Domingo,22/03/2020
JESUS
É A LUZ QUE JULGA O MUNDO CHEIO DE CEGUEIRA
IV
DOMINGO DA QUARESMA DO ANO “A”
I Leitura: 1Sm 16,1b.6-7.10-13a
Naqueles
dias, o Senhor disse a Samuel: 1bEnche o chifre de óleo e vem para que eu te
envie à casa de Jessé de Belém, pois escolhi um rei para mim entre os seus
filhos. 6Assim que chegou, Samuel viu a Eliab e disse consigo “Certamente é
este o ungido do Senhor!” 7Mas o Senhor disse-lhe: Não olhes para a sua
aparência nem para a sua grande estatura, porque eu o rejeitei. Não julgo
segundo os critérios do homem: o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o
coração”. 10Jessé fez vir seus sete filhos à presença de Samuel, mas Samuel
disse: “O Senhor não escolheu a nenhum deles”. 11E acrescentou: “Estão aqui
todos os teus filhos?” Jessé respondeu: Resta ainda o mais novo que está
apascentando as ovelhas”. E Samuel ordenou a Jessé: “Manda buscá-lo, pois não
nos sentaremos à mesa enquanto ele não chegar”. 12Jessé mandou buscá-lo. Era
Davi, ruivo, de belos olhos e de formosa aparência. E o Senhor disse:
“Levanta-te, unge-o: é este!” 13aSamuel tomou o chifre com óleo e ungiu a Davi
na presença de seus irmãos. E a partir daquele dia o espírito do Senhor se
apoderou de Davi.
II Leitura: Ef 5,8-14
Irmãos:
8 Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz.
9E o fruto da luz chama-se: bondade, justiça, verdade. 10 Discerni o que agrada
ao Senhor. 11Não vos associeis às obras das trevas, que não levam a nada;
antes, desmascarai-as. 12O que essa gente faz em segredo, tem vergonha até de
dizê-lo. 13Mas tudo que é condenável torna-se manifesto pela luz; e tudo o que
é manifesto é luz. 14É por isso que se diz: “Desperta, tu que dormes,
levanta-te dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá”.
Evangelho: Jo 9,1-41
Naquele
tempo: 1Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. 2Os discípulos
perguntaram a Jesus: 'Mestre, quem pecou para que nascesse cego: ele ou os seus
pais?' 3Jesus respondeu: 'Nem ele nem seus pais pecaram, mas isso serve para
que as obras de Deus se manifestem nele. 4É necessário que nós realizemos as
obras daquele que me enviou, enquanto é dia. Vem a noite, em que ninguém pode
trabalhar. 5Enquanto estou no mudo, eu sou a luz do mundo.' 6Dito isto, Jesus
cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego. 7E
disse-lhe: 'Vai lavar-te na piscina de Siloé' (que quer dizer: Enviado). O cego
foi, lavou-se e voltou enxergando. 8Os vizinhos e os que costumavam ver o cego
- pois ele era mendigo - diziam: 'Não é aquele que ficava pedindo esmola?' 9Uns
diziam: 'Sim, é ele!' Outros afirmavam: 'Não é ele, mas alguém parecido com
ele.' Ele, porém, dizia: 'Sou eu mesmo!' 10Então lhe perguntaram: 'Como é que
se abriram os teus olhos?' 11Ele respondeu: 'Aquele homem chamado Jesus fez
lama, colocou-a nos meus olhos e disse-me: 'Vai a Siloé e lava-te'. Então fui,
lavei-me e comecei a ver.' 12Perguntaram-lhe: 'Onde está ele?' Respondeu: 'Não
sei.' 13Levaram então aos fariseus o homem que tinha sido cego. 14Ora, era
sábado, o dia em que Jesus tinha feito lama e aberto os olhos do cego.
15Novamente, então, lhe perguntaram os fariseus como tinha recuperado a vista.
Respondeu-lhes: 'Colocou lama sobre meus olhos, fui lavar-me e agora vejo!'
16Disseram, então, alguns dos fariseus: 'Esse homem não vem de Deus, pois não
guarda o sábado.' Mas outros diziam: 'Como pode um pecador fazer tais sinais?'
17E havia divergência entre eles. Perguntaram outra vez ao cego: 'E tu, que
dizes daquele que te abriu os olhos?' Respondeu: 'É um profeta.' 18Então, os
judeus não acreditaram que ele tinha sido cego e que tinha recuperado a vista.
