. O Sopro De Jesus É O Sopro Da Vida          

“Dito isso, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (v.22). O gesto de Jesus reproduz o gesto primordial da criação dos seres humanos por Deus (Gn 2,7). O Criador “insuflou no homem um sopro que faz viver” (Sb 15,11; Ez 37,9). Assim como na primeira criação o sopro de Deus trouxe a vida ao ser humano, à sua imagem e semelhança, assim também a dádiva de Jesus de seu próprio Espírito torna os discípulos filhos de Deus, à semelhança do Filho. Agora eles nasceram do Espírito (cf. Jo 3,5). O sopro de Deus no Gênesis deu vida; o sopro de Jesus dá vida eterna. “Soprar”, por isso, quer dizer dar vida a quem não a tem. Isso significa que o ser humano só existe porque é sustentado pelo sopro de Deus. Trata-se agora da nova criação: Jesus glorificado comunica o Espírito que faz renascer o homem (cf. Jo 3,3-8), capacitando-o para partilhar a comunhão divina. O Filho que “tem a vida em si mesmo” dispõe dela a favor dos seus (cf. 5,26.21); e seu sopro é o da vida eterna.           

2.4. A Participação Dos Discípulos No Poder De Jesus Ressuscitado De Perdoar          

João relata a dádiva do Espírito por Jesus com poder sobre o pecado: “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v.23). Jesus foi enviado como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1,29; cf. 1Jo 2,1-2). Agora Jesus compartilha esse poder com seus discípulos. A descrição deste poder se relaciona ao fato de que a vinda de Jesus produzirá um julgamento (krisis) na medida em que as pessoas optarem pelas trevas ou pela luz, de modo que alguns serão condenados e outros, não (cf. Jo 3,18-21).  Jesus se assemelha tanto a Deus, a ponto de as pessoas que o encontram serem levadas a um autojulgamento. Do mesmo modo, os discípulos devem se assemelhar a Jesus para que aqueles que os encontram sejam levados também a um autojulgamento similar. Neste sentido, representar Cristo em um grau que força as pessoas a tomarem uma decisão em suas vidas é um tremendo poder. A outorga do poder de perdoar os pecados, repetida duas vezes, é formulada de maneira tipicamente semita. A frase acima dita por Jesus (v.23) significa que o poder de perdoar dado por Ressuscitado à sua Igreja é total e definitivo. Os discípulos representam, em Jo, todos os cristãos futuros: as palavras que Jesus lhes dirige coletivamente visam sempre aos fiéis em geral. Do ponto de vista exegético, não se pode limitar aos “Onze” e aos seus “sucessores” a mediação do perdão divino que o Ressuscitado confia à comunidade dos seus, menos ainda porque esta palavra segue-se imediatamente depois daquela sobre o dom do Espírito Santo.          

Para Jo o pecado fundamental é a recusa do Logos libertador. E essa recusa se manifesta através do medo e a busca da própria glória (Jo12,42s), da mentira (Jo 8,44), do ódio (Jo 15,18-25), do assassinato do Justo (Jo 7,19;8,40 e cf. 19,11). Estes princípios frustram o projeto criador e levam o homem à sua própria condenação. O pecado é opção que frustra o desígnio divino sobre o homem, privando-o da vida. O pecado cria assim uma situação de morte. O homem que faz a opção pelo pecado condena-se com ela à morte. O pecado é a solidariedade com o mal. Essa solidariedade opõe-se à solidariedade do bem criada por Jesus. Mas a salvação divina prevaleceu sobre as trevas e alcançou doravante todo ser humano, pela mediação dos discípulos. No contexto joanino, é o próprio Jesus que por meio dos seus discípulos, exerce o ministério do perdão (Jo 14,12. 20). A formulação em forma positiva e negativa vem do estilo semítico, que exprime a totalidade por um par de opostos. “Perdoar/manter” significa aqui a totalidade do poder misericordioso transmitido pelo Ressuscitado aos discípulos. A forma passiva “serão perdoados/retidos” referente ao efeito obtido implica que Deus é o autor do perdão. Pode-se dizer que no momento em que a comunidade perdoa, Deus mesmo perdoa. 

III. A APARIÇÃO DE JESUS AOS DISCÍPULOS COM TOMÉ (Jo 20,24-29) 

3.1. A Incredulidade E A Profissão De Fé De Tomé        

A segunda unidade fala do episódio com Tomé. É exclusivo de Jo. Tomé foi retratado em Jo 11,16 e 14,5 como uma figura não facilmente persuasível. Ele é um seguidor fino ou sutil mas é lento em captar o mistério da pessoa de Jesus, pois ele procura provas concretas e claras de fé (Jo 11,16;14,5).          

