Domingo, 06/11/2016
SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS
Evangelho: Mt 5,1-12a
Naquele
tempo: 1 Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos
aproximaram-se, 2 e Jesus começou a ensiná-los: 3 'Bem-aventurados os pobres em
espírito, porque deles é o Reino dos Céus. 4 Bem-aventurados os aflitos, porque
serão consolados. 5 Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra. 6 Bem-aventurados
os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. 7 Bem-aventurados os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. 8 Bem-aventurados os puros de
coração, porque verão a Deus. 9 Bem-aventurados os que promovem a paz, porque
serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os que são perseguidos por
causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. 11 Bem-aventurados sois vós,
quando vos injuriarem e perseguirem, e mentindo, disserem todo tipo de mal
contra vós, por causa de mim. 12ª Alegrai-vos e exultai, porque será grande a
vossa recompensa nos céus.
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I. Ser santo
O termo “santo” é uma tradução da palavra
hebraica “qadosh” /” qodesh” que basicamente significa
“cortar”, “separar” aponta para uma ideia de separação do profano. No Novo
Testamento é representado pela palavra grega “hagios”. Emprega-se para designar as pessoas ou coisas ou lugares
destinados ao uso sagrado, bem como os dias reservados ao serviço religioso (Ex
20,8;30,31; Lv 21,7; Nm 5,17; Ne 8,9;Zc 14,21), tudo que a lei cerimonial manda
separar (Ex 22,31;Lv 20,26), a purificação de carne e do espírito (2Cor 7,1;1Ts
4,7), inclusive a separação dos falsos deuses e práticas pagãs (Lv
20,6-7;21,6). O santo e as coisas santas são os que não se tocam ou dos quais
alguém se aproxima somente dentro de certas condições de “pureza ritual”
(compare com o Ato penitencial da missa). Eles provocam um sentimento misto
(numinoso): tremendo, espantoso e assim distancia, mas ao mesmo tempo é
fascinante, atrai o homem.
Mas a noção bíblica de santidade não só para
na apresentação das reações do homem diante do divino e na definição da
santidade como negação do profano, ela define também a santidade na sua própria
fonte, em Deus, de quem deriva toda santidade. A santidade é qualidade
essencialmente divina. Ela caracteriza a essência da divindade (Am 4,2;Is
40,25;1Sm 2,2s). Nas criaturas a qualidade deriva do divino, por uma espécie de
contato peculiar. Deus é quem nos santifica com o seu amor que é graça,
misericórdia, perdão e fortaleza. Quanto mais a santidade de Deus penetra no
coração de um homem, mais ela o ilumina sobre a sua miséria profunda. Por isso,
Jean Lafrance disse: “Tornar-se
santo é algo ao mesmo tempo simples e complexo. É simples no sentido de que
basta permitir o crescimento da vida trinitária que recebemos no batismo. Mas
ao mesmo tempo é uma obra complicada, porque nós não somos simples (simples
quer dizer sem desdobramento). Nosso coração parece atado, retorcido, e nossos
pecados formaram como uma carapaça de pedra em torno do nosso coração”.
A santidade é uma realidade essencialmente
dinâmica. Deus se manifesta e comunica ao homem sua própria santidade. Deus
chama o homem, mediante a ação do espírito Santo, para que se renove em todas
as dimensões de sua existência e seja reflexo e instrumento de sua vontade
divina para a obra de salvação do mundo.
A partir disso tudo, ser santo não significa
fazer milagres (embora isso possa acontecer), chamar atenção com fatos
extraordinários, ser estranho do resto dos homens ou ser isolado do dia-a-dia
por ter medo de ser contaminado pelo mundo. Ser santo é ser capaz de colocar-se
nas mãos do Deus Santo, contar com ele, sabendo dependente dele, em busca de
configuração com Cristo modelo acabado de todas as virtudes. Por outro lado,
colocar-se a serviço dos semelhantes/próximo desinteressadamente, fazendo-lhes
o bem, como resposta aos benefícios recebidos de Deus. O enraizamento em Deus
desabrocha em forma de misericórdia para com o próximo.
Por isso, a santidade não consiste na
grandeza das obras exteriores ou na riqueza dos dons naturais, mas no pleno
desenvolvimento da graça e das virtudes teologais (fé, esperança, caridade)
recebidas no batismo e das virtudes morais/cardeais (prudência, justiça,
fortaleza, temperança) de modo que o mais humilde cristão, mesmo sem tarefa
específica na Igreja, sem dotes extraordinários, na maior simplicidade do seu
coração, poderá chegar a um alto grau de santidade.
