EVANGELII GAUDIUM
DEPAPA FRANCISCO
DE
AO EPISCOPADO , AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉISLEIGOS
SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO
NO MUNDO ATUAL
E AOS FIÉIS
Evangelii Gaudium
1. Alegria que se
renova e comunica
2. O grande risco do
mundo actual, com
sua múltipla
e avassaladora oferta de consumo , é uma tristeza individualista que
brota do coração
comodista e mesquinho ,
da busca desordenada de prazeres superficiais ,
da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha
nos próprios
interesses , deixa
de haver espaço
para os outros ,
já não
entram os pobres , já
não se ouve a voz
de Deus , já
não se goza
da doce alegria
do seu amor ,
nem fervilha o entusiasmo
de fazer o bem . Este é um risco , certo e permanente , que
correm também os crentes .
Muitos caem nele, transformando-se em pessoas
ressentidas, queixosas, sem vida . Esta não
é a escolha duma vida
digna e plena ,
este não
é o desígnio que
Deus tem para
nós , esta não
é a vida no Espírito
que jorra
do coração de Cristo
ressuscitado.
3.
Convido todo o cristão ,
em qualquer
lugar e situação
que se encontre, a renovar
hoje mesmo
o seu encontro
pessoal com
Jesus Cristo ou ,
pelo menos , a
tomar a decisão
de se deixar encontrar por Ele , de O procurar dia a dia sem cessar . Não há motivo para alguém poder pensar
que este
convite não lhe diz respeito ,
já que
«da alegria trazida pelo
Senhor ninguém
é excluído ». Quem
arrisca, o Senhor não
o desilude; e, quando alguém dá um pequeno passo em direcção a Jesus, descobre que
Ele já
aguardava de braços abertos
a sua chegada .
Este é o momento
para dizer a Jesus Cristo : «Senhor , deixei-me enganar , de mil maneiras fugi do vosso
amor , mas
aqui estou novamente
para renovar a minha aliança convosco . Preciso
de Vós . Resgatai-me de novo ,
Senhor ; aceitai-me mais
uma vez nos
vossos braços
redentores ». Como
nos faz bem voltar para Ele ,
quando nos
perdemos! Insisto uma vez mais : Deus nunca Se cansa de perdoar ,
somos nós que
nos cansamos de pedir
a sua misericórdia .
Aquele que
nos convidou a perdoar
«setenta vezes sete »
(Mt 18, 22) dá-nos o exemplo : Ele perdoa setenta vezes
sete . Volta
uma vez e outra
a carregar-nos aos seus ombros . Ninguém
nos pode tirar
a dignidade que
este amor
infinito e inabalável
nos confere. Ele
permite-nos levantar a cabeça
e recomeçar , com
uma ternura que
nunca nos
defrauda e sempre nos
pode restituir a alegria .
Não fujamos da ressurreição
de Jesus; nunca nos
demos por
mortos , suceda o que
suceder . Que nada possa mais
do que a sua
vida que
nos impele para
diante !
4. Os
livros do Antigo Testamento preanunciaram a alegria da salvação, que havia de
tornar-se superabundante nos tempos messiânicos. O profeta Isaías dirige-se ao
Messias esperado, saudando-O com regozijo: «Multiplicaste a alegria, aumentaste
o júbilo» (9, 2). E anima os habitantes de Sião a recebê-Lo com cânticos:
«Exultai de alegria!» (12, 6). A quem já O avistara no horizonte, o profeta
convida-o a tornar-se mensageiro para os outros: «Sobe a um alto monte, arauto
de Sião! Grita com voz forte, arauto de Jerusalém» (40, 9). A criação inteira
participa nesta alegria da salvação: «Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó terra!
Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo e se
compadece dos desamparados» (49, 13).
Zacarias,
vendo o dia do Senhor, convida a vitoriar o Rei que chega «humilde, montado num
jumento»: «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de
Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti. Ele é justo e vitorioso» (9, 9). Mas o
convite mais tocante talvez seja o do profeta Sofonias, que nos mostra o
próprio Deus como um centro irradiante de festa e de alegria, que quer comunicar
ao seu povo este júbilo salvífico. Enche-me de vida reler este texto: «O
Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de
alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria
por tua causa» (3, 17).É a alegria que se vive no meio das pequenas coisas da
vida quotidiana, como resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai: «Meu
filho, se tens com quê, trata-te bem (...). Não te prives da felicidade
presente» (Sir 14, 11.14). Quanta ternura paterna se vislumbra por detrás
destas palavras!
5. O
Evangelho, onde resplandece gloriosa a Cruz de Cristo, convida insistentemente
à alegria. Apenas alguns exemplos: «Alegra-te» é a saudação do anjo a Maria (Lc
1, 28). A visita de Maria a Isabel faz com que João salte de alegria no ventre
de sua mãe (cf. Lc 1, 41). No seu cântico, Maria proclama: «O meu espírito se
alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 47). E, quando Jesus começa o seu
ministério, João exclama: «Esta é a minha alegria! E tornou-se completa!» (Jo
3, 29). O próprio Jesus «estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo»
(Lc 10, 21). A sua mensagem é fonte de alegria: «Manifestei-vos estas coisas,
para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo
15, 11). A nossa alegria cristã brota da fonte do seu coração transbordante.
Ele promete aos seus discípulos: «Vós haveis de estar tristes, mas a vossa
tristeza há-de converter-se em alegria» (Jo 16, 20). E insiste: «Eu hei-de
ver-vos de novo! Então, o vosso coração há-de alegrar-se e ninguém vos poderá
tirar a vossa alegria» (Jo 16, 22). Depois, ao verem-No ressuscitado,
«encheram-se de alegria» (Jo 20, 20). O livro dos Actos dos Apóstolos conta
que, na primitiva comunidade, «tomavam o alimento com alegria» (2, 46). Por
onde passaram os discípulos, «houve grande alegria» (8, 8); e eles, no meio da
perseguição, «estavam cheios de alegria» (13, 52). Um eunuco, recém-baptizado,
«seguiu o seu caminho cheio de alegria» (8, 39); e o carcereiro «entregou-se,
com a família, à alegria de ter acreditado em Deus» (16, 34). Porque não
havemos de entrar, também nós, nesta torrente de alegria?
6. Há
cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço,
porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias
da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece
pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o
contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo as pessoas que se vergam à
tristeza por causa das graves dificuldades que têm de suportar, mas aos poucos
é preciso permitir que a alegria da fé comece a despertar, como uma secreta mas
firme confiança, mesmo no meio das piores angústias: «A paz foi desterrada da
minha alma, já nem sei o que é a felicidade (…). Isto, porém, guardo no meu
coração; por isso, mantenho a esperança. É que a misericórdia do Senhor não
acaba, não se esgota a sua compaixão. Cada manhã ela se renova; é grande a tua
fidelidade. (...) Bom é esperar em silêncio a salvação do Senhor» (Lm 3,
17.21-23.26).
7. A
tentação apresenta-se, frequentemente, sob forma de desculpas e queixas, como
se tivesse de haver inúmeras condições para ser possível a alegria.
Habitualmente isto acontece, porque «a sociedade técnica teve a possibilidade
de multiplicar as ocasiões de prazer; no entanto ela encontra dificuldades
grandes no engendrar também a alegria». Posso dizer que as alegrias mais belas
e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as alegrias de pessoas muito
pobres que têm pouco a que se agarrar. Recordo também a alegria genuína
daqueles que, mesmo no meio de grandes compromissos profissionais, souberam
conservar um coração crente, generoso e simples. De várias maneiras, estas
alegrias bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus, a nós manifestado em
Jesus Cristo. Não me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI que nos
levam ao centro do Evangelho: «Ao início do ser cristão, não há uma decisão
ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa
que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo».
8.
Somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se
converte em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada
e da auto-referencialidade. Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos
mais do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza para além de nós
mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a fonte da
acção evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o
sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?
2. A
doce e reconfortante alegria de evangelizar
9. O
bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de verdade e de
beleza procura, por si mesma, a sua expansão; e qualquer pessoa que viva uma
libertação profunda adquire maior sensibilidade face às necessidades dos
outros. E, uma vez comunicado, o bem radica-se e desenvolve-se. Por isso, quem
deseja viver com dignidade e em plenitude, não tem outro caminho senão
reconhecer o outro e buscar o seu bem. Assim, não nos deveriam surpreender
frases de São Paulo como estas: «O amor de Cristo nos absorve completamente» (2
Cor 5, 14); «ai de mim, se eu não evangelizar!» (1 Cor 9, 16).
10. A
proposta é viver a um nível superior, mas não com menor intensidade: «Na
doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento. De
facto, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e
se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos demais». Quando a Igreja faz
apelo ao compromisso evangelizador, não faz mais do que indicar aos cristãos o
verdadeiro dinamismo da realização pessoal: «Aqui descobrimos outra profunda
lei da realidade: “A vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para
dar vida aos outros”. Isto é, definitivamente, a missão». Consequentemente, um
evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral. Recuperemos e
aumentemos o fervor de espírito, «a suave e reconfortante alegria de evangelizar,
mesmo quando for preciso semear com lágrimas! (...) E que o mundo do nosso
tempo, que procura ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova
dos lábios, não de evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou
ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois
foram quem recebeu primeiro em si a alegria de Cristo».