O texto nos diz que “Tomé não estava com eles quando Jesus apareceu” (v.14). Ele está ausente da comunidade não só em sentido próprio, mas também no figurado. Com intransigência, ele rejeita o testemunho pascal dos outros discípulos que viram o Senhor. Recusar o testemunho da ressurreição é romper com a comunidade. Por esta recusa Tomé estraga sua própria alegria e ele se torna um isolado e decepcionado. Uma pessoa que se isola não tem como curá-la. As pessoas decepcionadas têm logo a tendência a criticar duramente nos outros aquilo que mais ardentemente desejaram para si mesmas, e que não puderam conseguir. A inveja torna a pessoa amarga. A pessoa se fecha no passado, incapaz de superá-lo. A dificuldade de Tomé é ter permanecido na Paixão quando a Ressurreição mudou tudo. Ele vive nas trevas do passado e recusa o hoje radioso. Por isso, ele se torna um isolado. Uma pessoa isolada não pode ser ajudada. Só ao sair do isolamento é que ela pode ser ajudada.

Os discípulos, que viram Jesus ressuscitado em Jo 20,19-23, fazem exatamente o mesmo relato que Maria Madalena fizera a eles: “Vimos o Senhor!”(Jo 20,18.25). Mas Tomé foi inflexível ao recusar-se a acreditar na palavra deles: “Se eu não vir... e puser meu dedo... não acreditarei” (v.25b). Na verdade, outros evangelistas relatam também dúvidas dos discípulos depois da ressurreição (cf. Mt 28,17; Mc 16,11.14; Lc 24,11.41), mas somente o evangelista João dramatiza a dúvida de modo tão pessoal em um só indivíduo. A atitude de Tomé em pedir provas foi condenada por Jesus em Jo 4,48: “Se não virdes sinais e prodígios, não crereis”. O Jesus de João não rejeita a possibilidade de que sinais (milagres) e prodígios levem o povo à fé, mas rejeita sinais(milagres) que exijam o cumprimento absoluto de condições. Neste relato Tomé é apresentado como um discípulo pré-pascal, pois ele exige o aspecto miraculoso da aparição de Jesus (Jo 4,48). Como Natanael, Tomé rejeitou a fé dos outros discípulos que tinham “visto o Senhor” (v.25;1,45-46). Tomé não só não aceita o testemunho dos que viram Jesus, mas põe condições para crer. Para ele a ressurreição não aconteceu e ele acha que ele tem razão e o resto está enganado. Tais exigência revelam a teimosia e a autossuficiência de Tomé. Ele pretende ter razão sozinho contra o testemunho de todos os outros. A teimosia, geralmente, costuma pagar caro.          

Apesar da decepção e da dúvida que ele tem, no coração de Tomé ainda sobrevive o sentimento ou o desejo de ver o Senhor. Embora, para ele, voltar ao grupo signifique curvar a cabeça. Mas justamente no lugar de cura é que alguém tem coragem de mostrar as feridas. Diante de um médico é que uma pessoa tem coragem de falar das doenças.            

Nesse encontro quem toma a iniciativa é Jesus. Depois de saudá-los, Jesus logo convida Tomé a colocar dedo nas suas feridas dos pregos. Nessa altura, na sua experiência pessoal com Jesus, Tomé somente é capaz de dizer: “Meu Senhor e meu Deus (v.28). A profissão de fé de Tomé encerra uma série de confissões feitas ao longo do Evangelho de João: por Natanael (1,49), pelos samaritanos (4,42), por Pedro (6,69), pelo cego de nascença (9,38), por Marta (11,27). ”Senhor” e “Deus” (Yahweh Elohim) são nomes para Deus no AT (Sl 35,23). Isto quer dizer que a fé pascal de Tomé reconhece Deus em Jesus ressuscitado. Na verdade, o evangelista o reconhecimento da divindade de Jesus já é enfatizado no prólogo do seu evangelho: “No princípio era o Verbo... e o Verbo era Deus... E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,1.14). A resposta de Tomé em sua profissão de fé chama de volta as palavras de Jesus para si próprio e para Filipe: “Se me conheceis, também conhecereis a meu Pai...Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,7.9).  Como Natanael, o seu firme cepticismo se transforma numa suprema profissão de fé depois que ele teve uma experiência pessoal com Jesus (v.28; 1,45-49).

A profissão de fé: “Meu Senhor e meu Deus” é a maior profissão de fé no Evangelho de João. A resposta de Tomé é tão extremada como sua incredulidade. Ao chamar Jesus “meu Senhor”, Tomé reconhece o amor de Jesus e o aceita, expressando ao mesmo tempo sua total adesão. Tomé reconhece em Jesus o acabamento do projeto divino sobre o homem e o toma como modelo para si (meu Senhor e meu Deus) e reconhece em Jesus o servo glorificado em pé da igualdade com o Pai (Deus).         