Chamaram os pais dele 19e perguntaram-lhes: 'Este é o vosso filho, que dizeis
ter nascido cego? Como é que ele agora está enxergando?' 20Os seus pais
disseram: 'Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego. 21Como agora está
enxergando, isso não sabemos. E quem lhe abriu os olhos também não sabemos.
Interrogai-o, ele é maior de idade, ele pode falar por si mesmo.' 22Os seus
pais disseram isso, porque tinham medo das autoridades judaicas. De fato, os
judeus já tinham combinado expulsar da comunidade quem declarasse que Jesus era
o Messias. 23Foi por isso que seus pais disseram: 'É maior de idade.
Interrogai-o a ele.' 24Então, os judeus chamaram de novo o homem que tinha sido
cego. Disseram-lhe: 'Dá glória a Deus! Nós sabemos que esse homem é um
pecador.' 25Então ele respondeu: 'Se ele é pecador, não sei. Só sei que eu era
cego e agora vejo.' 26Perguntaram-lhe então: 'Que é que ele te fez? Como te
abriu os olhos?' 27Respondeu ele: 'Eu já vos disse, e não escutastes. Por que
quereis ouvir de novo? Por acaso quereis tornar-vos discípulos dele?' 28Então
insultaram-no, dizendo: 'Tu, sim, és discípulo dele! Nós somos discípulos de
Moisés. 29Nós sabemos que Deus falou a Moisés, mas esse, não sabemos de onde
é.' 30Respondeu-lhes o homem: 'Espantoso! Vós não sabeis de onde ele é? No
entanto, ele abriu-me os olhos! 31Sabemos que Deus não escuta os pecadores, mas
escuta aquele que é piedoso e que faz a sua vontade. 32Jamais se ouviu dizer
que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença. 33Se este homem não
viesse de Deus, não poderia fazer nada'. 34Os fariseus disseram-lhe: 'Tu
nasceste todo em pecado e estás nos ensinando?' E expulsaram-no da comunidade.
35Jesus soube que o tinham expulsado. Encontrando-o, perguntou-lhe: 'Acreditas
no Filho do Homem?' 36Respondeu ele: 'Quem é, Senhor, para que eu creia nele?'
37Jesus disse: 'Tu o estás vendo; é aquele que está falando contigo.' Exclamou
ele: 38'Eu creio, Senhor'! E prostrou-se diante de Jesus. 39Então, Jesus disse:
'Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não veem,
vejam, e os que veem se tornem cegos.' 40Alguns fariseus, que estavam com ele,
ouviram isto e lhe disseram: 'Porventura, também nós somos cegos?'
41Respondeu-lhes Jesus: 'Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis:
'Nós vemos', o vosso pecado permanece.'
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O IV Domingo da Quaresma é notável,
como se sabe, por diversos motivos: é o
Domingo “Laetare”
(“alegria”, e por isso, pode ser usada a cor rosa), segundo o título clássico,
que anuncia a proximidade da Páscoa, passada já a metade da Quaresma; é o Segundo Domingo
de Escrutínios, na caminhada do catecumenato, segunda etapa desta
grande experiência de exame interior e renovador a que todos somos chamados a
realizar, em solidariedade com os candidatos ao Batismo, inclusive se não se
encontram na nossa paróquia ou comunidade, mas que existem certamente na
Igreja, isto é, sobretudo no ciclo A, o Domingo “luminoso”. As leituras e a eucologia (conjunto de orações presidenciais) ambientam a celebração
em um tom pré-pascal.
O texto fundamental deste Domingo é o Evangelho do
cego de nascimento, a leitura
integral. Nesta ocasião, o texto que acompanha diretamente o Evangelho não é
a Primeira leitura e sim a Segunda Leitura (Ef 5,8-14) do Apóstolo Paulo,
com referências claramente batismais. A Primeira Leitura (1Sm 16,1b.6-7.10-13ª) segue neste
domingo o itinerário próprio das Primeiras Leituras dos Domingos da Quaresma:
as etapas da história salvífica. Para o Quarto Domingo da Quaresma corresponde,
cada ano, uma referência ao “reino”, este ano, por isso, lemos a narração da
primeira unção do rei Davi: sua “eleição” por parte de Deus, quando estava
apascentando os rebanhos de seu pai. Esta eleição de Davi pode ter também uma
referência catecumenal, em atenção aos “eleitos” que se preparam para receber o
Batismo. Também o pastoreio de Davi suscita a imagem do verdadeiro pastor de
Israel: o Senhor, Jesus Cristo (que logo depois da narração do cego de nascença
há o discurso sobre o Bom Pastor em Jo 10: evangelho que lemos no IV Domingo da
Páscoa).
