Domingo, 02/10/2016
A
FÉ PROFUNDA NOS TORNA SERVIDORES DO SENHOR E DOS DEMAIS
XXVII DOMINGO DO
TEMPO COMUM
Evangelho: Lc 17,5-10
Naquele
tempo: 5 Os apóstolos disseram ao Senhor: 'Aumenta a nossa fé!' 6 O Senhor
respondeu: 'Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda,
poderíeis dizer a esta amoreira: `Arranca-te daqui e planta-te no mar', e ela
vos obedeceria. 7 Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra ou
cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: 'Vem
depressa para a mesa?' 8 Pelo contrário, não vai dizer ao empregado:
'Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois
disso tu poderás comer e beber?' 9 Será que vai agradecer ao empregado, porque
fez o que lhe havia mandado? 10 Assim também vós: quando tiverdes feito tudo o
que vos mandaram, dizei: 'Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer'.'
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Continuamos a acompanhar Jesus que saiu da
Galileia para caminhar rumo a Jerusalém na sua última caminhada, pois ele será
crucificado, morto, mas ressuscitado. Em função disso, Ele dá suas últimas
lições para seus discípulos neste caminho. Por isso, esse conjunto é chamado
“Lições do Caminho” (Lc 9,51-19,28).
O texto lido neste dia faz parte da seção Lc
17,1-10. Nesta seção, Lucas reúne várias palavras de Jesus, dirigidas a seus
discípulos, que têm uma forte vinculação com a vida comunitária. Em primeiro
lugar (vv.1-2) pede-se de nós que não
sejamos ocasião de tropeço por nossos atos negativos para os pequeninos.
Estes são os pobres, os humildes, os que não têm recursos materiais ou
espirituais para opor-se aos que provocam o tropeço. Precisamente estes são os
eleitos de Deus. São para eles que o Reino de Deus se prepara (Lc 6,20s). E a
vontade de Deus é que nenhum deles se perca (Mt 18,14). Depois fala-se da correção fraterna (vv.3-4) para que o
irmão, que peca, tome consciência de sua falta e se arrependa (Lv 19,17) e
solicita-se de nós o perdão como atitude permanente, imitando o comportamento
de Deus (Lc 15,11-32). Desta maneira vivemos o mandamento do amor que perdoa
inclusive aos inimigos, seguindo a misericórdia do Pai (Lc 6,36). A comunidade
cristão aparece, assim, como uma comunidade de pecadores que experimenta a
proximidade e acolhida de Deus no perdão fraterno.
O texto do evangelho deste domingo é a sequência
das sentenças de Jesus acima mencionadas. O texto pode ser dividido em duas
partes: vv.5-6 falam do pedido dos discípulos que Jesus aumente a fé deles; vv.7-10
falam de serviço despretensioso/ser servo inútil.
Pedido de aumento
de fé (vv.5-6)
O Evangelho começa com um pedido dos
apóstolos ao Senhor que lhes aumente a fé. Os apóstolos percebem que estão
vacilando, sentem-se tentados a rever as próprias escolhas, a voltar atrás,
como tinham feito muitos discípulos (cf. Jo 6,60). Eles reconhecem que somente
a força da fé os permitirá aceitar, com todas as suas consequências, as
exigências do perdão. Eis então que surge espontaneamente nos seus lábios o
pedido de socorro: “Aumenta a nossa fé!” Os apóstolos têm certeza que só com a
confiança ilimitada em Jesus é que eles podem realizar coisas impossíveis aos
olhos humanos. Por isso, eles querem ter o poder de Jesus Cristo.