Portanto, a vocação à santidade é universal,
é uma meta a ser atingido por todos os cristãos (cf. Lumen Gentium, 39-40).
Como São Paulo diz: “Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação” (1Ts 4,3; Ef
1,4; cf. também Mt 5,48). Ninguém é excluído deste apelo nem pode dispensar-se
de dar sua resposta. Este ideal é atingível por todos nas situações mais
simples do dia-a-dia. Se o cristão o fizer com a graça de Deus, sempre tem uma
história com final feliz como todos os santos comemorados neste dia.
O culto aos santos é a consequência de nosso
Credo, conhecido como Símbolo Apostólico, onde professamos: “Creio...na
comunhão dos santos...”. Esta pequena frase nos indica e afirma que a nossa
relação com os santos é contínua porque acreditamos na não –interrupção da
comunhão eclesiástica pela morte e no fortalecimento da mútua comunicação dos
bens espirituais (LG no 49; compare com Rm 8,38-39). A Igreja dos peregrinos
sempre teve e continua tendo perfeito conhecimento dessa comunhão reinante em
todo Corpo Místico de Jesus Cristo (LG 50). Podemos dizer e afirmar que no
culto dos santos é o mistério íntimo da Igreja, peregrina e celestial, único
Corpo de Cristo, que se manifesta em toda sua amplitude - de tempo e espaço - e
profundidade, por seu enraizamento em Deus e em Cristo, na unidade do Espírito.
A Igreja venera os santos como exemplos. A Igreja apresentou aos fiéis ao longo
das gerações os santos, exemplos de santidade, atraentes por sua intercessão na
presença do Pai e estimulantes da vocação comum de todos os fiéis à santidade.
O Culto aos santos une-nos a Igreja celestial. Dá-nos testemunho de nosso
destino final.
II. As bem-aventuranças são
o programa proposto por Jesus aos que querem segui-lo com todas as
consequências.
Neste dia em que celebramos a festa de todos
os santos, reconhecidos e anônimos incontáveis, como descreve o livro do
Apocalipse. Além disso, nunca podemos esquecer que há exemplos de santidade e
heroísmo cristão em outras Igrejas, religiões, povos e culturas. Reconhecer
essa presença é uma ajuda para superar os nossos preconceitos e para acolher
com alegria esses parceiros na construção do Reino de Deus ou do mundo mais
fraterno), lemos o evangelho das bem-aventuranças de Mateus. Dentro do contexto
da festa, as bem-aventuranças abrangem os três momentos do tempo: celebramos os
bem-aventurados do passado que testemunhavam sua fé heroicamente; celebramos
também a nossa vocação à felicidade sem fim, à santidade futura: razão de nosso
ser, de nossa vida, de nossa peregrinação e de nossa adoração a Deus, pois
aquele que sabe aonde vai e sabe do caminho também, tem muitas possibilidades
de ser feliz e de usufruir de todas as coisas boas que Deus lhe oferece
diariamente. E por fim, olhando para estas bem-aventuranças, podemos celebrar
no tempo presente a santidade, as bem-aventuranças, como dom ou graça presente
porque elas são proclamação da amizade de Deus para as pessoas que participam
do espírito destas bem-aventuranças. Elas são um prelúdio da felicidade eterna.
As bem-aventuranças são, então, o código da nova aliança que não impõe
preceitos imperativos mas enuncia-se como promessa, convite e proclamação para
aqueles que as praticam.
Mateus inicia o Sermão da Montanha com as
bem-aventuranças (em grego, makariori).
No grego clássico, esta palavra (makariori) significava “felicidade, boa sorte,
bem estar”. Píndaro, Platão e Aristóteles, por exemplo, a usaram regularmente
em saudações, para enviar votos de felicidade e para descrever a pessoa
bem-nascida, educada ou feliz. O uso que Mateus dá à palavra tem esse mesmo
sentido de perfeição, alegria e recompensa em decorrência de se viver da
maneira que as bem-aventuranças encorajam.
As bem-aventuranças começa com dois
versículos introdutórios bem densos teologicamente: “Vendo Jesus as multidões,
subiu à montanha. Ao sentar-se, aproximaram-se dele os seus discípulos. E
pôs-se a falar e os ensinava...”