Se o diálogo com a Samaritana (Jo 54,5-42: III Domingo da Quaresma “A”)
conduzia a “indagar” ou “perscrutar” as disposições interiores para acolher a
oferta do Dom do Espírito feito por Cristo, a narração do cego de nascimento
conduz a “indagar” ou a “perscrutar” as zonas de nossa vida que se resistem à “iluminação”
batismal e permanecem mais ou menos tenebrosas. As dificuldades que rodeiam o
cego em sua experiência de iluminação são, por outro lado, indicativas de
situações paralelas em nossas vidas: o cristão se encontra facilmente com reações
de admiração, de contradição, de exclusão, de interrogação, inclusive de
desconhecimento (“Não é ele, mas alguém
parecido com ele”). Isto significa que faz falta a convicção da fé para
manter o testemunho, e unicamente deixando-nos iluminar mais e mais pelo Senhor
é que conseguiremos levar uma vida iluminada.
Se a luz em nós é ainda fraca, a Quaresma
é, então, o tempo propício para alimentar nossa vida com a Palavra de Deus, com
a contemplação pessoal sobre a pessoa de Jesus, a exemplo do cego de
nascimento, com os sacramentos da Eucaristia e da Penitência.
Hoje um cego compartilha com Jesus Cristo
o protagonismo da página evangélica. Sempre, mas muito mais na época em que
vivia Jesus, o cego é um homem que, por seu defeito físico, carece de
autonomia; um homem que em determinados momentos necessita dos demais; um
homem, em uma palavra, dependente. A aproximação de Jesus deste homem e a atenção
especial que lhe demonstra tem para o homem cego uma consequência imediata e
positiva: fica curado de sua cegueira e convertido em um homem completo e
libertado. Já não necessitará de outro homem que o guie e já não necessitará
que uma mão misericordiosa ponha em sua mão estendida uma esmola. O cego do
Evangelho se converteu, por obra e graça de Jesus Cristo, em um homem que pode
andar só.
Por meio de duas imagens contrapostas:
trevas-luz, são Paulo insiste aos cristãos para que tomem consciência do que são
e tomem decisão que salve sua vida. Trevas e luz indicariam duas possíveis maneiras
de ser, opostas e excludentes entre si, como a noite e o dia, opondo o que estes
homens eram e o que agora são. A luz que brilha, ilumina faz pensar nas obras
boas: “O fruto da luz chama-se: bondade,
justiça, verdade” (Ef 5,9). Também as trevas são operantes, mas suas obras são
“estéreis”: “Não vos associeis às obras
das trevas, que não levam a nada; antes, desmascarai-as. O que essa gente faz
em segredo, tem vergonha até de dizê-lo” (Ef 5,11-12).
Estendamos nossa reflexão sobre o texto do Evangelho proclamado
neste Quarto Domingo da Quaresma!
Os capítulo 9,1-10,42 formam uma seção que
apresenta Jesus como Luz (e bom pastor) que julga o mundo. O ponto de partida
dessa seção é a cura do cego de nascença. Ao devolver a visão ao cego de
nascença, Jesus se apresenta como a verdadeira Luz do mundo (Jo 8,12). A cura
do cego de nascença é o triunfo da luz sobre as trevas (cf. Jo 1,5).
Mas a luz produz automaticamente um juízo,
pois com a presença da Luz tudo se ilumina e nada se esconde. A luz faz
qualquer pessoa se julgar se está de roupa limpa ou suja. Como Luz do mundo, a
presença de Jesus no mundo causa a separação (juízo) entre quem é de Jesus e
quem não faz parte da comunhão com ele; quem vive na verdade e quem vive na
mentira; quem vive na luz e quem vive nas trevas.