Os discípulos querem ter mais fé. A resposta
de Jesus tira deles o conceito de maior ou menor em termos de fé para o de uma
fé genuína. Ao pedir que se aumente a fé, não se busca seu acréscimo
quantitativo e sim uma mudança radical para fazê-la mais genuína. Basta ter uma mínima fé, mas autêntica (como
o grão de mostarda, Lc 13,19) para realizar grandes coisas. Se houver fé real,
então, os efeitos se segurarão. Não é tanto uma grande fé em Deus que é
exigida, quanto a fé num Deus grande. A imagem da amoreira arrancada e
transplantada no mar expressa plasticamente a força da confiança plena em Deus.
Isto quer dizer que a fé genuína pode realizar aquilo que a experiência, a
razão e a probabilidade negariam, se for exercida dentro da vontade de Deus.
Se a fé pode fazer as coisas impossíveis,
isto quer nos dizer que a fé é uma participação na vida de Deus e uma
experiência da vida divina em nós, que permite vermo-nos a nós próprios e à
realidade que nos rodeia como se o fizéssemos com os olhos de Deus. Semelhante
participação na vida divina, por meio da fé, transforma-nos em homens novos,
permite-nos entender a realidade de uma maneira renovada, proporcionando-nos
uma nova visão, tanto de Deus como da realidade terrena que nos cerca e a nossa
própria vida e a vida dos outros. É a fé que nos torna capazes de
ultrapassarmos as aparências, de distinguirmos a causa prima das causas
segundas e de vermos que aquilo que se passa ao nosso redor não é fruto do
poder dos homens. A fé nos permite descobrirmos os sinais de Deus na criação,
oferece-nos a possibilidade de acolhermos os acontecimentos como expressão da
vontade de Deus e de os vermos como uma passagem de Deus na nossa vida. A fé
muda a nossa mentalidade, impele-nos a pormos sempre Deus em primeiro lugar,
leva-nos a orientar para Ele toda a nossa vida e a interpretar o mundo e nossa
vida à luz divina. A fé nos dá a força cheia de confiança de uma filiação
divina. Quando a força humana terminar, a fé vai a continuar, pois a fé
transforma os nossos limites em forças, pois a fé é a participação na vida
divina.
A partir daí todos os nossos juízos,
apreciações, desejos e expectativas serão iluminados por essa luz, e desse modo
se concretiza aquela comunhão de fé que só há de alcançar a sua plenitude no
amor. “A fé não respeita a ordem natural, não se funda na experiência dos
sentidos, não se estriba na força da razão humana, senão na virtude e
autoridade divina, certíssima de que a suma e eterna verdade, que é Deus, nunca
pode enganar-se nem enganar” (S. Pedro Canísio). Baseando-se na fidelidade de
Deus para conosco, temos coragem de nos entregar cegamente nas mãos de Deus.
Deus é fiel consigo mesmo e é fiel para comigo, por isso, creio nele.
Se a nossa fé for forte, o mundo criado à
nossa volta se tornará como que a expressão de uma voz que nos fala. Se a nossa
fé for fraca, essa voz produzirá em nós a dispersão, afasta-nos de Deus e nos leva
a nos centramos em nós próprios.
A fé nos torna capazes de ultrapassar as
aparências e nos permite descobrir os sinais de Deus na nossa vida. Consequentemente
faz nascer em nós a paz interior, essa paz que provém da firme certeza de que
Aquele que é Poder e Amor infinitos tudo há de conduzir ao fim na sua infinita
sabedoria e no seu infinito amor. Esta fé nos dá a convicção de que estamos
constantemente envolvidos pelo amor de Deus.
À luz da fé também podemos descobrir a nossa
fraqueza e assim esperar tudo de Deus. O poder de Deus será capaz de agir em
nós, quando na fé, reconhecermos a nossa fraqueza, tornando-nos, assim, pobres
em espírito. O homem pobre no espírito é aquele que vive despojado de toda a
segurança, que sabe que as suas forças não lhe bastam.