Esta confissão de fé no fim do Evangelho de João faz um elo com o prólogo (Jo 1,1). A ironia final do Evangelho é que o discípulo que mais duvidou faz a mais alta da profissão de fé e diz a expressão da mais alta avaliação de Jesus, proferida em qualquer Evangelho: “Meu Senhor e meu Deus”. No prólogo o evangelista afirma que a Palavra era Deus (Jo 1,1). Agora, por uma inclusão, ele mostrou como foi difícil para os seguidores de Jesus chegarem à tal visão. Tomé tem sido lembrado como o homem que duvida por excelência; todavia, as últimas palavras de Jesus para ele, em resposta à sua profissão de fé, constituem um invejável elogio: “Tu acreditaste” (v.29a). 

3.2. A Bem-Aventurança Dirigida A Tomé E A Todos Os Que Creem Em Cristo       

Tomé acreditou quando foi desafiado pelo Mestre a realizar seu projeto de investigação para acabar com a incredulidade. O louvor final para a fé, no entanto, é estendido por Jesus àqueles que tinham acreditado sem ver a presença corporal: “Felizes os que, sem terem visto, creram!” (v.29b). Esta é a única bem-aventurança explícita referente à fé no Evangelho de João (compare Jo 13,17). Além desta bem-aventurança, somente há em todo o NT mais uma bem-aventurança referente à fé: “Feliz és tu que creste...” (Lc 1,45) dita por Isabel a Maria. A autenticidade da fé não é verificada por experiências extraordinárias, como pretendia Tomé, mas pelas práticas concretas de comunhão (Tomé antes afastou-se da comunidade), de amor (que é o maior mandamento do Senhor cf. Jo 15,12), e de serviço aos irmãos como Jesus enfatizou no lava-pés (Jo 13,14-17). Por isso, esta bem-aventurança está ao alcance de todos. Ela privilegia os que creem sem ter visto. Esta bem-aventurança é dirigida aos cristãos de todos os tempos. Portanto ela é dirigida também a mim.  Tenho que estar consciente de que para Jesus sou feliz porque creio nele como o Senhor da minha vida.  Exageradamente posso dizer que eu deveria gritar diante do mundo que sou feliz, sou bem-aventurado pelo fato de eu acreditar n´Aquele que dá sentido à minha existência, Aquele se chama “Meu Senhor e meu Deus”. No evangelho de João, nenhum maior louvor pode ser dado a Jesus do que a frase “Meu Senhor e meu Deus”; e nenhum maior louvor pode ser dado aos seguidores de Jesus do que a frase “Felizes os que, sem terem visto, creram!”. Através desta fé, a profecia de Oséias 2,25 é cumprida: “Um povo que antigamente não era um povo disse: ‘O Senhor é meu Deus’”. O próprio evangelista João afirma que através daquela fé, os seguidores de Jesus “têm a vida em seu nome” (Jo 20,31).          

Na verdade, não precisamos mais de outros sinais ou aparições. É basta abrir o Evangelho, descobrir o sentido profundo da Palavra de Deus e crer em Jesus para ter a vida em abundância (Jo 20,31), pois Jesus é a maior revelação do Pai. Crendo, começaremos ver o mundo com olhos diferentes, começaremos a perceber sentido na proposta de Jesus. A fé produz um modo novo de ver, traz uma nova escala de valores. A carta de São João diz que a vitória que vence o mundo é a fé (1Jo 5,4). Essa fé é que dá força para viver a partilha, mesmo quando a sociedade vive de acumular e explorar o próximo. Não se pode viver em paz enquanto outros sofrem e têm carência do essencial. Não sobra espaço onde cada um só pensa em si. Crer em Jesus é apostar a vida naquilo que ele propôs, mesmo quando não vemos logo um resultado. Ele nos diz que seremos felizes se acreditarmos nele. Mas também nos convida a levar a outros essa capacidade de crer e viver o evangelho. Pedro nos oferece um paralelo em sua primeira carta: “Sem tê-Lo visto, vós o amais “(1Pd 1,8). Este amor pede coragem porque jamais vimos Jesus histórico; e esta fé exige generosidade, porque não há mão que possamos segurar a não ser a mão de Deus. Que esta fé se realize na vida de cada um de nós e por nós na vida de muitos outros pois somos carta viva do Senhor ressuscitado, como diz São Paulo: “Evidentemente, sois uma carta de Cristo, entregue ao nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos corações!” (2Cor 3,3).

P. Vitus Gustama,svd

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