A cura do cego de nascença é o sexto sinal
realizado por Jesus. Através desta cura João quer desenvolver o tema sobre a
Luz do mundo que é o próprio Jesus (Jo 8,12) que já se encontra logo no prólogo
do seu evangelho: “... a vida era a luz
dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la”
(Jo 1,4-5). Este tema se desenvolve já no capítulo 8 onde Jesus se autodefine
como Luz do mundo: “Eu sou a luz do
mundo. Quem me segue não caminha nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo
8,12) e que agora, no capítulo 9, este tema se aprofunda.
1.
Quem É Culpado?
O episódio começa com a pergunta dos
discípulos: “Rabi, quem pecou, ele ou
seus pais, para que nascesse cego?” (v.2).
Segundo a mentalidade antiga, o bem-estar e a
desgraça eram fruto lógico da conduta moral adequada ou extraviada,
respectivamente (Rm 6,23). A desgraça era efeito do pecado, que Deus castigava
em proporção exata com a gravidade da culpa. A partir deste princípio geral é
que era evidente considerar a enfermidade como consequência do pecado. Se o
sofrimento ou qualquer tipo de enfermidade era consequência do pecado, a causa
dos defeitos de nascimento havia que buscá-la nos pais ou antepassados, pois
existia a ideia de que os pecados se vingam nos filhos (cf. Ex 20,5; mas este
texto opõe somente o castigo limitado do Deus da Aliança: para quatro gerações;
cf. também Ex 34,6-7; Jó 34,10s).
Hoje em dia se fala da conexão entre obra e
resultado ou a causa e efeito. Os atos bons comportam uns efeitos bem precisos,
e os atos maus tem consequências negativas tanto para os indivíduos como para a
comunidade. Portanto, das sequelas boas ou maus, da felicidade ou desgraça, do
bem-estar e da enfermidade, das catástrofes, etc. pode deduzir-se a conduta boa
ou mau de uma pessoa.
Embora não sofressem a desgraça dos leprosos,
e não fossem excluídos da cidade e da convivência, também os cegos eram
considerados como “pecadores”, por duas razões: Deus não os teria castigado com
a cegueira, se não cometessem algum pecado. Além disso, os cegos não tinham
condições de cumprir todos os mandamentos, por isso, dificultavam seu acesso ao
Reino de Deus. A cura da cegueira, naquele tempo praticamente impossível, só
era esperada através da intervenção de Deus num milagre. O cego de nascença,
por isso, representa uma pessoa que se encontra numa situação sem esperança.
O problema que surge deste tipo de pensamento
afeta a fé. Se Deus é o autor de todo bem, se Ele é o Deus de direito, da
justiça e do amor, não há dúvida de que o problema da injusta distribuição de
bens e males no mundo e na história constitui um gravíssimo escândalo para a fé
em Deus. Daí que um homem como Jó no AT não luta somente por seu direito, mas
luta contra este tipo de Deus, pois ele não fez nada de errado, no entanto
sofreu. A experiência da injustiça representa um dos ataques mais violentos
contra a fé em Deus.
Até aqui podemos parar um pouco para tirar
umas mensagens. Primeiro, a forma de
ver as doenças como castigo de Deus não terminou. Nós a encontramos no nosso
povo que muitas vezes vive os seus sofrimentos como se fosse uma punição
divina.
O pecado é uma realidade humana; mas nós,
cristãos, acreditamos num Deus pronto a perdoar. Deus não se cansa de perdoar,
pois não pára de nos amar. É um Deus de amor e não de castigos. É claro que muitos de nossos sofrimentos são consequência
de nossos atos e opções e por isso, não tem que procurar em Deus o porquê
destes sofrimentos. Isto quer nos dizer que antes de fazer qualquer coisa temos
que parar para analisar quais serão as consequências disso tanto positivas como
negativas. Mas Deus está sempre do lado de qualquer homem e contra o pecado e a
mal e a maldade. O que Deus rejeita são as condições desumanas em que vive a
maioria da nossa população.
Segundo, é bom procurar as
causas de um sofrimento ou de qualquer falha ou erro, mas é melhor evitar
qualquer tipo de acusação ou ato de jogar culpa em qualquer pessoa sem sabermos
bem as principais causas. Afinal, o que pretendemos alcançar ao jogar culpa em
alguém ou ao acusar alguém? Teremos alguma solução através desta acusação?
Deus ataca o pecado sem atacar o pecador.