Uma
eterna novidade
11. Um
anúncio renovado proporciona aos crentes, mesmo tíbios ou não praticantes, uma
nova alegria na fé e uma fecundidade evangelizadora. Na realidade, o seu centro
e a sua essência são sempre o mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso em
Cristo morto e ressuscitado. Ele torna os seus fiéis sempre novos; ainda que
sejam idosos, «renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm sem se
cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 31). Cristo é a «Boa-Nova de valor
eterno» (Ap 14, 6), sendo «o mesmo ontem, hoje e pelos séculos» (Heb 13, 8),
mas a sua riqueza e a sua beleza são inesgotáveis. Ele é sempre jovem, e fonte
de constante novidade. A Igreja não cessa de se maravilhar com a «profundidade
de riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus» (Rm 11, 33). São João da Cruz
dizia: «Esta espessura de sabedoria e ciência de Deus é tão profunda e imensa,
que, por mais que a alma saiba dela, sempre pode penetrá-la mais
profundamente». Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cristo]
trouxe consigo toda a novidade». Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a
nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse
períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode
romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo, e
surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos
voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas
estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais
eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo actual. Na
realidade, toda a acção evangelizadora autêntica é sempre «nova».
12.
Embora esta missão nos exija uma entrega generosa, seria um erro considerá-la
como uma heróica tarefa pessoal, dado que ela é, primariamente e acima de tudo
o que possamos sondar e compreender, obra de Deus. Jesus é «o primeiro e o
maior evangelizador». Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de
Deus, que quis chamar-nos para cooperar com Ele e impelir-nos com a força do
seu Espírito. A verdadeira novidade é aquela que o próprio Deus misteriosamente
quer produzir, aquela que Ele inspira, aquela que Ele provoca, aquela que Ele
orienta e acompanha de mil e uma maneiras. Em toda a vida da Igreja, deve-se
sempre manifestar que a iniciativa pertence a Deus, «porque Ele nos amou
primeiro» (1 Jo 4, 19) e é «só Deus que faz crescer» (1 Cor 3, 7). Esta
convicção permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa tão exigente e
desafiadora que ocupa inteiramente a nossa vida. Pede-nos tudo, mas ao mesmo
tempo dá-nos tudo.
13. E
também não deveremos entender a novidade desta missão como um desenraizamento,
como um esquecimento da história viva que nos acolhe e impele para diante. A
memória é uma dimensão da nossa fé, que, por analogia com a memória de Israel,
poderíamos chamar «deuteronómica». Jesus deixa-nos a Eucaristia como memória
quotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (cf. Lc 22, 19).
A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória
agradecida: é uma graça que precisamos de pedir. Os Apóstolos nunca mais
esqueceram o momento em que Jesus lhes tocou o coração: «Eram as quatro horas
da tarde» (Jo 1, 39). A memória faz-nos presente, juntamente com Jesus, uma
verdadeira «nuvem de testemunhas» (Heb 12, 1). De entre elas, distinguem-se
algumas pessoas que incidiram de maneira especial para fazer germinar a nossa
alegria crente: «Recordai-vos dos vossos guias, que vos pregaram a palavra de
Deus» (Heb 13, 7). Às vezes, trata-se de pessoas simples e próximas de nós, que
nos iniciaram na vida da fé: «Trago à memória a tua fé sem fingimento, que se
encontrava já na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice» (2 Tm 1, 5). O crente é,
fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória».
3. A
nova evangelização para a transmissão da fé
14. À
escuta do Espírito, que nos ajuda a reconhecer comunitariamente os sinais dos
tempos, celebrou-se de 7 a 28 de Outubro de 2012 a XIII Assembleia Geral
Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o tema A nova evangelização para a
transmissão da fé cristã. Lá foi recordado que a nova evangelização interpela a
todos, realizando-se fundamentalmente em três âmbitos. Em primeiro lugar,
mencionamos o âmbito da pastoral ordinária, «animada pelo fogo do Espírito a
fim de incendiar os corações dos fiéis que frequentam regularmente a
comunidade, reunindo-se no dia do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e
do Pão de vida eterna». Devem ser incluídos também neste âmbito os fiéis que
conservam uma fé católica intensa e sincera, exprimindo-a de diversos modos,
embora não participem frequentemente no culto. Esta pastoral está orientada
para o crescimento dos crentes, a fim de corresponderem cada vez melhor e com
toda a sua vida ao amor de Deus.
Em
segundo lugar, lembramos o âmbito das «pessoas baptizadas que, porém, não vivem
as exigências do Baptismo», não sentem uma pertença cordial à Igreja e já não
experimentam a consolação da fé. Mãe sempre solícita, a Igreja esforça-se para
que elas vivam uma conversão que lhes restitua a alegria da fé e o desejo de se
comprometerem com o Evangelho.
Por
fim, frisamos que a evangelização está essencialmente relacionada com a
proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O
recusaram. Muitos deles buscam secretamente a Deus, movidos pela nostalgia do
seu rosto, mesmo em países de antiga tradição cristã. Todos têm o direito de
receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir
ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma
alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A
Igreja não cresce por proselitismo, mas «por atracção».
15.
João Paulo II convidou-nos a reconhecer que «não se pode perder a tensão para o
anúncio» àqueles que estão longe de Cristo, «porque esta é a tarefa primária da
Igreja». A actividade missionária «ainda hoje representa o máximo desafio para
a Igreja» e «a causa missionária deve ser (…) a primeira de todas as causas».
Que sucederia se tomássemos realmente a sério estas palavras? Simplesmente
reconheceríamos que a acção missionária é o paradigma de toda a obra da Igreja.
Nesta linha, os Bispos latino-americanos afirmaram que «não podemos ficar
tranquilos, em espera passiva, em nossos templos», sendo necessário passar «de
uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária».
Esta tarefa continua a ser a fonte das maiores alegrias para a Igreja: «Haverá
mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e
nove justos que não necessitam de conversão» (Lc 15, 7).
A
proposta desta Exortação e seus contornos
16.
Com prazer, aceitei o convite dos Padres sinodais para redigir esta Exortação.
Para o efeito, recolho a riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei também
várias pessoas e pretendo, além disso, exprimir as preocupações que me movem
neste momento concreto da obra evangelizadora da Igreja. Os temas relacionados
com a evangelização no mundo actual, que se poderiam desenvolver aqui, são
inumeráveis. Mas renunciei a tratar detalhadamente esta multiplicidade de
questões que devem ser objecto de estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso,
aliás, que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou
completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não
convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as
problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a
necessidade de proceder a uma salutar «descentralização».
17.
Aqui escolhi propor algumas directrizes que possam encorajar e orientar, em
toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo. Neste
quadro e com base na doutrina da Constituição dogmática Lumen gentium, decidi,
entre outros temas, de me deter amplamente sobre as seguintes questões:
a) A
reforma da Igreja em saída missionária.b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A
Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que evangeliza.d) A homilia e a
sua preparação.
e) A
inclusão social dos pobres.f) A paz e o diálogo social.
g) As
motivações espirituais para o compromisso missionário.
18.
Demorei-me nestes temas, desenvolvendo-os dum modo que talvez possa parecer
excessivo. Mas não o fiz com a intenção de oferecer um tratado, mas só para
mostrar a relevante incidência prática destes assuntos na missão actual da
Igreja. De facto, todos eles ajudam a delinear um preciso estilo evangelizador,
que convido a assumir em qualquer actividade que se realize. E, desta forma,
podemos assumir, no meio do nosso trabalho diário, esta exortação da Palavra de
Deus: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo vos digo: alegrai-vos!» (Fl 4, 4).
Capítulo I
A
TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
19. A
evangelização obedece ao mandato missionário de Jesus: «Ide, pois, fazei
discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28,
19-20). Nestes versículos, aparece o momento em que o Ressuscitado envia os
seus a pregar o Evangelho em todos os tempos e lugares, para que a fé n’Ele se
estenda a todos os cantos da terra.
1. Uma
Igreja «em saída»
20. Na
Palavra de Deus, aparece constantemente este dinamismo de «saída», que Deus
quer provocar nos crentes. Abraão aceitou a chamada para partir rumo a uma nova
terra (cf. Gn 12, 1-3). Moisés ouviu a chamada de Deus: «Vai; Eu te envio» (Ex
3, 10), e fez sair o povo para a terra prometida (cf. Ex 3, 17). A Jeremias
disse: «Irás aonde Eu te enviar» (Jr 1, 7). Naquele «ide» de Jesus, estão
presentes os cenários e os desafios sempre novos da missão evangelizadora da
Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova «saída» missionária. Cada
cristão e cada comunidade há-de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe
pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria
comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz
do Evangelho.
21. A
alegria do Evangelho, que enche a vida da comunidade dos discípulos, é uma
alegria missionária. Experimentam-na os setenta e dois discípulos, que voltam
da missão cheios de alegria (cf. Lc 10, 17). Vive-a Jesus, que exulta de
alegria no Espírito Santo e louva o Pai, porque a sua revelação chega aos
pobres e aos pequeninos (cf. Lc 10, 21). Sentem-na, cheios de admiração, os
primeiros que se convertem no Pentecostes, ao ouvir «cada um na sua própria
língua» (Act 2, 6) a pregação dos Apóstolos. Esta alegria é um sinal de que o
Evangelho foi anunciado e está a frutificar. Mas contém sempre a dinâmica do
êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo,
sempre mais além. O Senhor diz: «Vamos para outra parte, para as aldeias
vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi para isso que Eu vim» (Mc 1, 38). Ele,
depois de lançar a semente num lugar, não se demora lá a explicar melhor ou a
cumprir novos sinais, mas o Espírito leva-O a partir para outras aldeias.
