Domingo, 23/10/2016
HUMILDADE NA ORAÇÃO
XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM
Evangelho: Lc 18, 9-14
Naquele
tempo: 9 Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria
justiça e desprezavam os outros: 10 'Dois homens subiram ao Templo para rezar:
um era fariseu, o outro cobrador de impostos. 11 O fariseu, de pé, rezava assim
em seu íntimo: 'Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens,
ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos. 12 Eu jejuo
duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda'. 13 O cobrador de
impostos, porém, ficou à distância, e nem se atrevia a levantar os olhos para o
céu; mas batia no peito, dizendo: `Meu Deus, tem piedade de mim que sou
pecador!' 14 Eu vos digo: este último voltou para casa justificado, o outro
não. Pois quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado.'
-------------
O texto do evangelho deste domingo também faz
parte do conjunto chamado “Lições do Caminho” (Lc 9,51-19,28) que Jesus dá
durante sua última viagem para Jerusalém, pois em Jerusalém ele será
crucificado, morto e ressuscitado.
No Domingo anterior o Evangelho falou da
oração perseverante e a fé no Deus que sempre atende às nossas orações.
Continuando o tema da oração vê-se agora como se deve orar. A parábola do
fariseu e do cobrador de impostos(publicano) no evangelho deste domingo é
exclusivamente lucana. Ela não é uma história verdadeira, mas uma história que
diz alguma coisa de verdadeiro, como toda parábola.
O texto podemos dividir em três partes: v.9
serve como uma introdução; vv.10-14a falam da parábola do fariseu e publicano e
v.14b serve como uma sentença generalizante.
O v.9 une por meio da introdução do v.9a a
parábola do fariseu e do cobrador de impostos com a anterior e no v. 9b
apresenta os destinatários da parábola e sua finalidade. Esta pequena
introdução é destinada a “alguns que, convencidos de serem justos, desprezavam
os outros”. Com a palavra “alguns” sublinha-se a mensagem para qualquer um,
seja fariseu, publicano ou outra pessoa, pois sentir-se superior aos outros não
é exclusivo para os fariseus. Um orgulhoso não se preocupa em conhecer a
verdade, mas apenas em ocupar uma posição em que ele possa ser o centro e a
norma; livre de qualquer subordinação, ele pretende que tudo esteja sujeito a
si próprio. O orgulhoso possui todos os vícios: ser egoísta, injusto, ingrato,
imoral, fanfarrão (está sempre falando de si, atribuindo a si mesmo elogios por
façanhas jamais realizadas).
Depois deste versículo introdutório vem a
parábola (vv.10-14b). Na parábola nós temos a encenação de duas personagens
profundamente opostas nas pessoas do fariseus e do publicano, para representar
os dois papeis. O fariseu representa o” justo” reconhecido como tal no judaísmo
e o publicano que é enriquecido ilegalmente como cobrador de impostos, por isso
é considerado um pecador público.
O fariseu de nossa parábola observou
escrupulosamente todos os mandamentos até os mais detalhes e as proibições da
lei. A lei prescrevia um único jejum público por ano, no dia da expiação (Lv
16,29-39). Porém, o nosso fariseu jejuava duas vezes por semana, nas segundas e
nas quintas-feiras, para compensar os pecados dos outros e atrair sobre seu
povo as bênçãos de Deus. Por isso, era uma obra de merecimento adicional. Além
disso, a lei prescrevia o dízimo do trigo, do vinho novo, do azeite, dos
primogênitos do gado e do rebanho a fim de poder ajudar o serviço do Templo e
as obras de caridade (Dt 14,22-29). Mas o nosso fariseu paga o dízimo de todos
os seus rendimentos e de todos os alimentos que compra e até mesmo as ervas do
jardim (Lc 11,42). Ele ora como todos os devotos judeus: de pé, com os braços
levantados e a cabeça erguida. Ele agradece a Deus. Esta é a forma clássica da
oração bíblica e judaica: o louvor e o agradecimento a Deus (cf. Lc 10,21).
