SER VINHO NOVO PARA A CONVIVÊNCIA COMO JESUS
07 de Janeiro
Texto de Leitura: Jo 2,1-11(Bodas de Caná)
Naquele tempo, 1houve um casamento em Caná da Galileia. A mãe de Jesus estava presente. 2Também Jesus e seus discípulos tinham sido convidados para o casamento. 3Como o vinho veio a faltar, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”. 4Jesus respondeu-lhe: “Mulher, por que dizes isto a mim? Minha hora ainda não chegou”. 5Sua mãe disse aos que estavam servindo: “Fazei o que ele vos disser”. 6Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer. Em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros. 7Jesus disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de água”. Encheram-nas até a boca. 8Jesus disse: “Agora tirai e levai ao mestre-sala”. E eles levaram. 9O mestre-sala experimentou a água, que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois eram eles que tinham tirado a água. 10O mestre-sala chamou então o noivo e lhe disse: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho bom até agora!” 11Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele.
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A transformação da água em vinho é o primeiro sinal operado por Jesus no evangelho de João. O evangelista João jamais emprega a palavra “milagre” (dýnamis, grego, como ato de poder e de força) que aparece com muita freqüência nos sinóticos. Em vez disso, ele usa o termo “sinal” (seméion, grego). Este termo pertence ao vocabulário técnico do quarto evangelho, onde aparece 17 vezes, sobretudo na primeira metade. Em João, “sinal” é ação/obra realizada por Jesus que, sendo visível, leva por si ao conhecimento de realidade superior. O “sinal” remete a outra coisa. Os “sinais joaninos”, porém, não somente apontam para uma realidade que está além da coisa ou acontecimento visível, mas contém já em si mesmos a realidade significada. Eles são, de certo modo, uma manifestação da “glória” de Jesus. Enquanto o milagre, pelo poder surpreendente que ele força a constatar, tem por função orientar em direção à pessoa e à dignidade do seu autor. O “sinal” visa a outra realidade além de si mesmo. Este termo joanino inclui sempre dois aspectos: demonstrativo, o sinal suscita a fé dos discípulos em Jesus; expressivo, ele manifesta a glória daquele que o opera. Encontram-se no Evangelho de João sete sinais de Jesus (2,1-11: bodas de Caná; 4,46-54: a cura do filho do funcionário real; 5,1-9: a cura do paralítico; 6,1-15: a partilha dos pães; 6,16-21: Jesus caminha sobre as águas; 9,1-41: a cura do cego de nascença; 11,1-44: a reanimação de Lázaro). Por isso, a primeira parte do Evangelho de João (1,19-12,50) chama-se o livro dos sinais. Enquanto a segunda parte (13,1-20,29) chama-se o Grande Sinal que fala da paixão, morte e ressurreição de Jesus.
O objetivo principal de todos os sinais relatados no Quarto Evangelho é a fé, como João deixa claro no final: os sinais feitos por Jesus foram escritos “para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida eterna em seu nome” (Jo 20,31). Isto quer nos dizer que diante dos sinais operados por Jesus é necessário tomar uma decisão (Jo 7,31;9,16;11,47). Sem tomar uma decisão positiva (crer em Jesus), os sinais se tornarão juízo de acusação contra os que se mostram incrédulos (cf. Jo 12,37ss).
O episódio de Caná, isto é, o primeiro sinal de Jesus, acontece num casamento/bodas. Na linguagem bíblica/teológico-simbólica, o casamento/bodas é símbolo da aliança com Deus, sublinhando a relação de amor e fidelidade entre Deus e o povo (Is 49,14-26;54,48;62,4-5;Jr 2;Ez 16). A eleição do povo e a aliança foram expressão do amor de Deus por ele (Dt 4,37;7,7s;10,15). Os profetas usaram muitas vezes a imagem de casamento para falar do amor mútuo entre Deus e Israel (Is 62,4-5;Os 2,18-22). Portanto, o casamento em Caná é simbólico. O verdadeiro esposo da humanidade é Jesus (3,29), pois foi assim que João Batista o anunciou (cf. 1,15.27.30). E toda a Igreja é uma esposa.

Nas núpcias de Caná “estava ali a mãe de Jesus”. Para o evangelista João, a figura da mãe de Jesus também é central, pois a partir dela é que a atenção se projetará sobre Jesus. A manifestação da glória de Cristo passa através da mãe.