Segundo S. Tomás de Aquino (cf. Exposição
Sobre o Credo), a fé produz quatro bens. O
primeiro bem é a união da alma com Deus. Como se fosse uma espécie de
matrimônio entre a alma e Deus, como diz o profeta Oséias: “Desposar-te-ei na
fé” (Os 2,20). O segundo bem: a fé
faz iniciar em nós a vida eterna. E a vida eterna consiste em conhecer Deus (Jo
17,3). O terceiro bem: a fé orienta
a vida presente para que o homem possa viver bem segundo os princípios do bem
viver. A fé ensina todos os princípios do bem viver.” O justo vive da(pela) fé”
(Hb 2,4). O quarto bem: pela fé
vencem-se as tentações. Pela fé é que conhecemos um só Deus e que somente a ele
devemos obedecer. “Por essas razões fica provado que é muito útil ter fé”,
concluiu S. Tomás de Aquino.
Em todos os domingos e em outras ocasiões
sempre professamos: “Creio em Deus...”. “A fé não é uma simples formulação
doutrinal, dogmática. Não se restringe nem se entende prioritariamente como
adesão às verdades reveladas. Ela é a práxis do cristão no conjunto de toda a
sua vida. Envolve espiritualidade, liturgia, prática pastoral, luta pela
justiça, compromissos sociais, vida moral” (João Batista Libânio em Eu Creio,
Nós Cremos). Será que vivemos realmente o que professamos? Será que creio de
verdade que Deus é o Pai todo poderoso e Criador do céu e da terra? Você já
parou para pensar nisto?
Serviço
despretensioso/ser servo inútil (vv.7-10)
A segunda parte do texto começa com a
parábola do agricultor que explora sem remorso seu servo. Pode-se entender esta
parábola a partir do seu contexto. No
costume da antiguidade não existia contrato de trabalho que determinasse os
limites de horário de trabalho ou reconhecesse horas-extra de trabalho. O servo
era propriedade do seu senhor, sem direitos à recompensa e ao reconhecimento.
Se lêssemos literalmente esta parábola, ela traria um choque para nós ou se
justificaria todo tipo de escravidão existente ainda na sociedade. Mas as
parábolas de Jesus se servem das experiências reais para falar de outra coisa.
É claro que Jesus não aprova a conduta daquele senhor que é abusiva e
arbitrária, mas serve-se de uma realidade do seu tempo para ilustrar qual deve
ser a atitude da criatura (ser humano) em relação ao Criador (Deus). Tudo de
bom procede do Senhor. E temos que ler esta parábola na sequência do texto.
Logo depois de dizer que a fé nos faz
realizar grandes obras, Jesus indica que, nem por isso, temos que ficar nos
exibindo, vaidosos com o que pudermos realizar. Se fazemos algo, em primeiro
lugar, é porque a graça de Deus nos acompanha. Servo inútil, no Evangelho de
hoje, é aquele que une com simplicidade fé e serviço sem esperar outra
recompensa que não seja a alegria de estar trabalhando por uma boa causa. Com
isso, quer-se afirmar firmemente que a fé é antes de tudo um dom. Nossa
capacidade de viver a fé, de cumprir o “que lhe havia mandado” (v.10) é também
graça. Por isso, Santo Ambrósio comenta: “Não
te julgues mais por seres chamado filho de Deus, deves, sim, reconhecer a
graça, mas não deves esquecer a tua natureza, nem te envaideças por teres
servido fielmente, já que esse era o teu dever. O sol cumpre a sua tarefa, a
lua obedece, os anjos também servem”. Se Deus não nos ajudar, seremos
incapazes de levar a cabo o que Ele nos encomendou. A graça divina é a única
coisa que pode potenciar os nossos talentos humanos para trabalharmos por
Cristo. Sem a graça santificante, para nada serviríamos. Santo Agostinho
compara a necessidade do auxílio divino à da luz para podermos ver. É o olho
que vê, mas não poderia fazê-lo se não houvesse luz. Deus faz o máximo. Nós
fazemos apenas o mínimo.