Este homem piedoso, com efeito, se preocupa com o futuro do seu povo. É
exatamente o contrário duma pessoa interessada ou egoísta. Ele se sacrifica
pelo bem comum. Até aqui ninguém conseguiria descobrir nele alguma
transgressão.
Qual, então, a falha do fariseu?
Primeiro, ele se autojustifica. Na sua
oração, Deus quase ficou esquecido, ou se quisermos falar radicalmente diremos
que Deus ficou esquecido e somente o EU predomina: Eu não sou como os demais,
eu jejuo, eu pago o dízimo. Os demais homens são o fundo escuro do magnífico autorretrato
e autoelogio. Ele vai ao Templo, carregando consigo as suas boas obras, na
certeza de que estas lhe possam merecer a justificação. A arrogante consciência
de ter feito alguma coisa, o faz acreditar que Deus se tornou seu devedor,
aliás inútil. Esse homem não está mais disponível à dádiva gratuita da
salvação. Ele se aproveita de Deus para ilustrar a si mesmo devidamente. Para
ele, o que importa não é Deus, mas sua própria perfeição. Em outras palavras,
ele rezava a si mesmo. Ele não saia de si mesmo nem olhava para Deus, mas
exclusivamente para a sua própria pessoa. Ele ficava dentro de si mesmo, rezava
a si mesmo e adorava a si mesmo. Ele abusava da oração para demonstrar sua
própria grandeza a fim de se colocar sob a devida luz diante de Deus e dos
homens. Certo, ele cumpre a lei, mas de maneira formal e material sem
abandonar-se a Deus, não espera nada de Deus, esquecendo que só Deus é justo, e
só Ele é que justifica. O fariseu se torna uma pessoa exibicionista. A
preocupação deste tipo de pessoa é ser notado e elogiado. Tudo o que ele faz é
na perspectiva de algum louvor ou elogio. O exibicionismo é a linguagem que
demonstra a ausência de um valor. Quando um valor cresce na experiência
espiritual de uma pessoa, ela ama discrição, que é a linguagem do tesouro
escondido, e se comunica pelo caminho da simplicidade, amiga do pudor.
Segundo, ele não age por amor, pois
menospreza o pecador. Ele dá graças a Deus não porque Deus é a fonte de toda
justiça, mas porque não é “como o resto dos homens: ladrões, injustos,
adúlteros e nem como este publicano”. Ele se preocupa com o futuro da nação mas
não ama o seu povo. Fica sozinho com a contagem de seus méritos. Até mesmo a
palavra “obrigado” /” agradecer” perde o seu significado, porque é dita apenas
em função de si mesmo. Essa palavra mais sagrada e mais expressiva da
gratuidade do amor é profanada pela arrogância do “eu”. Até mesmo o nome de
Deus é o pressuposto de um interlocutor de um diálogo que não houve. Na
realidade, o fariseu está concentrado apenas em si mesmo. A sua prece é um
falso diálogo, que tudo contamina e profana: Deus, o agradecimento, a si mesmo,
aos outros. Deus é apenas uma oportunidade para ele falar de si mesmo, e a
egolatria, arrogante e presunçosa, transforma-se em desprezo pelos outros.
O resultado dessa prece são as trevas de uma
vida que permanece a mesma: com o silêncio de Deus, a distância hostil dos
outros e o retorno mortificante ao próprio pecado.
Um perigo que corremos na nossa vida
espiritual e comunitária é o de nos imaginarmos perfeitos, santos, inteligentes
e piedosos. Consequentemente, corremos o perigo de nos colocarmos acima dos
outros na própria oração e na vida cotidiana com os demais. Nós sentimo-nos
superiores aos demais. O ato de julgar encontra-se, por vezes, naqueles mesmos (todos
nós) que guardam o domingo. O ir à igreja pode ser motivo para se sentir à
vontade para olhar de modo severo a quem não vai. Isto é o sinal de que não
houve a prece(oração). Assim a finalidade de ir à igreja não é mais o serviço
ou a missão, mas é o destacar-se. O resultado não é o compromisso, mas o
julgamento, que aumenta ainda mais a distância.