Jesus vê as multidões. O olhar de Jesus é o
olhar de Deus: penetrante e fascina. O olhar que não fica na superfície, mas
penetra profundamente, atinge o coração e vê o que está no íntimo do homem. Os
olhos de Jesus são os que sabem comunicar para estabelecer um contato. As
multidões que Jesus enxerga diante de si são aquelas que lhe seguiram, aquela
massa heterogênea, vindo de todas as partes de Israel (Mt 4,25). O discurso
vai-se dirigir, portanto, a toda a terra de Israel, aos representantes de todos
os distritos e de todas as tribos. Isto já basta para sublinhar a importância
do discurso que vem em seguida.
Jesus subiu ao monte. A palavra “monte”
simboliza o lugar de Deus e o de sua manifestação (Sinai, Horeb, Tabor etc.), a
esfera divina, o do encontro com Deus. Jesus nos convida a subir ao monte. Nossa
vida deve ser sempre uma subida espiritual até chegar a Deus, à esfera divina.
Quando o cristão estiver no lugar de Deus, ele poderá enxergar melhor sua vida
e as pessoas ao seu redor. Consequentemente, à vaidade ele opõe a humildade, às
blasfêmias a exortação, à arrogância uma educação sem falha e ele transforma
sua crítica em humildes sugestões, sua lucidez em vigilância, sua força em
persuasão e sua caridade em delicadeza.
Jesus sentou-se. “Estar sentado” é a atitude
própria do mestre. Nas sinagogas sentados os rabinos ensinavam na cátedra de
Moisés (Mt 23,2). Esta observação, sentar-se, revela que se trata de uma
instrução importante, de um ensinamento oficial. A expressão também enfatiza a
importância do ensinamento que vai começar imediatamente. Com isso, Jesus
interpreta normativamente a Palavra de Deus. E ele traduz a Palavra de Deus
para aquela multidão, mais acostumada a ouvir do que a ler, como chamas que
iluminam e esquentam, mas que também queimam.
Os discípulos aproximaram-se de Jesus. A
palavra “discípulo” aqui significa
literalmente “aprendizes” ou “estudantes”. “Discípulo” é uma das palavras
preferidas de Mateus e “membros de sua comunidade”. Ao dizer que os discípulos
aproximaram-se de Jesus, Mateus quer nos dizer que não existe mais a distância
que separe o ser humano de Deus. Se no Antigo Testamento só Moisés que subiu ao
monte para encontrar-se com Deus e para receber o decálogo (cf. Ex 19-20),
agora a partir de Jesus, qualquer ser humano tem o acesso a Deus. Mateus justamente
quer nos mostrar, através de seu evangelho, que Deus é Emanuel, Deus conosco (Mt
1,23;18,20;28,20). A aproximação/subida dos discípulos mostra que não há mais
distância entre Deus e o homem. Pela adesão a Jesus, superou a distância que os
separava do Reinado de Deus (Mt 4,17: o Reino dos céus está próximo). Quem
aderir a Jesus também não criará distância dos outros, pois os outros são
passagem obrigatória para chegar até Deus.
Jesus pôs-se
a falar e os ensinava. Ensinar é uma atividade característica de Jesus (Mt
4,23-25;9,35;11,1), que os discípulos só poderão assumir depois de ver Jesus
Ressuscitado (Mt 28,16-20).
Quem são os felizes na proclamação de Jesus?
Basta ler as oito bem-aventuranças!
O feliz é aquele que é pobre no espírito (v.3). O termo “espírito” na concepção semita
conota sempre força e atividade vital. Os pobres em espírito são os “curvados
de espírito” (anawim), os que se submetem interiormente, sem resistência, à
vontade de Deus, os que aceitam humildemente o senhorio de Deus sobre suas
vidas. Esta atitude de humildade diante de Deus, nascida da fé, se traduz em
atitudes e condutas de desapego aos bens materiais, de bondade, de partilha que
é a alma do projeto/plano de Deus, e de solidariedade.
Jesus declara felizes não os que são mansos
por temperamento (v.4), mas os que, apesar de disporem de meios para fazer
valer seus direitos, não são violentos nem agressivos mas pacientes e
indulgentes pois a justiça do Reino não será imposta através da violência que
destrói, nem pelo “extermínio dos filhos das trevas” mas através da força de
Deus e como fruto da confiança inabalável na justiça de Deus em favor dos
injustiçados e humilhados.