Deus ama o pecador e odeia o pecado (cf. Ez 18), e por isso, enviou seu Filho
para salvar o pecador (cf. Jo 3,16). Deus quer libertar o homem da culpa
através do caminho do amor cuja expressão máxima é o perdão. Para aprender a
amar de verdade, temos que aprender a perdoar sem limites (cf. Mt 18,21-22).
Jesus deseja desenraizar em nós o espírito de acusação, o mau espírito que o Apocalipse
chama de “o acusador de nossos irmãos”, o espírito que procura sempre um
culpado: “Nem ele nem seus pais pecaram,
mas é para que nele sejam manifestadas as obras de Deus”, disse Jesus.
Jesus quer que abandonemos o espírito culpabilizado e culpabilizante e
transformemos nossos olhos em um grito à luz.
O estado do cego de nascença, por isso, não
pode ser uma figura da condição pecadora da humanidade. Seu estado simboliza
outra escuridão, aquela escuridão em que todo homem se encontra antes de ser
iluminado pela revelação do Filho de Deus ou pela Palavra de Deus. Podemos
traduzir estas trevas ou escuridão, em nossa linguagem como uma desorientação interior, isto é, aquele estado de desordem em que não se sabe aonde se vai e como
se vai, para que vive e por que vive. Esta desorientação interior certamente é
hoje um fenômeno difuso. E tal desorientação interior, quando não é
simplesmente sofrida com o desejo de sair dela, mas é assumida como sistema de
vida, faz com que a pessoa se deixe arrastar pelos impulsos e pelas situações
empíricas, sem nunca enfrentar o verdadeiro porquê das coisas.
Por isso, com a palavra “trevas” ou
“escuridão” o evangelista João quer indicar aquele caminhar ao acaso e mal, que
é típico de quem não tem um ponto de referência. Ele nos diz: o fato de não
reconhecer Jesus Cristo, como o sentido último da realidade que dá valor a
todas as coisas, faz com que as pessoas se encontrem nas trevas, sem pontos de
referência. Então se vai em frente ao acaso, tateando, com oscilações contínuas
de um extremo ao outro, sem nunca saber bem o que se faz e por que se faz, com
todas as consequências desastrosas desta desorientação que se resumem naquela
desordem das operações.
Com isso, Jesus quer sublinhar o para quê da enfermidade,
e não o seu porquê. Para Jesus o que é mais importante é a realização do
milagre da cura do cego, um milagre capaz de revelar Jesus como Luz do mundo. A
enfermidade vai servir para mostrar Deus em ação em Jesus Cristo. Em outras
palavras, Jesus justifica a enfermidade como um instrumento para esclarecer a
sua afirmação “Eu sou a luz”.
2.
Jesus É A Luz Dos Homens E A Fé Nele Faz O Homem Enxergar Melhor A Vida
Para o AT e para o judaísmo, a luz era
símbolo da Lei e da sabedoria. De ambas se dizia que eram a luz dos homens. No
mundo helenista a luz simbolizava o conhecimento de Deus. Os primeiros cristãos
consideraram o evangelho como a luz. Com sua auto-apresentação ou
auto-revelação “Eu sou a luz”, Jesus atribui à sua pessoa o que se havia dito
da lei, de sabedoria, do conhecimento de Deus e do evangelho. Jesus ilumina o
mistério da existência humana e procura e traz a salvação para os homens que a
haviam esperado da lei. Para Jesus é necessário que o homem aproveite a luz do
dia, isto é, a presença de Jesus. Sua ausência significa a irrupção/invasão do
mundo das trevas, do mundo antidivino.
Neste episódio, é Jesus quem inicia a obra de
cura, não é o cego que pede. E o modo de Jesus curar o cego nos surpreende: com
saliva e barro. Somente João e Marcos relatam esse gesto de Jesus de usar a
saliva. Nessa cura Jesus faz barro (lama) com a saliva e põe nos olhos do cego.
O barro que Jesus faz remonta ao primeiro relato da Criação (Gn 2,4b-25), no
qual o ser humano é moldado por Deus do barro e sopra nele o espírito da vida.
A prática de Jesus faz nascer o homem novo. Com o barro nos olhos, o cego é
ordenado a ir à piscina de Siloé: “Vai para a piscina de Siloé e lava-te”.
Jesus toma a iniciativa, mas quer que o cego faça alguma coisa. Ele obriga a
pessoa a fazer sua parte. A ordem que Jesus dá faz pensar naquela que o profeta
Eliseu deu a Naamã, o sírio, de ir mergulhar sete vezes no Jordão (2Rs 5).