Na festa de casamento em Caná, ou seja, na antiga aliança faltou vinho. O vinho, na Bíblia, simboliza/representa o amor (cf. Ct 1,2;7,10;8,2). A antiga aliança, portanto, não tem mais sentido, pois o amor foi substituído pela Lei. Os seis enormes potes de pedra que serviam para os ritos de purificação dos judeus (v.6), representam a falta de amor na relação com Deus e com o próximo. Além disso, estão vazios, ou seja, não têm mais nada a dar.
A mãe de Jesus reconhece isso, pois em vez de se dirigir ao organizador da festa, vai diretamente a Jesus e lhe diz: “Eles não têm mais vinho” (v.3). A expressão é semelhante à usada pelos apóstolos antes do milagre da multiplicação dos pães: “Eles não têm mais nada para comer” (cf. Mc 8,2;Mt 15,32). Maria vê o conjunto, ou seja ela tem a visão do conjunto e compreende aquilo que é essencial. Este é o espírito contemplativo de Maria, o seu dom de síntese, a capacidade de dar atenção às coisas particulares. Maria consegue ver o ponto central com a inteligência do coração e não através do raciocínio ou da análise imediata de todos os elementos. Quando o coração superar as razões, a caridade começará a agir, pois a caridade sempre parte do coração. Quando negarmos o que o coração pedir, começaremos a criar muitas desculpas, mas depois cairemos num remorso, pois razão nenhuma pode negar o que o coração pede. “Eis o meu segredo, disse a raposa ao Pequeno Príncipe. É muito simples: Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos” (Antoine De Saint-Exupéry, em: O Pequeno Príncipe). Maria percebe o gemido mudo da humanidade e simplesmente o exprime: “Eles não têm mais vinho”. Maria se identifica com as pessoas numa situação sufocante, e por isso pede com naturalidade uma solução para o seu Filho, Jesus Cristo, o Salvador da humanidade.
A partir de Maria precisamos descobrir o que falta na nossa vida, na nossa vida religiosa, na nossa convivência, na nossa comunidade, no casamento, na família com o intuito de sofrer e amar juntos e não para acusar ou recriminar ninguém. O que falta em mim? Talvez sejam pequenas ou grandes coisas que me faltam; talvez faltem perdão e renúncia ou tensões a cobrir ou pequenas palavras a frear. Ou de modo geral, talvez falte muita coisa para que eu possa ser “o bom vinho” para mim, para os outros, e para Deus.
A resposta de Jesus é aparentemente negativa; e aparentemente, formal e mesmo dura: “Que temos nós com isso, mulher? A minha hora ainda não chegou” (v.4). A expressão é um semitismo freqüente no Antigo Testamento e que aparece também algumas vezes no Novo Testamento (cf. Mt 8,29;Mc 1,24;5,7;Lc 4,34;8,28). A expressão em si não supõe rejeição frontal, nem sequer distanciamento ou falta de afeto. A resposta de Jesus serve como um convite feito diretamente ao leitor para compreender o que vai acontecer num horizonte mais amplo.
O termo “mulher” usado por Jesus para sua mãe não é uma expressão de desrespeito ou de distância na relação mãe- filho, mas para acentuar o respeito e a reverência. Como entre nós a palavra “senhora” é usada para dirigir-se à própria mãe. Jesus usará o apelativo “mulher” com freqüência ao dirigir-se às mulheres em contextos de elogio (cf. Mt 15,28;Lc 13,12; Jo 4,21;8,10;20,13.15).
Quando Jesus diz que a hora dele ainda não chegou, não está olhando para o relógio. A “hora” (este termo ocorre 26 vezes em Jo) no Evangelho de João tem um sentido simbólico. Quer dizer o momento em que Jesus vai mostrar quem ele é e comunicar o amor do Pai. Isso só vai acontecer de maneira completa na sua paixão, morte e ressurreição. Ainda não chegou “a minha hora” quer dizer ainda não chegou o momento da realização do grande sinal através do qual Jesus revelará sua glória isto é a paixão, morte e ressurreição de Jesus onde ele entregará sua vida à morte para a vida do mundo e por isso, será glorificado pelo Pai. Toda a missão de Jesus está orientada e realizada em função dessa “hora”. Sua hora não pode ser marcada pelos homens, nem por sua mãe.

O que o quarto evangelho quer sublinhar não é, porém, o poder de intercessão de Maria. Mesmo as palavras finais de Maria: “Fazei tudo o que ele vos disser”, sublinham a soberania de Jesus e não a impetração de Maria. A mãe deixa tudo nas mãos do Filho, ainda que não o chame de Filho: “Fazei tudo o que ele vos disser”. Não se pode, contudo, negar que foi o pedido de Maria o que iniciou o processo que desembocou na decisão de Jesus de realizar o primeiro sinal.