22. A
Palavra possui, em si mesma, uma tal potencialidade, que não a podemos prever.
O Evangelho fala da semente que, uma vez lançada à terra, cresce por si mesma,
inclusive quando o agricultor dorme (cf. Mc 4, 26-29). A Igreja deve aceitar
esta liberdade incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão
variadas que muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões e
quebrando os nossos esquemas.
23. A
intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão
«reveste essencialmente a forma de comunhão missionária». Fiel ao modelo do
Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em
todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem
medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir ninguém;
assim foi anunciada pelo anjo aos pastores de Belém: «Não temais, pois
anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo» (Lc 2, 10). O
Apocalipse fala de «uma Boa-Nova de valor eterno para anunciar aos habitantes
da terra: a todas as nações, tribos, línguas e povos» (Ap 14, 6).
«Primeirear»,
envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar
24. A
Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que «primeireiam»,
que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam –
desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade missionária
experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4,
10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao
encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para
convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia,
fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força
difusiva. Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa! Como consequência, a
Igreja sabe «envolver-se». Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor
envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para os
lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se o puserdes em
prática» (Jo 13, 17). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na
vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário –
até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no
povo. Os evangelizadores contraem assim o «cheiro de ovelha», e estas escutam a
sua voz. Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar».
Acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados
que sejam. Conhece as longas esperas e a suportação apostólica. A evangelização
patenteia muita paciência, e evita deter-se a considerar as limitações. Fiel ao
dom do Senhor, sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se
atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a
paz por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o joio no meio do trigo,
não tem reacções lastimosas ou alarmistas. Encontra o modo para fazer com que a
Palavra se encarne numa situação concreta e dê frutos de vida nova, apesar de
serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos. O discípulo sabe oferecer a
vida inteira e jogá-la até ao martírio como testemunho de Jesus Cristo, mas o
seu sonho não é estar cheio de inimigos, mas antes que a Palavra seja acolhida
e manifeste a sua força libertadora e renovadora. Por fim, a comunidade
evangelizadora jubilosa sabe sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena
vitória, cada passo em frente na evangelização. No meio desta exigência diária
de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A
Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também
celebração da actividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso para se
dar.
2.
Pastoral em conversão
25.
Não ignoro que hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras
épocas, acabando rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que, aquilo que
pretendo deixar expresso aqui, possui um significado programático e tem
consequências importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por
actuar os meios necessários para avançar no caminho duma conversão pastoral e
missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos
serve uma «simples administração». Constituamo-nos em «estado permanente de
missão», em todas as regiões da terra.
26.
Paulo VI convidou a alargar o apelo à renovação de modo que ressalte, com
força, que não se dirige apenas aos indivíduos, mas à Igreja inteira. Lembremos
este texto memorável, que não perdeu a sua força interpeladora: «A Igreja deve
aprofundar a consciência de si mesma, meditar sobre o seu próprio mistério
(...). Desta consciência esclarecida e operante deriva espontaneamente um
desejo de comparar a imagem ideal da Igreja, tal como Cristo a viu, quis e
amou, ou seja, como sua Esposa santa e imaculada (Ef 5, 27), com o rosto real
que a Igreja apresenta hoje. (…) Em consequência disso, surge uma necessidade
generosa e quase impaciente de renovação, isto é, de emenda dos defeitos, que
aquela consciência denuncia e rejeita, como se fosse um exame interior ao
espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo».
O
Concílio Vaticano II apresentou a conversão eclesial como a abertura a uma
reforma permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo: «Toda a renovação
da Igreja consiste essencialmente numa maior fidelidade à própria vocação. (…)
A Igreja peregrina é chamada por Cristo a esta reforma perene. Como instituição
humana e terrena, a Igreja necessita perpetuamente desta reforma». Há
estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um dinamismo evangelizador;
de igual modo, as boas estruturas servem quando há uma vida que as anima,
sustenta e avalia. Sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem
«fidelidade da Igreja à própria vocação», toda e qualquer nova estrutura se
corrompe em pouco tempo.
Uma
renovação eclesial inadiável
27.
Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os
costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se
tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual que à
auto-preservação. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só
se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais
missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais
comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de
«saída» e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus
oferece a sua amizade. Como dizia João Paulo II aos Bispos da Oceânia, «toda a
renovação na Igreja há-de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma
espécie de introversão eclesial».
28. A
paróquia não é uma estrutura caduca; precisamente porque possui uma grande
plasticidade, pode assumir formas muito diferentes que requerem a docilidade e
a criatividade missionária do Pastor e da comunidade. Embora não seja
certamente a única instituição evangelizadora, se for capaz de se reformar e
adaptar constantemente, continuará a ser «a própria Igreja que vive no meio das
casas dos seus filhos e das suas filhas». Isto supõe que esteja realmente em
contacto com as famílias e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura
complicada, separada das pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si
mesmos. A paróquia é presença eclesial no território, âmbito para a escuta da
Palavra, o crescimento da vida cristã, o diálogo, o anúncio, a caridade
generosa, a adoração e a celebração. Através de todas as suas actividades, a
paróquia incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização.
É comunidade de comunidades, santuário onde os sedentos vão beber para
continuarem a caminhar, e centro de constante envio missionário. Temos, porém,
de reconhecer que o apelo à revisão e renovação das paróquias ainda não deu
suficientemente fruto, tornando-se ainda mais próximas das pessoas, sendo
âmbitos de viva comunhão e participação e orientando-se completamente para a
missão.
29. As
outras instituições eclesiais, comunidades de base e pequenas comunidades,
movimentos e outras formas de associação são uma riqueza da Igreja que o
Espírito suscita para evangelizar todos os ambientes e sectores. Frequentemente
trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que
renovam a Igreja. Mas é muito salutar que não percam o contacto com esta
realidade muito rica da paróquia local e que se integrem de bom grado na
pastoral orgânica da Igreja particular. Esta integração evitará que fiquem só
com uma parte do Evangelho e da Igreja, ou que se transformem em nómades sem
raízes.
30.
Cada Igreja particular, porção da Igreja Católica sob a guia do seu Bispo,
está, também ela, chamada à conversão missionária. Ela é o sujeito primário da
evangelização, enquanto é a manifestação concreta da única Igreja num lugar da
terra e, nela, «está verdadeiramente presente e opera a Igreja de Cristo, una,
santa, católica e apostólica». É a Igreja encarnada num espaço concreto, dotada
de todos os meios de salvação dados por Cristo, mas com um rosto local. A sua
alegria de comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua preocupação por
anunciá-Lo noutros lugares mais necessitados, como numa constante saída para as
periferias do seu território ou para os novos âmbitos socioculturais. Procura
estar sempre onde fazem mais falta a luz e a vida do Ressuscitado. Para que
este impulso missionário seja cada vez mais intenso, generoso e fecundo, exorto
também cada uma das Igrejas particulares a entrar decididamente num processo de
discernimento, purificação e reforma.
31. O
Bispo deve favorecer sempre a comunhão missionária na sua Igreja diocesana,
seguindo o ideal das primeiras comunidades cristãs, em que os crentes tinham um
só coração e uma só alma (cf. Act 4, 32) . Para isso, às vezes pôr-se-á à
frente para indicar a estrada e sustentar a esperança do povo, outras vezes
manter-se-á simplesmente no meio de todos com a sua proximidade simples e
misericordiosa e, em certas circunstâncias, deverá caminhar atrás do povo, para
ajudar aqueles que se atrasaram e sobretudo porque o próprio rebanho possui o
olfacto para encontrar novas estradas. Na sua missão de promover uma comunhão dinâmica,
aberta e missionária, deverá estimular e procurar o amadurecimento dos
organismos de participação propostos pelo Código de Direito Canónico e de
outras formas de diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos, e não apenas
alguns sempre prontos a lisonjeá-lo. Mas o objectivo destes processos
participativos não há-de ser principalmente a organização eclesial, mas o sonho
missionário de chegar a todos.
32.
Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também
numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer aberto às
sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao
significado que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades actuais da
evangelização. O Papa João Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar «uma
forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é
essencial da sua missão, se abra a uma situação nova». Pouco temos avançado
neste sentido. Também o papado e as estruturas centrais da Igreja universal
precisam de ouvir este apelo a uma conversão pastoral. O Concílio Vaticano II
afirmou que, à semelhança das antigas Igrejas patriarcais, as conferências
episcopais podem «aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para que o
sentimento colegial leve a aplicações concretas». Mas este desejo não se
realizou plenamente, porque ainda não foi suficientemente explicitado um
estatuto das conferências episcopais que as considere como sujeitos de
atribuições concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal. Uma
centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua
dinâmica missionária.
33. A
pastoral em chave missionária exige o abandono deste cómodo critério pastoral:
«fez-se sempre assim». Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa
de repensar os objectivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores
das respectivas comunidades. Uma identificação dos fins, sem uma condigna busca
comunitária dos meios para os alcançar, está condenada a traduzir-se em mera fantasia.