Jesus não canoniza a tristeza nem condena a
alegria. Jesus declara felizes os que estão aflitos (v.5) por experimentarem a
ausência da justiça de Deus mas continuam esperando em Deus pois só Ele pode
converter a tristeza em alegria e o pranto em canto. Todos os que se afligem
diante das manifestações do anti-Reino serão consolados com a certeza do amor
de Deus, mesmo no meio das maiores aflições. E com a certeza de que os frutos
do que agora semeiam com lágrimas, a bondade, a justiça, a lealdade, serão
colhidos com cânticos.
Para Jesus são felizes aqueles que praticam a
justiça e não iniquidade (v.6). A “justiça nova” proclamada por Jesus é o tema
central do Sermão da Montanha. Esta palavra aparece cinco vezes no Sermão da
Montanha, de um total de sete vezes em todo o evangelho (3,15; 5,6.10.20; 6,1.33;21,32).
A justiça aqui significa viver em conformidade com a vontade de Deus,
submeter-se a Ele sem restrições. É a prática dessa justiça, a conduta em
conformidade com a vontade de Deus, que dá acesso ao Reino de Deus.
Os felizes não são os que, por índole
natural, têm um coração sensível e sentimentos de compaixão (v.7), mas os que
fazem gestos concretos de misericórdia, ajudando e servindo os necessitados. O
justo é aquele que é misericordioso e doa (Sl 37,21). Não se reduz a um puro
sentimento afetivo; exige um movimento efetivo em direção ao necessitado. Exige
emoção no sentido mover-se em direção ao outro e com o outro. Ao sentir-se
“comovidos” pelo sofrimento dos outros, os misericordiosos entram em ação para
aliviar e, se possível, curar o sofrimento atacando suas causas. O amor
misericordioso constitui o centro do mistério de Deus revelado em Jesus Cristo.
Tudo que Jesus faz, nasce de suas entranhas de misericórdia. A misericórdia
pertence ao núcleo da pregação de Jesus em Mateus (5,17-20;9,13;12,7;25,31-46;
cf. também 18,23-35;6,14s).
Os que olham o mundo, as pessoas com os olhos
de Deus são declarados felizes(v.8), pois tudo isso é a expressão da pureza do
coração, um coração limpo, simples e sincero. É declarado feliz quem se põe a
serviço de Deus e dos homens sem cálculos interesseiros e sem falsa piedade; o
feliz é quem é transparente no pensar e no agir.
Os felizes não são os que têm temperamento
tranquilo, que desfrutam da paz interior do coração e que não perturbam os
outros, mas os que fazem, constroem, promovem a paz no dia-a-dia (v.9), tecendo
laços novos de solidariedade, de verdade e de justiça (cf. Sl 34,14s). A
paz(shalom) é síntese de todos os bens messiânicos, como dom aos homens que
Deus ama (Lc 2,14). Aos construtores da paz é feita a promessa solene de que no
juízo final lhes será dado o maior de todos os títulos: “Serão chamados filhos
de Deus”.
E na última bem-aventurança(vv.10-12) se
sublinha uma verdade: se não sofremos nenhuma forma de perseguição, de injúrias
e calúnias por causa do Evangelho é sinal de que não optamos verdadeiramente
por Jesus e seu Reino, pois o Evangelho que não incomoda mais não é mais o
evangelho. Quem, ao anunciar o Evangelho, for aplaudido por todos e sobretudo pelos
donos de poder, pode estar certo de que ele ainda não é o profeta verdadeiro,
pois ele deixou de ser o sal da terra para converter-se em adoçante. Tirar do
evangelho de Jesus o que possa ferir os que podem matar porque têm em suas mãos
os poderes mortíferos da terra significa trair o evangelho e parar de ser
cristão. O teste para verificar a fidelidade a Jesus de cada cristão, de cada
comunidade cristã, e da Igreja como um todo, é ser ou não ser perseguido pelas
forças do anti-Reino porque as razões da perseguição só podem ser mentirosas e
as testemunhas só podem ser falsas. No caso de perseguição (como também na
primeira bem-aventurança), a promessa é formulada no presente: “Deles é o Reino
dos céus”. O reino lhes pertence desde agora.
Portanto, que cada um de nós que se chama
cristão, se pergunte: o que falta ainda em mim destas bem-aventuranças? Quais
delas tenho vivido? E por que ainda não tenho vivido algumas dessas
bem-aventuranças?
P.
Vitus Gustama,svd
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