Somos fariseus cada vez que apelamos à nossa
boa consciência, ao cumprimento cultual, à cultura ou status religioso e
social, para nos julgarem melhores e desprezarem os “novos publicanos”:
marginalizados, alcoólicos, toxicodependentes, divorciados, mães solteiras,
prostitutas, vigaristas, oportunistas etc.... Com isto corremos o perigo de
estarmos excluídos da misericórdia divina, que somente alcançaremos
confessando-nos pecadores e miseráveis diante da tamanha santidade de Deus. O
farisaísmo nos impede de ver o que somos e falseia a nossa relação com Deus e
com os irmãos, nossos próximos. Precisamos, por isso, pedir a Deus que nos
ilumine para que possamos nos ver tal como somos e nos reconhecer pecadores.
Com este reconhecimento correremos sempre ao encontro do Senhor para que ele
nos perdoe e nos fortaleça dia após dia até o nosso encontro definitivo com ele
na vida eterna.
E o publicano? Por que Jesus o justifica na
sua oração? Qual é a sua virtude se ele é um publicano?
A lei dizia que, para salvar-se, o publicano
deveria restituir tudo o que roubou e mais 20(25) % dos juros e ainda deveria
abandonar imediatamente a sua profissão como cobrador de impostos. Condições
tão difíceis de ser cumpridas que os rabinos concordavam em afirmar que para os
publicanos a salvação era praticamente impossível. É claro que o publicano não
é um santo; pelo contrário, ele é chamado, literalmente “o pecador”, não “um
pecador”. É um ladrão diplomado, um explorador nojento. Ele sabe disto e nem
procura a mínima desculpa. Ele reconhece diante de Deus quem ele é realmente.
Ele nem tem a coragem de levantar os olhos para o céu e de erguer as mãos, como
era praxe, para rezar. Ele olha para o chão e bate no peito como aquele que
está numa situação de desespero, suplica com a fórmula do pecador que não sabe
fazer o elenco de seus pecador, dizendo:” Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!”
(cf. Sl 51,3). É a oração do pobre que confia totalmente em Deus. Sua
“segurança” é a misericórdia de Deus. Ao lado da sarça ardente da santidade de
Deus, sente-se vivamente o limite de ser criação e o peso do próprio pecado.
Quem confessa sua pobreza e sua incapacidade ou sua pecaminosidade, confiando
ilimitadamente na ação salvífica de Deus por meio de Jesus Cristo, obtém a vida
nova em Deus. Nele Deus se glorifica.
O mistério do amor, quando presente na prece,
preocupa o coração da pessoa antes de inundá-lo de alegria (cf. Lc 1,29;
5,8;18,3; Mt 8,8). O temor da santidade de Deus revela a transparência e a
verdade de uma consciência frágil ou de ser pecador. A ausência de temor a Deus
(como aconteceu com o fariseu) dá margem à indiferença diante dele, ao risco de
desprezá-lo, à perda do bom senso. A proximidade da santidade de Deus faz
perceber entre sua luz e a sombra do pecado entre os meandros do coração. Este
é o indício do verdadeiro encontro com Deus numa verdadeira oração. A única
riqueza do cobrador de impostos é uma consciência verdadeira, que se torna
espaço vital para acolher a dádiva de Deus com sua misericórdia e sua justiça.
O cobrador de impostos descobre imediatamente a presença libertadora do amor e
se abre à confiança e ao poder renovador da prece.