Naamã mostrava-se reticente, mas o cego de nascença, como o funcionário real (Jo
4,50), obedece à palavra de Jesus. É em Siloé que a lama se desfaz e o cego de
nascença recebe a visão.
O cego curado representa todas as pessoas que
começam a “enxergar” tudo a partir do momento em que aceitarem Jesus, Luz do
mundo, e viverem segundo seus ensinamentos. A narração nos mostra o itinerário
ou o processo de fé. O “lavado”, o batizado, o crente que aceita o Enviado
(Jesus) começa a ver, é iluminado, passa das trevas à luz, no entanto, não
repentinamente nem de uma maneira claramente perceptível ao exterior, mas
profundamente experimentado no interior. A palavra de Deus tem um poder
transformante. Em seu contato o homem deixa de ser como antes: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura.
Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova” ( 2Cor
5,17). A fé em Jesus, Luz do mundo possibilita o homem a enxergar a vida da
maneira que Deus a vê.
3.
O Encontro De Cura Se Transforma Em Encontro De Fé
O cego curado personifica o processo de fé.
Primeiro se limita a contar os fatos (Jo 9,11). Depois, e partindo dos fatos,
descobre que Jesus é profeta (Jo 9,17) que Deus o escutou. Portanto, Jesus não
é pecador e sim piedoso e justo (Jo 9,31). Ele é o Senhor (Jo 9,38). O cego se
converte em modelo de todos os crentes.
Jesus, no fim, se revela: “Tu acreditas no
Filho do Homem?”. Este homem responde: “Quem é ele, Senhor, para que eu creia
nele?”. Jesus declara: “Tu o estás vendo: é o que fala contigo”. Prontamente
ele exclamou: “’ Creio, Senhor’! E prostrou-se diante dele”. O encontro de cura
se transforma em encontro de fé. O cego vê e crê. Seu ver é símbolo do crer: vê
a luz do mundo, que é o Cristo.
4.
Reconhecer Minha Cegueira Possibilita A Aproximação Da Luz Que é o Cristo
Ao terminar esta reflexão vamos nos
perguntar: Quais as maiores cegueiras do nosso grupo ou da nossa
comunidade/paróquia? Será que realmente iluminamos os caminhos dos outros ou os
escurecemos? Quantas vezes, de propósito,
fingimos não enxergar nossos defeitos ou fraquezas por nossa autossuficiência
ou arrogância, como os fariseus? Cegos são os que não enxergam a verdade, o
sofrimento dos irmãos e nada fazem quando podem fazer muito.
“Não se vê bem sem o coração, pois o
essencial é invisível aos olhos”, diz o Pequeno Príncipe. Fomos feitos de barro
(Gn 2,7) e só aceitando nossa condição terrena, como o cego de nascença que
aceitou a lama colocada em seus olhos por Jesus, é que conseguimos ver melhor.
Ver significa encarar a própria verdade, principalmente aquilo que não nos
agrada, mas contém a verdade. Somente quem tem coragem de descer à sua própria
condição como criatura, somente quem é humilde é que consegue abrir os olhos e
enxergar melhor as pessoas e a realidade como elas são. Quem, em sua arrogância,
se recusa a olhar para a própria realidade permanece-se cego, estéril e vive
enganando e explorando os outros. Quem engana é porque tem um coração escuro.
Cegos são aqueles que somente sabem enxergar os próprios interesses e não as
necessidades dos outros.
Os que não querem ver a verdade também
progridem em sua cegueira, pouco a pouco chegam ou chegarão à obcecação. Os que
chegam à obcecação são aqueles que presumem ver, os que estão interessados em
que não haja mais luz que a luz de seus olhos, os que não sabem duvidar nem
perguntar. É muito difícil ver para aqueles que amam muito mais seu prestígio
do que a verdade; para aqueles que estão possuídos de sua autoridade e
pretendem não equivocar-se nunca até o extremo de exigir obediência cega; para
aqueles que se constituem a si mesmos em guia de cegos. Todos os que se empenham em julgar o bem a
partir de sua legalidade e não questionam nunca sua legalidade a partir do bem,
são trevas: não veem, não querem ver e não deixam ver.