Segundo João, Maria não só realiza a vontade de Deus na sua vida, mas também orienta os outros a fazerem o que Deus lhe pede. A perfeita discípula e seguidora de Jesus se torna mestra e guia dos cristãos. Sua frase continua atual. Ela continua nos dizendo hoje: “Vale a pena buscar a vontade de Jesus, ouvir suas palavras e tomar atitudes concretas”. Maria estimula os seguidores de Jesus a realizarem a vontade de Jesus. Ela ajuda os seguidores a terem fé em Jesus e ficarem junto dele. Sobre tantos cristãos consagrados no sacramento do matrimônio, sobre tantos religiosos que já perderam o ardor da primeira vocação, sobre tantos sacerdotes que já esqueceram o santo estremecer do dia do chamado por Cristo, Maria tem que interceder: “Eles não têm mais vinho” para que jamais chegue a terminar o vinho do divino encanto. Além disso, Maria nos ensina a orar pelos nossos irmãos, assim como ela fez primeiro. Maria é uma mulher que, num rápido golpe de vista, vê o que falta e se preocupa com dar-lhe remédio. Ela simplesmente verifica o que falta, e pede com naturalidade a Jesus: “Eles não têm mais vinho”.
Maria também nos convida a viver uma virtude que se chama “atenção”. A atenção é um comportamento vigilante do eu sobre os outros; é uma transparência de olhar, uma prontidão em notar sinais de sofrimento em volta de si, um doar-se. Ela é amor verdadeiro, delicado, desinteressado e previdente. Ela é uma qualidade humana necessária e preliminar no caminho espiritual.
Jesus faz o primeiro sinal de forma discreta. Tudo na simplicidade. Ele manda encher os potes de água. O primeiro sinal de Jesus pretende começar a revelar quem é Jesus para nós. A partir do sinal, entendemos que o próprio Jesus é o vinho novo da nossa vida. Ele é capaz de transformar as situações em que tudo parece “água”, sem sabor nem cor, no líquido da festa e da alegria. A partir de Jesus começou o tempo da graça. Quem está com Jesus tem vida sobrando. A abundância de vinho (em torno de 600 litros) revela o amor extraordinário de Deus presente na vida e na ação de Jesus.
O resultado da ação de Jesus conforme o texto: “Jesus manifestou sua glória e seus discípulos creram nele” (v.11). A glória para Jesus não é o poder e a fama, mas a capacidade de realizar o bem e fazer Deus conhecido e amado. Essa glória consiste na revelação de Deus através dos “sinais” que ele opera. A glória de Deus agora se torna visível para sempre em Jesus.
“E os discípulos creram nele”. Aqui chega ao seu clímax o chamamento dos discípulos. O crer em Jesus do v.11 é a culminação do seguimento iniciado em 1,37. Quem crê, vê além do sinal. O sinal não força ninguém a acreditar, só abre a porta do coração para a fé. Para João, crer em Jesus como o Cristo é crer no amor superabundante de Deus que enche de alegria o coração dos homens e lhes dá a plenitude da vida. Crer em Jesus é crer que ele realiza a união de Deus com seu povo através de sua vida, morte e ressurreição. Crer em Jesus é crer que Deus se revela e atua amorosamente em favor dos homens através da humanidade de Jesus. Na fé dos primeiros discípulos de Jesus, começa a fé da Igreja. Essa mesma fé é solicitada de todos ao situar-nos diante de Jesus, o portador da salvação definitiva oferecida por Deus ao mundo.
Revivendo hoje o momento em que o Filho de Deus transforma a água em vinho para os convivas de Caná, deveríamos ter a capacidade de perceber que uma das mais exaltantes mensagens do cristianismo é a mensagem de alegria. Deus quer que haja o vinho nupcial da alegria, a alegria de permanecer unidos. Temos que proclamar as razões da alegria, não da tristeza; temos que apontar os motivos do otimismo, não do pessimismo; temos que promover a vida, não a morte. A alegria deveria ser característica de quem vive na fé e caminha para o Reino de Deus. É claro que a fé não nos põe a salvo do sofrimento e dos vários motivos de tristeza. Contudo, é preciso que deixemos transparecer a certeza de que toda nossa dor se transformará em alegria, pois Deus nos ama. É o testemunho que o mundo espera de nós.
P. Vitus Gustama,svd
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