A lição final da parábola (v.14 a),
introduzida com força e autoridade (Eu vos digo...): “Eu vos digo: este último
voltou para casa justificado, o outro não”. O segredo da justificativa interior
é a humildade. A humildade gera a verdade. O orgulho, no entanto, é a raiz de
toda falsidade. Quando a pessoa não aceita a si própria e a seus limites,
termina por aceitar qualquer compromisso para alcançar as próprias intenções: o
seu coração torna-se uma central desordenada de pensamentos e de palavras
distorcidas e enganadoras. A humildade do cobrador de impostos torna possível
um grande desejo de autenticidade, que faz surgir uma visão verdadeira de si e
o torna disponível ao perdão de Deus, ao dom de sua graça. A humildade abre o coração
à luz que vem de Deus e é fonte de paz. A humildade é a pureza na oração: Deus
é Deus e o ser humano é apenas um pobre mendicante de misericórdia. A humildade
na oração e na vida é o terreno livre para acolher a semente da justiça. O
terreno fértil da santidade.
A sentença final (v.14b) é uma adição que já
encontramos em Lc 14,11(cf. Mt 23,12). Ali tem um nítido sentido escatológico:
na hora do Julgamento final “todo aquele que se exalta será humilhado e quem se
humilha será exaltado”. Aqui temos o mesmo sentido, dado ao discurso sobre o
Dia do Filho do Homem (Lc 17,22-37). O julgamento e a ação de Deus se
qualificam por um reviravolta total da situação do homem que está diante dele (cf.
Lc 1,51-53).
A nossa vida de cada dia, com certeza,
facilmente nos desgasta, se não pomos amor em todos os nossos atos, mesmo nos
mais simples e humildes. O egoísmo nos fecha os olhos e só os abrimos para ver
o que nos interessa. A vaidade nos faz perder tempo em coisas fúteis e sem
valor. O exagerado cuidado das coisas terrenas pode levar-nos a esquecer os
valores espirituais. O farisaísmo, infelizmente, continua vivo. Ele é uma
atitude religiosa que nos impede ver-nos como somos e que deturpa nossa relação
com Deus e com os irmãos. Uma falsa humildade é a forma mais refinada de
orgulho.
O publicano não deve ser considerado como um
modelo de vida virtuosa. Ele é somente a imagem da única atitude certa que o
homem deve assumir diante de Deus. É o pobre que sabe poder oferecer a Deus só
o seu coração. O homem, na verdade, não possui nada que o torne digno da
complacência divina. O universo todo é de Deus. Ele que o criou. Tudo é
presente de Deus. E sabemos que cada vez que viemos para a igreja para falar
com Deus, na verdade, viemos para escutá-Lo porque só Ele tem palavra da vida
eterna. E cada vez que viemos para oferecer algo a Deus, na verdade, viemos
para receber a Sua bênção para que possamos sair daqui firmes e esperançosos.
Sempre que nós rezamos de verdade, a nossa oração
é eficaz não porque modificamos Deus, mas porque nos modificamos, assim saímos
diferentes do que entramos. O mais difícil da oração não é tanto saber se Deus
nos escuta, mas conseguir que nós O escutemos. Não peçamos a Deus que governe a
nossa vida e o mundo através de milagres; peçamos-Lhe o milagre de amar e nós
veremos que nosso amor transforma as pessoas e o mundo. Por isso, se a nossa
oração nos afasta dos homens, isto significa que não nos encontramos ainda com
Deus dos homens mas com a nossa fantasia. Rezemos diante de Deus como uma
criança, mas logo voltemos à nossa vida com nossa responsabilidade de adultos.
Por tudo isto, pedimos a Deus que tenhamos um
coração de uma criança diante Dele para sermos capazes de nos abandonarmos totalmente
nas mãos de Deus porque o resto Ele é que vai tomar conta; um coração de irmão
diante do nosso próximo, porque cada um é irmão de muitos pelo simples fato de
chamar Deus de “Pai Nosso” e um coração de juiz para nós mesmos para sabermos
distinguir o que é certo e o que é errado, o que pode ser mudado e o que não
pode e sabedoria para distinguir os dois.
P.
Vitus Gustama,svd
Nenhum comentário:
Postar um comentário