A todos exorto a aplicarem, com generosidade e coragem, as orientações deste
documento, sem impedimentos nem receios. Importante é não caminhar sozinho, mas
ter sempre em conta os irmãos e, de modo especial, a guia dos Bispos, num
discernimento pastoral sábio e realista.
3. A
partir do coração do Evangelho
34. Se
pretendemos colocar tudo em chave missionária, isso aplica-se também à maneira
de comunicar a mensagem. No mundo actual, com a velocidade das comunicações e a
selecção interessada dos conteúdos feita pelos mass-media, a mensagem que
anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a
alguns dos seus aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que
fazem parte da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá
sentido. O problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então
identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes,
por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto,
convém ser realistas e não dar por suposto que os nossos interlocutores
conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar
o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido,
beleza e fascínio.
35.
Uma pastoral em chave missionária não está obsessionada pela transmissão
desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de
insistir. Quando se assume um objectivo pastoral e um estilo missionário, que
chegue realmente a todos sem excepções nem exclusões, o anúncio concentra-se no
essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo
tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder
profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa.
36.
Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas
com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais
directamente o coração do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai
é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e
ressuscitado. Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que «existe uma
ordem ou “hierarquia” das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas
com o fundamento da fé cristã é diferente». Isto é válido tanto para os dogmas
da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina
moral.
37.
São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja, há uma
hierarquia nas virtudes e acções que delas procedem. Aqui o que conta é, antes
de mais nada, «a fé que actua pelo amor» (Gal 5, 6). As obras de amor ao
próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito:
«O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta
através da fé que opera pelo amor». Por isso afirma que, relativamente ao agir
exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes: «Em si mesma, a
misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se
sobre os outros e – o que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora, isto
é tarefa especialmente de quem é superior; é por isso que se diz que é próprio
de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua
omnipotência».
38. É
importante tirar as consequências pastorais desta doutrina conciliar, que
recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de mais nada, deve-se dizer que,
no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção adequada. Esta
reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e nas acentuações
postas na pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala
dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou
sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente
aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese.
E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que
de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus.
39.
Tal como existe uma unidade orgânica entre as virtudes que impede de excluir
qualquer uma delas do ideal cristão, assim também nenhuma verdade é negada. Não
é preciso mutilar a integridade da mensagem do Evangelho. Além disso, cada
verdade entende-se melhor se a colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa
da mensagem cristã: e, neste contexto, todas as verdades têm a sua própria
importância e iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é fiel ao
Evangelho, manifesta-se com clareza a centralidade de algumas verdades e fica
claro que a pregação moral cristã não é uma ética estóica, é mais do que uma
ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O
Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva,
reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos.
Este convite não há-de ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as
virtudes estão ao serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge
com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um
castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos
propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou
morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de
perder o seu frescor e já não ter «o perfume do Evangelho».
4. A
missão que se encarna nas limitações humanas
40. A
Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de crescer na sua
interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade. A tarefa dos
exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer o juízo da Igreja». Embora de modo
diferente, fazem-no também as outras ciências. Referindo-se às ciências
sociais, por exemplo, João Paulo II disse que a Igreja presta atenção às suas
contribuições «para obter indicações concretas que a ajudem no cumprimento da
sua missão de Magistério». Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à
volta das quais se indaga e reflecte com grande liberdade. As diversas linhas
de pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar pelo
Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a
explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. A quantos sonham com uma
doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma
dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e
desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho.
41. Ao
mesmo tempo, as enormes e rápidas mudanças culturais exigem que prestemos
constante atenção ao tentar exprimir as verdades de sempre numa linguagem que
permita reconhecer a sua permanente novidade; é que, no depósito da doutrina
cristã, «uma coisa é a substância (...) e outra é a formulação que a reveste».
Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis
recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que
não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo. Com a santa intenção
de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o ser humano, nalgumas ocasiões,
damos-lhes um falso deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão.
Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância.
Este é o risco mais grave. Lembremo-nos de que «a expressão da verdade pode ser
multiforme. E a renovação das formas de expressão torna-se necessária para
transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável».
42.
Isto possui uma grande relevância no anúncio do Evangelho, se temos
verdadeiramente a peito fazer perceber melhor a sua beleza e fazê-la acolher
por todos. Em todo o caso, não poderemos jamais tornar os ensinamentos da
Igreja uma realidade facilmente compreensível e felizmente apreciada por todos;
a fé conserva sempre um aspecto de cruz, certa obscuridade que não tira firmeza
à sua adesão. Há coisas que se compreendem e apreciam só a partir desta adesão
que é irmã do amor, para além da clareza com que se possam compreender as
razões e os argumentos. Por isso, é preciso recordar-se de que cada ensinamento
da doutrina deve situar-se na atitude evangelizadora que desperte a adesão do
coração com a proximidade, o amor e o testemunho.
43. No
seu constante discernimento, a Igreja pode chegar também a reconhecer costumes
próprios não directamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns muito
radicados no curso da história, que hoje já não são interpretados da mesma
maneira e cuja mensagem habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem
até ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do
Evangelho. Não tenhamos medo de os rever! Da mesma forma, há normas ou
preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já
não têm a mesma força educativa como canais de vida. São Tomás de Aquino
sublinhava que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus
«são pouquíssimos». E, citando Santo Agostinho, observava que os preceitos
adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, «para não
tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar a nossa religião numa escravidão,
quando «a misericórdia de Deus quis que fosse livre». Esta advertência, feita
há vários séculos, tem uma actualidade tremenda. Deveria ser um dos critérios a
considerar, quando se pensa numa reforma da Igreja e da sua pregação que
permita realmente chegar a todos.
44.
Aliás, tanto os Pastores como todos os fiéis que acompanham os seus irmãos na
fé ou num caminho de abertura a Deus não podem esquecer aquilo que ensina, com
muita clareza, o Catecismo da Igreja Católica: «A imputabilidade e responsabilidade
dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a
inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e
outros factores psíquicos ou sociais».
Portanto,
sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com
misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que
se vão construindo dia após dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário
não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que
nos incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno passo, no meio de grandes
limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente
correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A
todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus, que
opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas
quedas.
45.
Vemos assim que o compromisso evangelizador se move por entre as limitações da
linguagem e das circunstâncias. Procura comunicar cada vez melhor a verdade do
Evangelho num contexto determinado, sem renunciar à verdade, ao bem e à luz que
pode dar quando a perfeição não é possível. Um coração missionário está
consciente destas limitações, fazendo-se «fraco com os fracos (...) e tudo para
todos» (1 Cor 9, 22). Nunca se fecha, nunca se refugia nas próprias seguranças,
nunca opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na
compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não
renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da
estrada.
5. Uma
mãe de coração aberto
46. A
Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas abertas. Sair em direcção aos
outros para chegar às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem
direcção nem sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a
ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para
acompanhar quem ficou caído à beira do caminho. Às vezes, é como o pai do filho
pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este voltar, poder
entrar sem dificuldade.
47. A
Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos
desta abertura é ter, por todo o lado, igrejas com as portas abertas. Assim, se
alguém quiser seguir uma moção do Espírito e se aproximar à procura de Deus,
não esbarrará com a frieza duma porta fechada. Mas há outras portas que também
não se devem fechar: todos podem participar de alguma forma na vida eclesial,
todos podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos
se deveriam fechar por uma razão qualquer. Isto vale sobretudo quando se trata
daquele sacramento que é a «porta»: o Baptismo. A Eucaristia, embora constitua
a plenitude da vida sacramental, não é um prémio para os perfeitos, mas um
remédio generoso e um alimento para os fracos. Estas convicções têm também
consequências pastorais, que somos chamados a considerar com prudência e
audácia. Muitas vezes agimos como controladores da graça e não como
facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há
lugar para todos com a sua vida fadigosa.
48. Se
a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há-de chegar a todos, sem
excepção. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos
uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas
sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e
esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc 14, 14). Não devem
subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje
e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho», e a
evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio
trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a
nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!
49.
Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui,
para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos
de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter
saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se
agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o
centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se
alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é
que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da
amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um
horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos
mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa protecção,
nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos
sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus
repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37).
Capítulo II
NA
CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
50.
Antes de falar de algumas questões fundamentais relativas à acção
evangelizadora, convém recordar brevemente o contexto em que temos de viver e
agir. É habitual hoje falar-se dum «excesso de diagnóstico», que nem sempre é
acompanhado por propostas resolutivas e realmente aplicáveis. Por outro lado,
também não nos seria de grande proveito um olhar puramente sociológico, que
tivesse a pretensão, com a sua metodologia, de abraçar toda a realidade de
maneira supostamente neutra e asséptica. O que quero oferecer situa-se mais na
linha dum discernimento evangélico. É o olhar do discípulo missionário que «se
nutre da luz e da força do Espírito Santo».
51.
Não é função do Papa oferecer uma análise detalhada e completa da realidade
contemporânea, mas animo todas as comunidades a «uma capacidade sempre
vigilante de estudar os sinais dos tempos». Trata-se duma responsabilidade
grave, pois algumas realidades hodiernas, se não encontrarem boas soluções,
podem desencadear processos de desumanização tais que será difícil depois
retroceder. É preciso esclarecer o que pode ser um fruto do Reino e também o
que atenta contra o projecto de Deus. Isto implica não só reconhecer e
interpretar as moções do espírito bom e do espírito mau, mas também – e aqui
está o ponto decisivo – escolher as do espírito bom e rejeitar as do espírito
mau. Pressuponho as várias análises que ofereceram os outros documentos do
Magistério universal, bem como as propostas pelos episcopados regionais e
nacionais. Nesta Exortação, pretendo debruçar-me, brevemente e numa perspectiva
pastoral, apenas sobre alguns aspectos da realidade que podem deter ou
enfraquecer os dinamismos de renovação missionária da Igreja, seja porque
afectam a vida e a dignidade do povo de Deus, seja porque incidem sobre os
sujeitos que mais directamente participam nas instituições eclesiais e nas
tarefas de evangelização.