Lucas também quer sublinhar o tema da
gratuidade da fé. Quer-se afirmar firmemente que a fé é antes de tudo um dom.
Nossa capacidade de viver a fé, de cumprir o “que lhe havia mandado é também
graça. Deus nos dá o tempo suficiente para viver nossa fé. Por isso, a
afirmação de “inutilidade”, de que somos pobres servidores, é perfeitamente
coerente com uma fé profundamente comprometida. A vida de fé é sempre um dom
que acolhemos na medida em que amamos Deus e os demais.
Em consequência, paradoxalmente, os servos
verdadeiramente úteis são os que se reconhecem “inúteis”. Somente os que vivem
e reconhecem esse dom podem ser portadores da gratuidade do amor de Deus aos
demais.
A alegria de um cristão consiste em
entregar-se sem reservas, à missão recebida, sem nada exigir. Basta-lhe a
consciência do dever cumprido. A partir desta humildade na fé, tudo quanto
façamos, por mais duro e esgotante que seja, resta-nos somente dizer: “Fiz tudo
o que devia fazer”. Tudo mais está entregue à benevolência de Deus.
Todos na comunidade, na verdade, somos pobres
e simples servos de Deus. São Paulo diz: “Evangelizar não é glória para mim,
senão necessidade. Ai de mim se não evangelizar. Eu que, sendo totalmente
livre, fiz-me escravo de todos para ganhar a todos...” (1Cor 9,16.19). Este texto é convite para vestirmos a
humildade pois na verdade, pois fazemos muito pouco para Deus no próximo em
comparação às bênçãos de Deus que recebemos diariamente.
Com esta parábola, Jesus também quer dizer
aos discípulos que o serviço prestado deve ser desinteressado e gratuito. Assim
está sendo desmantelada toda pretensão humana que tenta de alguma maneira
servir-se de Deus ou condicioná-lo através de uma relação religiosa de tipo
contratual ou contabilizável, segundo o modelo farisaico. E esta crítica à
religiosidade mercantil e pretensiosa é tanto mais urgente quanto mais na
comunidade a função ou o serviço goza de certo prestígio ou de
responsabilidade. Não é por acaso que a parábola do servo sem pretensões é
dirigida aos discípulos. Todos na comunidade são pobres e simples servos (cf. 1
Cor 9,16.19-23).
Outro cerne dessa parte diz respeito à
atitude da pessoa. A atitude arrogante vê Deus muito feliz pelo fato da pessoa
realizar o bom serviço. No entanto, a atitude adequada é a de agradecimento por
termos privilégio e a oportunidade de servir a Deus. Seja qual for a recompensa
que obtivermos por servir a Deus, na verdade, não a merecemos, mas a ganhamos
porque Deus é gracioso. Nenhum cristão pode gabar-se diante de Deus (Rm 3,27).
Os servos fiéis entendem isso, pelo que prosseguem em seu trabalho para Deus,
motivados pelo amor a Deus e não por um senso de importância própria ou cobiça
pela recompensa. Deus nos criou e tudo de bom vem dele. Não podemos, por isso, nos vangloriar de
nenhum bem que tenhamos recebido de Deus (cf. Ef 2,8). Todos os nossos méritos
provém de Deus. Evita-se assim qualquer autojustificação farisaica. O que temos
que fazer diante de tudo isto é agradecer a Deus. Temos que procurar sempre as
razões para agradecer a Deus e não os motivos para reclamar que Deus nos
esqueceu.
Para chegar até este ponto, para a fé ser
viva e atuante, precisamos alimentá-la de diversas formas, todos os dias,
sobretudo com a oração, com a reflexão, com a leitura da Palavra de Deus, com a
participação na vida da Igreja e com o serviço ao próximo. Sem alimentarmos a
nossa fé com tudo isso, ficaremos frágeis e nos tornamos inconstantes.
P. Vitus Gustama,SVD
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