Nossa
Cegueira Não Reconhecida
Lemos a história de um cego. Ele é um cego de
nascimento. Obscuridade total. Somente através de sentir o calor conhece a luz.
Somente pelo tato conhece as coisas. Somente pela palavra conhece as pessoas.
Fisicamente não somos cegos. Mas em certo sentido
somos cegos, porque vemos nada. Vemos escassamente a superfície das pessoas,
das coisas e dos acontecimentos, mas não vemos sua verdadeira e profunda
realidade ou dito biblicamente: “O homem olha para as aparências, mas o Senhor
olha para o coração”. O coração da vida nos é escapado sempre. Nós nos
acreditamos lúcidos, mas somos cegos e esta é a pior cegueira; não saber que
estamos ou somos cegos. Vemos as pessoas e as tratamos superficialmente e que
muitas vezes convertemos as pessoas em coisas para serem usadas. Outras vezes a
pessoa se converte em um número ou em um voto. Um ser anonimato. Outras vezes é
um rival a vencer ou um inimigo a ser eliminado.
Somos cegos para entender a mensagem de Deus
em cada acontecimento, embora tudo seja evidente, como os fariseus diante da
cura de um cego de nascença. Vemos os acontecimentos como algo rotineiro.
Talvez fiquemos admirados ou surpreendentes, mas de maneira passageira sem que
nos deixar alguns vestígios. É preciso se deixar interpelar pelos acontecimentos
de cada dia, sejam grandes ou pequenos. É preciso deixar-se encontrar por
Jesus, Luz do mundo para que voltemos a enxergar o sentido de cada pessoa
humana, de cada coisa e de cada acontecimento, como o cego de nascença que se
deixou encontrar por Jesus e voltou a enxergar como resultado deste encontro.
Podemos ler uma e mil vezes o evangelho sem
ver Jesus ou sem encontrar Jesus. Desde começo de seu Evangelho, João
evangelista não deixa repetir: “A luz brilha na noite, mas a noite não capta a
luz” (Jo 1,5). Diante do cego que “vê” e os fariseus que o olharam mas sem
vê-lo, Jesus se sente obrigado a constatar o que ocorre quando ele aparece: Os
cegos vem e os que vem se fazem cegos.
Deus
Não Nos Abandona Mesmo Cercados De Dificuldades
“Ao passar, Jesus viu um homem cego de
nascença... Jesus
cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego. E
disse-lhe: 'Vai lavar-te na piscina de Siloé', que quer dizer: Enviado. O cego
foi, lavou-se e voltou enxergando”.
Esse passo não era casual; estava já
preparado desde toda a eternidade: “Nem
ele nem seus pais pecaram, mas isso serve para que as obras de Deus se
manifestem nele. É necessário que nós realizemos as obras daquele que me
enviou, enquanto é dia”. A iniciativa da salvação parte de Jesus. O cego
não podia ver Jesus, mas Jesus o via. Não é o cego que pede a luz. É a luz que
se oferece ao cego. É a luz que se aproxima das trevas.
Deus atua salvificamente no topo da crise.
Quando se chega ao limite do desespero, ai atua Deus. Quando Maria Madalena
chora desesperadamente perto do túmulo, aparece Jesus Ressuscitado. Quando
Paulo está no topo de sua violência contra os cristãos aparece Jesus
identificado com todos os perseguidos. Quando alguém apalpa o limite da
incapacidade, então Deus diz Sua palavra.
“Vai lavar-te na piscina de Siloé (que quer
dizer: Enviado)”. Não é uma água qualquer. É a água do Enviado. É a água que
brotará do coração de Cristo. É a água do Espírito e a piscina é a Igreja.
Lavar-se na piscina de Siloé é submergir-se em Cristo no seio da comunidade, o
que chamamos Batismo. Esta piscina (o Enviado, a piscina da graça) contrasta
com a de Jo 5,2-7, a piscina dos cinco pórticos (a Tora, piscina da Lei) onde
era muito difícil obter a cura. O cego enxerga porque recorre a Jesus.
Hoje pedimos ao Senhor que cure a nossa
cegueira para que possamos começar a ver tudo de maneira diferente: a vida, a
verdade e os irmãos, até os sofrimentos. Só assim caminharemos como filhos da
luz, estrear olhos novos, ver os outros como filhos de Deus e irmãos nossos.
P. Vitus Gustama,svd
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