1.
Alguns desafios do mundo actual
52. A
humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica, que podemos constatar
nos progressos que se verificam em vários campos. São louváveis os sucessos que
contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo, no âmbito da saúde, da
educação e da comunicação. Todavia não podemos esquecer que a maior parte dos
homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente, com
funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero
apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A
alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a
violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso
lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade. Esta mudança de
época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e
acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações tecnológicas
e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da vida.
Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de novas formas dum poder
muitas vezes anónimo.
Não a
uma economia da exclusão
53.
Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor
da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão
e da desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por
enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de
dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se
lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade
social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte,
onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes
massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem
perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como
um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a
cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata
simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com
a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois
quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os
excluídos não são «explorados», mas resíduos, «sobras».
54.
Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída favorável» que
pressupõem que todo o crescimento económico, favorecido pelo livre mercado, consegue
por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião,
que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingénua na
bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do
sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para
se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se
com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase
sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores
alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por
cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos
incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a
serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas
estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero
espectáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à
nova idolatria do dinheiro
55.
Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro,
porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades.
A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma
crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos
novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou
uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia
sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que
investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios
desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que
reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
56.
Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se
cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio
provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a
especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados,
encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania
invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as
suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam
os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real
poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma
evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e
do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar tudo para
aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio
ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado,
transformados em regra absoluta.
Não a
um dinheiro que governa em vez de servir
57.
Por detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da ética e a recusa de Deus.
Para a ética, olha-se habitualmente com um certo desprezo sarcástico; é
considerada contraproducente, demasiado humana, porque relativiza o dinheiro e
o poder. É sentida como uma ameaça, porque condena a manipulação e degradação
da pessoa. Em última instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta
comprometida que está fora das categorias do mercado. Para estas, se
absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso, na
medida em que chama o ser humano à sua plena realização e à independência de
qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite
criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo os
peritos financeiros e os governantes dos vários países a considerarem as
palavras dum sábio da antiguidade: «Não fazer os pobres participar dos seus
próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os
bens que aferrolhamos».
58.
Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa
mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a
enfrentar este desafio com determinação e clarividência, sem esquecer
naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não
governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de
Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e
promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da
economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.
Não à
desigualdade social que gera violência
59.
Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas, enquanto não se
eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários
povos será impossível desarreigar a violência. Acusam-se da violência os pobres
e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as várias
formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais
tarde, há-de provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou
mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas
políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir
indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade
social provoca a reacção violenta de quantos são excluídos do sistema, mas
porque o sistema social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem
tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a
expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer
sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se cada acção tem
consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém um
potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais
injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor. Estamos longe
do chamado «fim da história», já que as condições dum desenvolvimento
sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente implantadas e realizadas.
60. Os
mecanismos da economia actual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se
que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente
daninho para o tecido social. Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade
social gera uma violência que as corridas armamentistas não resolvem nem
poderão resolver jamais. Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam
maior segurança, como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta,
mais do que dar solução, criam novos e piores conflitos. Alguns comprazem-se
simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com
generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução numa «educação» que
os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se
ainda mais irritante, quando os excluídos vêem crescer este câncer social que é
a corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus Governos,
empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos
governantes.
Alguns
desafios culturais
61.
Evangelizamos também procurando enfrentar os diferentes desafios que se nos
podem apresentar. Às vezes, estes manifestam-se em verdadeiros ataques à
liberdade religiosa ou em novas situações de perseguição aos cristãos, que,
nalguns países, atingiram níveis alarmantes de ódio e violência. Em muitos
lugares, trata-se mais de uma generalizada indiferença relativista, relacionada
com a desilusão e a crise das ideologias que se verificou como reacção a tudo o
que pareça totalitário. Isto não prejudica só a Igreja, mas a vida social em
geral. Reconhecemos que, numa cultura onde cada um pretende ser portador duma
verdade subjectiva própria, torna-se difícil que os cidadãos queiram inserir-se
num projecto comum que vai além dos benefícios e desejos pessoais.
62. Na
cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior, imediato,
visível, rápido, superficial, provisório. O real cede o lugar à aparência. Em
muitos países, a globalização comportou uma acelerada deterioração das raízes
culturais com a invasão de tendências pertencentes a outras culturas,
economicamente desenvolvidas mas eticamente debilitadas. Assim se exprimiram,
em distintos Sínodos, os Bispos de vários continentes. Há alguns anos, os
Bispos da África, por exemplo, retomando a Encíclica Sollicitudo rei socialis,
assinalaram que muitas vezes se quer transformar os países africanos em meras
«peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigantesca. Isto verifica-se
com frequência também no domínio dos meios de comunicação social, os quais,
sendo na sua maior parte geridos por centros situados na parte norte do mundo,
nem sempre têm na devida conta as prioridades e os problemas próprios desses
países e não respeitam a sua fisionomia cultural». De igual modo, os Bispos da
Ásia sublinharam «as influências externas que estão a penetrar nas culturas
asiáticas. Vão surgindo formas novas de comportamento resultantes da orientação
dos mass-media (…). Em consequência disso, os aspectos negativos dos mass-media
e espectáculos estão a ameaçar os valores tradicionais».
63. A
fé católica de muitos povos encontra-se hoje perante o desafio da proliferação
de novos movimentos religiosos, alguns tendentes ao fundamentalismo e outros
que parecem propor uma espiritualidade sem Deus. Isto, por um lado, é o
resultado duma reacção humana contra a sociedade materialista, consumista e
individualista e, por outro, um aproveitamento das carências da população que
vive nas periferias e zonas pobres, sobrevive no meio de grandes preocupações
humanas e procura soluções imediatas para as suas necessidades. Estes
movimentos religiosos, que se caracterizam pela sua penetração subtil, vêm
colmar, dentro do individualismo reinante, um vazio deixado pelo racionalismo
secularista. Além disso, é necessário reconhecer que, se uma parte do nosso
povo baptizado não sente a sua pertença à Igreja, isso deve-se também à
existência de estruturas com clima pouco acolhedor nalgumas das nossas
paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática com que se dá resposta aos
problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos povos. Em muitas partes,
predomina o aspecto administrativo sobre o pastoral, bem como uma
sacramentalização sem outras formas de evangelização.
64. O
processo de secularização tende a reduzir a fé e a Igreja ao âmbito privado e
íntimo. Além disso, com a negação de toda a transcendência, produziu-se uma
crescente deformação ética, um enfraquecimento do sentido do pecado pessoal e
social e um aumento progressivo do relativismo; e tudo isso provoca uma
desorientação generalizada, especialmente na fase tão vulnerável às mudanças da
adolescência e juventude. Como justamente observam os Bispos dos Estados Unidos
da América, enquanto a Igreja insiste na existência de normas morais
objectivas, válidas para todos, «há aqueles que apresentam esta doutrina como
injusta, ou seja, contrária aos direitos humanos básicos. Tais alegações brotam
habitualmente de uma forma de relativismo moral, que se une consistentemente a
uma confiança nos direitos absolutos dos indivíduos. Nesta perspectiva, a
Igreja é sentida como se estivesse promovendo um convencionalismo particular e
interferisse com a liberdade individual». Vivemos numa sociedade da informação
que nos satura indiscriminadamente de dados, todos postos ao mesmo nível, e
acaba por nos conduzir a uma tremenda superficialidade no momento de enquadrar
as questões morais. Por conseguinte, torna-se necessária uma educação que
ensine a pensar criticamente e ofereça um caminho de amadurecimento nos
valores.
65.
Apesar de toda a corrente secularista que invade a sociedade, em muitos países
– mesmo onde o cristianismo está em minoria – a Igreja Católica é uma
instituição credível perante a opinião pública, fiável no que diz respeito ao âmbito
da solidariedade e preocupação pelos mais indigentes. Em repetidas ocasiões,
ela serviu de medianeira na solução de problemas que afectam a paz, a
concórdia, o meio ambiente, a defesa da vida, os direitos humanos e civis, etc.
E como é grande a contribuição das escolas e das universidades católicas no
mundo inteiro! E é muito bom que assim seja. Mas, quando levantamos outras
questões que suscitam menor acolhimento público, custa-nos a demonstrar que o
fazemos por fidelidade às mesmas convicções sobre a dignidade da pessoa humana
e do bem comum.
66. A
família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e
vínculos sociais. No caso da família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de
especial gravidade, porque se trata da célula básica da sociedade, o espaço
onde se aprende a conviver na diferença e a pertencer aos outros e onde os pais
transmitem a fé aos seus filhos. O matrimónio tende a ser visto como mera forma
de gratificação afectiva, que se pode constituir de qualquer maneira e modificar-se
de acordo com a sensibilidade de cada um. Mas a contribuição indispensável do
matrimónio à sociedade supera o nível da afectividade e o das necessidades
ocasionais do casal. Como ensinam os Bispos franceses, não provém «do
sentimento amoroso, efémero por definição, mas da profundidade do compromisso
assumido pelos esposos que aceitam entrar numa união de vida total».
67. O
individualismo pós-moderno e globalizado favorece um estilo de vida que
debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas e
distorce os vínculos familiares. A acção pastoral deve mostrar ainda melhor que
a relação com o nosso Pai exige e incentiva uma comunhão que cura, promove e
fortalece os vínculos interpessoais. Enquanto no mundo, especialmente nalguns
países, se reacendem várias formas de guerras e conflitos, nós, cristãos,
insistimos na proposta de reconhecer o outro, de curar as feridas, de construir
pontes, de estreitar laços e de nos ajudarmos «a carregar as cargas uns dos
outros» (Gal 6, 2). Além disso, vemos hoje surgir muitas formas de agregação
para a defesa de direitos e a consecução de nobres objectivos. Deste modo se
manifesta uma sede de participação de numerosos cidadãos, que querem ser
construtores do desenvolvimento social e cultural.
Desafios
da inculturação da fé
68. O
substrato cristão dalguns povos – sobretudo ocidentais – é uma realidade viva.
Aqui encontramos, especialmente nos mais necessitados, uma reserva moral que
guarda valores de autêntico humanismo cristão. Um olhar de fé sobre a realidade
não pode deixar de reconhecer o que semeia o Espírito Santo. Significaria não
ter confiança na sua acção livre e generosa pensar que não existem autênticos
valores cristãos, onde uma grande parte da população recebeu o Baptismo e
exprime de variadas maneiras a sua fé e solidariedade fraterna. Aqui há que
reconhecer muito mais que «sementes do Verbo», visto que se trata duma
autêntica fé católica com modalidades próprias de expressão e de pertença à
Igreja. Não convém ignorar a enorme importância que tem uma cultura marcada
pela fé, porque, não obstante os seus limites, esta cultura evangelizada tem,
contra os ataques do secularismo actual, muitos mais recursos do que a mera
soma dos crentes. Uma cultura popular evangelizada contém valores de fé e
solidariedade que podem provocar o desenvolvimento duma sociedade mais justa e
crente, e possui uma sabedoria peculiar que devemos saber reconhecer com olhar
agradecido.
69. Há
uma necessidade imperiosa de evangelizar as culturas para inculturar o Evangelho.
Nos países de tradição católica, tratar-se-á de acompanhar, cuidar e fortalecer
a riqueza que já existe e, nos países de outras tradições religiosas ou
profundamente secularizados, há que procurar novos processos de evangelização
da cultura, ainda que suponham projectos a longo prazo. Entretanto não podemos
ignorar que há sempre uma chamada ao crescimento: toda a cultura e todo o grupo
social necessitam de purificação e amadurecimento. No caso das culturas
populares de povos católicos, podemos reconhecer algumas fragilidades que
precisam ainda de ser curadas pelo Evangelho: o machismo, o alcoolismo, a
violência doméstica, uma escassa participação na Eucaristia, crenças fatalistas
ou supersticiosas que levam a recorrer à bruxaria, etc. Mas o melhor ponto de
partida para curar e ver-se livre de tais fragilidades é precisamente a piedade
popular.
70.
Certo é também que, às vezes, se dá maior realce a formas exteriores das
tradições de grupos concretos ou a supostas revelações privadas, que se
absolutizam, do que ao impulso da piedade cristã. Há certo cristianismo feito
de devoções – próprio duma vivência individual e sentimental da fé – que, na
realidade, não corresponde a uma autêntica «piedade popular». Alguns promovem
estas expressões sem se preocupar com a promoção social e a formação dos fiéis,
fazendo-o nalguns casos para obter benefícios económicos ou algum poder sobre
os outros. Também não podemos ignorar que, nas últimas décadas, se produziu uma
ruptura na transmissão geracional da fé cristã no povo católico. É inegável que
muitos se sentem desiludidos e deixam de se identificar com a tradição
católica, que cresceu o número de pais que não baptizam os seus filhos nem os
ensinam a rezar, e que há um certo êxodo para outras comunidades de fé. Algumas
causas desta ruptura são a falta de espaços de diálogo familiar, a influência
dos meios de comunicação, o subjectivismo relativista, o consumismo desenfreado
que o mercado incentiva, a falta de cuidado pastoral pelos mais pobres, a
inexistência dum acolhimento cordial nas nossas instituições, e a dificuldade
que sentimos em recriar a adesão mística da fé num cenário religioso
pluralista.
Desafios
das culturas urbanas
71. A
nova Jerusalém, a cidade santa (cf. Ap 21, 2-4), é a meta para onde peregrina
toda a humanidade. É interessante que a revelação nos diga que a plenitude da
humanidade e da história se realiza numa cidade. Precisamos de identificar a
cidade a partir dum olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra
Deus que habita nas suas casas, nas suas ruas, nas suas praças. A presença de
Deus acompanha a busca sincera que indivíduos e grupos efectuam para encontrar
apoio e sentido para a sua vida. Ele vive entre os citadinos promovendo a
solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de justiça. Esta
presença não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada. Deus não Se
esconde de quantos O buscam com coração sincero, ainda que o façam tacteando,
de maneira imprecisa e incerta.
72. Na
cidade, o elemento religioso é mediado por diferentes estilos de vida, por
costumes ligados a um sentido do tempo, do território e das relações que difere
do estilo das populações rurais. Na vida quotidiana, muitas vezes os citadinos
lutam para sobreviver e, nesta luta, esconde-se um sentido profundo da
existência que habitualmente comporta também um profundo sentido religioso.
Precisamos de o contemplar para conseguirmos um diálogo parecido com o que o
Senhor teve com a Samaritana, junto do poço onde ela procurava saciar a sua
sede (cf. Jo 4, 7-26).
73.
Novas culturas continuam a formar-se nestas enormes geografias humanas onde o
cristão já não costuma ser promotor ou gerador de sentido, mas recebe delas
outras linguagens, símbolos, mensagens e paradigmas que oferecem novas
orientações de vida, muitas vezes em contraste com o Evangelho de Jesus. Uma
cultura inédita palpita e está em elaboração na cidade. O Sínodo constatou que
as transformações destas grandes áreas e a cultura que exprimem são, hoje, um
lugar privilegiado da nova evangelização. Isto requer imaginar espaços de
oração e de comunhão com características inovadoras, mais atraentes e
significativas para as populações urbanas. Os ambientes rurais, devido à
influência dos mass-media, não estão imunes destas transformações culturais que
também operam mudanças significativas nas suas formas de vida.
74.
Torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de se
relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores
fundamentais. É necessário chegar aonde são concebidas as novas histórias e
paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma
das cidades. Não se deve esquecer que a cidade é um âmbito multicultural. Nas
grandes cidades, pode observar-se uma trama em que grupos de pessoas
compartilham as mesmas formas de sonhar a vida e ilusões semelhantes,
constituindo-se em novos sectores humanos, em territórios culturais, em cidades
invisíveis. Na realidade, convivem variadas formas culturais, mas exercem
muitas vezes práticas de segregação e violência. A Igreja é chamada a ser
servidora dum diálogo difícil. Enquanto há citadinos que conseguem os meios
adequados para o desenvolvimento da vida pessoal e familiar, muitíssimos são
também os «não-citadinos», os «meio-citadinos» ou os «resíduos urbanos». A
cidade dá origem a uma espécie de ambivalência permanente, porque, ao mesmo
tempo que oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades, interpõe também
numerosas dificuldades ao pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta
contradição provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes do mundo, as
cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares de habitantes reclamam
liberdade, participação, justiça e várias reivindicações que, se não forem
adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas.
75.
Não podemos ignorar que, nas cidades, facilmente se desenvolve o tráfico de
drogas e de pessoas, o abuso e a exploração de menores, o abandono de idosos e
doentes, várias formas de corrupção e crime. Ao mesmo tempo, o que poderia ser
um precioso espaço de encontro e solidariedade, transforma-se muitas vezes num
lugar de retraimento e desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se
mais para isolar e proteger do que para unir e integrar. A proclamação do
Evangelho será uma base para restabelecer a dignidade da vida humana nestes
contextos, porque Jesus quer derramar nas cidades vida em abundância (cf. Jo
10, 10). O sentido unitário e completo da vida humana proposto pelo Evangelho é
o melhor remédio para os males urbanos, embora devamos reparar que um programa
e um estilo uniformes e rígidos de evangelização não são adequados para esta
realidade. Mas viver a fundo a realidade humana e inserir-se no coração dos
desafios como fermento de testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade,
melhora o cristão e fecunda a cidade.
2.
Tentações dos agentes pastorais
76.
Sinto uma enorme gratidão pela tarefa de quantos trabalham na Igreja. Não quero
agora deter-me na exposição das actividades dos vários agentes pastorais, desde
os Bispos até ao mais simples e ignorado dos serviços eclesiais. Prefiro
reflectir sobre os desafios que todos eles enfrentam no meio da cultura
globalizada actual. Mas, antes de tudo e como dever de justiça, tenho a dizer
que é enorme a contribuição da Igreja no mundo actual. A nossa tristeza e
vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja, e pelos próprios, não devem
fazer esquecer os inúmeros cristãos que dão a vida por amor: ajudam tantas
pessoas seja a curar-se seja a morrer em paz em hospitais precários, acompanham
as pessoas que caíram escravas de diversos vícios nos lugares mais pobres da
terra, prodigalizam-se na educação de crianças e jovens, cuidam de idosos
abandonados por todos, procuram comunicar valores em ambientes hostis, e
dedicam-se de muitas outras maneiras que mostram o imenso amor à humanidade
inspirado por Deus feito homem. Agradeço o belo exemplo que me dão tantos
cristãos que oferecem a sua vida e o seu tempo com alegria. Este testemunho
faz-me muito bem e me apoia na minha aspiração pessoal de superar o egoísmo
para uma dedicação maior.
77.
Apesar disso, como filhos desta época, todos estamos de algum modo sob o
influxo da cultura globalizada actual, que, sem deixar de apresentar valores e
novas possibilidades, pode também limitar-nos, condicionar-nos e até mesmo
combalir-nos. Reconheço que precisamos de criar espaços apropriados para
motivar e sanar os agentes pastorais, «lugares onde regenerar a sua fé em Jesus
crucificado e ressuscitado, onde compartilhar as próprias questões mais
profundas e as preocupações quotidianas, onde discernir em profundidade e com
critérios evangélicos sobre a própria existência e experiência, com o objectivo
de orientar para o bem e a beleza as próprias opções individuais e sociais». Ao
mesmo tempo, quero chamar a atenção para algumas tentações que afectam,
particularmente nos nossos dias, os agentes pastorais.
Sim ao
desafio duma espiritualidade missionária
78.
Hoje nota-se em muitos agentes pastorais, mesmo pessoas consagradas, uma
preocupação exacerbada pelos espaços pessoais de autonomia e relaxamento, que
leva a viver os próprios deveres como mero apêndice da vida, como se não
fizessem parte da própria identidade. Ao mesmo tempo, a vida espiritual
confunde-se com alguns momentos religiosos que proporcionam algum alívio, mas
não alimentam o encontro com os outros, o compromisso no mundo, a paixão pela
evangelização. Assim, é possível notar em muitos agentes evangelizadores – não
obstante rezem – uma acentuação do individualismo, uma crise de identidade e um
declínio do fervor. São três males que se alimentam entre si.
79. A
cultura mediática e alguns ambientes intelectuais transmitem, às vezes, uma
acentuada desconfiança quanto à mensagem da Igreja, e um certo desencanto. Em
consequência disso, embora rezando, muitos agentes pastorais desenvolvem uma
espécie de complexo de inferioridade que os leva a relativizar ou esconder a
sua identidade cristã e as suas convicções. Gera-se então um círculo vicioso,
porque assim não se sentem felizes com o que são nem com o que fazem, não se
sentem identificados com a missão evangelizadora, e isto debilita a entrega.
Acabam assim por sufocar a alegria da missão numa espécie de obsessão por serem
como todos os outros e terem o que possuem os demais. Deste modo, a tarefa da
evangelização torna-se forçada e dedica-se-lhe pouco esforço e um tempo muito
limitado.
80.
Nos agentes pastorais, independentemente do estilo espiritual ou da linha de
pensamento que possam ter, desenvolve-se um relativismo ainda mais perigoso que
o doutrinal. Tem a ver com as opções mais profundas e sinceras que determinam
uma forma de vida concreta. Este relativismo prático é agir como se Deus não
existisse, decidir como se os pobres não existissem, sonhar como se os outros
não existissem, trabalhar como se aqueles que não receberam o anúncio não
existissem. É impressionante como até aqueles que aparentemente dispõem de
sólidas convicções doutrinais e espirituais acabam, muitas vezes, por cair num
estilo de vida que os leva a agarrarem-se a seguranças económicas ou a espaços
de poder e de glória humana que se buscam por qualquer meio, em vez de dar a
vida pelos outros na missão. Não nos deixemos roubar o entusiasmo missionário!
Não à
acédia egoísta
81.
Quando mais precisamos dum dinamismo missionário que leve sal e luz ao mundo,
muitos leigos temem que alguém os convide a realizar alguma tarefa apostólica e
procuram fugir de qualquer compromisso que lhes possa roubar o tempo livre.
Hoje, por exemplo, tornou-se muito difícil nas paróquias conseguir catequistas
que estejam preparados e perseverem no seu dever por vários anos. Mas algo
parecido acontece com os sacerdotes que se preocupam obsessivamente com o seu
tempo pessoal. Isto, muitas vezes, fica-se a dever a que as pessoas sentem
imperiosamente necessidade de preservar os seus espaços de autonomia, como se
uma tarefa de evangelização fosse um veneno perigoso e não uma resposta alegre
ao amor de Deus que nos convoca para a missão e nos torna completos e fecundos.
Alguns resistem a provar até ao fundo o gosto da missão e acabam mergulhados
numa acédia paralisadora.
82. O
problema não está sempre no excesso de actividades, mas sobretudo nas
actividades mal vividas, sem as motivações adequadas, sem uma espiritualidade
que impregne a acção e a torne desejável. Daí que as obrigações cansem mais do
que é razoável, e às vezes façam adoecer. Não se trata duma fadiga feliz, mas
tensa, gravosa, desagradável e, em definitivo, não assumida. Esta acédia
pastoral pode ter origens diversas: alguns caem nela por sustentarem projectos
irrealizáveis e não viverem de bom grado o que poderiam razoavelmente fazer;
outros, por não aceitarem a custosa evolução dos processos e querem que tudo
caia do Céu; outros, por se apegarem a alguns projectos ou a sonhos de sucesso
cultivados pela sua vaidade; outros, por terem perdido o contacto real com o
povo, numa despersonalização da pastoral que leva a prestar mais atenção à
organização do que às pessoas, acabando assim por se entusiasmarem mais com a
«tabela de marcha» do que com a própria marcha; outros ainda caem na acédia,
por não saberem esperar e quererem dominar o ritmo da vida. A ânsia hodierna de
chegar a resultados imediatos faz com que os agentes pastorais não tolerem
facilmente tudo o que signifique alguma contradição, um aparente fracasso, uma
crítica, uma cruz.
83.
Assim se gera a maior ameaça, que «é o pragmatismo cinzento da vida quotidiana
da Igreja, no qual aparentemente tudo procede dentro da normalidade, mas na
realidade a fé vai-se deteriorando e degenerando na mesquinhez». Desenvolve-se
a psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma os cristãos em múmias de
museu. Desiludidos com a realidade, com a Igreja ou consigo mesmos, vivem
constantemente tentados a apegar-se a uma tristeza melosa, sem esperança, que se
apodera do coração como «o mais precioso elixir do demónio». Chamados para
iluminar e comunicar vida, acabam por se deixar cativar por coisas que só geram
escuridão e cansaço interior e corroem o dinamismo apostólico. Por tudo isto,
permiti que insista: Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!
Não ao
pessimismo estéril
84. A
alegria do Evangelho é tal que nada e ninguém no-la poderá tirar (cf. Jo 16,
22). Os males do nosso mundo – e os da Igreja – não deveriam servir como
desculpa para reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los como desafios
para crescer. Além disso, o olhar crente é capaz de reconhecer a luz que o
Espírito Santo sempre irradia no meio da escuridão, sem esquecer que, «onde
abundou o pecado, superabundou a graça» (Rm 5, 20). A nossa fé é desafiada a
entrever o vinho em que a água pode ser transformada, e a descobrir o trigo que
cresce no meio do joio. Cinquenta anos depois do Concílio Vaticano II, apesar
de nos entristecerem as misérias do nosso tempo e estarmos longe de optimismos
ingénuos, um maior realismo não deve significar menor confiança no Espírito nem
menor generosidade. Neste sentido, podemos voltar a ouvir as palavras
pronunciadas pelo Beato João XXIII naquele memorável 11 de Outubro de 1962:
«Chegam-nos aos ouvidos insinuações de almas, ardorosas sem dúvida no zelo, mas
não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos actuais, não
vêem senão prevaricações e ruínas. [...] Mas a nós parece-nos que devemos
discordar desses profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos sempre
infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo. Na ordem presente das
coisas, a misericordiosa Providência está-nos levantando para uma ordem de
relações humanas que, por obra dos homens e a maior parte das vezes para além
do que eles esperam, se encaminham para o cumprimento dos seus desígnios
superiores e inesperados, e tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para
o bem da Igreja».
85.
Uma das tentações mais sérias que sufoca o fervor e a ousadia é a sensação de
derrota que nos transforma em pessimistas lamurientos e desencantados com cara
de vinagre. Ninguém pode empreender uma luta, se de antemão não está plenamente
confiado no triunfo. Quem começa sem confiança, perdeu de antemão metade da
batalha e enterra os seus talentos. Embora com a dolorosa consciência das
próprias fraquezas, há que seguir em frente, sem se dar por vencido, e recordar
o que disse o Senhor a São Paulo: «Basta-te a minha graça, porque a força
manifesta-se na fraqueza» (2 Cor 12, 9). O triunfo cristão é sempre uma cruz,
mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de vitória, que se empunha com
ternura batalhadora contra as investidas do mal. O mau espírito da derrota é
irmão da tentação de separar prematuramente o trigo do joio, resultado de uma
desconfiança ansiosa e egocêntrica.
86. É
verdade que, nalguns lugares, se produziu uma «desertificação» espiritual,
fruto do projecto de sociedades que querem construir sem Deus ou que destroem
as suas raízes cristãs. Lá, «o mundo cristão está a tornar-se estéril e se
esgota como uma terra excessivamente desfrutada que se transforma em poeira».
Noutros países, a resistência violenta ao cristianismo obriga os cristãos a
viverem a sua fé às escondidas no país que amam. Esta é outra forma muito triste
de deserto. E a própria família ou o lugar de trabalho podem ser também o tal
ambiente árido, onde há que conservar a fé e procurar irradiá-la. Mas «é
precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos
redescobrir a alegria de crer, a sua importância vital para nós, homens e
mulheres. No deserto, é possível redescobrir o valor daquilo que é essencial
para a vida; assim sendo, no mundo de hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus,
do sentido último da vida, ainda que muitas vezes expressos implícita ou
negativamente. E, no deserto, existe sobretudo a necessidade de pessoas de fé
que, com suas próprias vidas, indiquem o caminho para a Terra Prometida,
mantendo assim viva a esperança». Em todo o caso, lá somos chamados a ser
pessoas-cântaro para dar de beber aos outros. Às vezes o cântaro transforma-se
numa pesada cruz, mas foi precisamente na Cruz que o Senhor, trespassado, Se
nos entregou como fonte de água viva. Não deixemos que nos roubem a esperança!
Sim às
relações novas geradas por Jesus Cristo
87.
Neste tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação humana
alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a
«mística» de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço,
apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa
verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa
peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de comunicação
traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos.
Como seria bom, salutar, libertador, esperançoso, se pudéssemos trilhar este
caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem. Fechar-se em si
mesmo é provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade perderá com cada
opção egoísta que fizermos.
88. O
ideal cristão convidará sempre a superar a suspeita, a desconfiança permanente,
o medo de sermos invadidos, as atitudes defensivas que nos impõe o mundo
actual. Muitos tentam escapar dos outros fechando-se na sua privacidade
confortável ou no círculo reduzido dos mais íntimos, e renunciam ao realismo da
dimensão social do Evangelho. Porque, assim como alguns quiseram um Cristo
puramente espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações
interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas
que se podem acender e apagar à vontade. Entretanto o Evangelho convida-nos
sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença
física que interpela, com o seu sofrimentos e suas reivindicações, com a sua
alegria contagiosa permanecendo lado a lado. A verdadeira fé no Filho de Deus
feito carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do
serviço, da reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação, o Filho de
Deus convidou-nos à revolução da ternura.
89. O
isolamento, que é uma concretização do imanentismo, pode exprimir-se numa falsa
autonomia que exclui Deus, mas pode também encontrar na religião uma forma de
consumismo espiritual à medida do próprio individualismo doentio. O regresso ao
sagrado e a busca espiritual, que caracterizam a nossa época. são fenómenos
ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é
responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham
de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem
compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os
cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão
solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não
humanizam nem dão glória a Deus.
90. As
formas próprias da religiosidade popular são encarnadas, porque brotaram da
encarnação da fé cristã numa cultura popular. Por isso mesmo, incluem uma relação
pessoal, não com energias harmonizadoras, mas com Deus, Jesus Cristo, Maria, um
Santo. Têm carne, têm rostos. Estão aptas para alimentar potencialidades
relacionais e não tanto fugas individualistas. Noutros sectores da nossa
sociedade, cresce o apreço por várias formas de «espiritualidade do bem-estar»
sem comunidade, por uma «teologia da prosperidade» sem compromissos fraternos
ou por experiências subjectivas sem rostos, que se reduzem a uma busca interior
imanentista.
91. Um
desafio importante é mostrar que a solução nunca consistirá em escapar de uma
relação pessoal e comprometida com Deus, que ao mesmo tempo nos comprometa com
os outros. Isto é o que se verifica hoje quando os crentes procuram esconder-se
e livrar-se dos outros, e quando subtilmente escapam de um lugar para outro ou
de uma tarefa para outra, sem criar vínculos profundos e estáveis: «A
imaginação e mudança de lugares enganou a muitos». É um remédio falso que faz
adoecer o coração e, às vezes, o corpo. Faz falta ajudar a reconhecer que o
único caminho é aprender a encontrar os demais com a atitude adequada, que é
valorizá-los e aceitá-los como companheiros de estrada, sem resistências
interiores. Melhor ainda, trata-se de aprender a descobrir Jesus no rosto dos
outros, na sua voz, nas suas reivindicações; e aprender também a sofrer, num
abraço com Jesus crucificado, quando recebemos agressões injustas ou
ingratidões, sem nos cansarmos jamais de optar pela fraternidade.
92.
Nisto está a verdadeira cura: de facto, o modo de nos relacionarmos com os
outros que, em vez de nos adoecer, nos cura é uma fraternidade mística,
contemplativa, que sabe ver a grandeza sagrada do próximo, que sabe descobrir
Deus em cada ser humano, que sabe tolerar as moléstias da convivência
agarrando-se ao amor de Deus, que sabe abrir o coração ao amor divino para
procurar a felicidade dos outros como a procura o seu Pai bom. Precisamente
nesta época, inclusive onde são um «pequenino rebanho» (Lc 12, 32), os
discípulos do Senhor são chamados a viver como comunidade que seja sal da terra
e luz do mundo (cf. Mt 5, 13-16). São chamados a testemunhar, de forma sempre
nova, uma pertença evangelizadora. Não deixemos que nos roubem a comunidade!
Não ao
mundanismo espiritual
93. O
mundanismo espiritual, que se esconde por detrás de aparências de religiosidade
e até mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez da glória do Senhor, a glória
humana e o bem-estar pessoal. É aquilo que o Senhor censurava aos fariseus:
«Como vos é possível acreditar, se andais à procura da glória uns dos outros, e
não procurais a glória que vem do Deus único?» (Jo 5, 44). É uma maneira subtil
de procurar «os próprios interesses, não os interesses de Jesus Cristo» (Fl 2,
21). Reveste-se de muitas formas, de acordo com o tipo de pessoas e situações
em que penetra. Por cultivar o cuidado da aparência, nem sempre suscita pecados
de domínio público, pelo que externamente tudo parece correcto. Mas, se
invadisse a Igreja, «seria infinitamente mais desastroso do que qualquer outro
mundanismo meramente moral».
94.
Este mundanismo pode alimentar-se sobretudo de duas maneiras profundamente
relacionadas. Uma delas é o fascínio do gnosticismo, uma fé fechada no
subjectivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série
de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em
última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão
ou dos seus sentimentos. A outra maneira é o neopelagianismo auto-referencial e
prometeuco de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente
superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente
fiel a um certo estilo católico próprio do passado. É uma suposta segurança
doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário,
onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de
facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar. Em ambos os
casos, nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. São
manifestações dum imanentismo antropocêntrico. Não é possível imaginar que,
destas formas desvirtuadas do cristianismo, possa brotar um autêntico dinamismo
evangelizador.
95.
Este obscuro mundanismo manifesta-se em muitas atitudes, aparentemente opostas
mas com a mesma pretensão de «dominar o espaço da Igreja». Nalguns, há um
cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas
não se preocupam que o Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus
e nas necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja transforma-se
numa peça de museu ou numa possessão de poucos. Noutros, o próprio mundanismo
espiritual esconde-se por detrás do fascínio de poder mostrar conquistas
sociais e políticas, ou numa vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, ou
numa atracção pelas dinâmicas de auto-estima e de realização autoreferencial.
Também se pode traduzir em várias formas de se apresentar a si mesmo envolvido
numa densa vida social cheia de viagens, reuniões, jantares, recepções. Ou
então desdobra-se num funcionalismo empresarial, carregado de estatísticas,
planificações e avaliações, onde o principal beneficiário não é o povo de Deus
mas a Igreja como organização. Em qualquer um dos casos, não traz o selo de
Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite,
não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas multidões
sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio duma
autocomplacência egocêntrica.
96.
Neste contexto, alimenta-se a vanglória de quantos se contentam com ter algum
poder e preferem ser generais de exércitos derrotados antes que simples
soldados dum batalhão que continua a lutar. Quantas vezes sonhamos planos
apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de generais
derrotados! Assim negamos a nossa história de Igreja, que é gloriosa por ser
história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no
serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é «suor do
nosso rosto». Em vez disso, entretemo-nos vaidosos a falar sobre «o que se
deveria fazer» – o pecado do «deveriaqueísmo» – como mestres espirituais e
peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora. Cultivamos a nossa
imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa realidade do nosso
povo fiel.
97.
Quem caiu neste mundanismo olha de cima e de longe, rejeita a profecia dos
irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar constantemente os erros
alheios e vive obcecado pela aparência. Circunscreveu os pontos de referência
do coração ao horizonte fechado da sua imanência e dos seus interesses e,
consequentemente, não aprende com os seus pecados nem está verdadeiramente
aberto ao perdão. É uma tremenda corrupção, com aparências de bem. Devemos
evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de saída de si mesma, de missão centrada
em Jesus Cristo, de entrega aos pobres. Deus nos livre de uma Igreja mundana
sob vestes espirituais ou pastorais! Este mundanismo asfixiante cura-se
saboreando o ar puro do Espírito Santo, que nos liberta de estarmos centrados
em nós mesmos, escondidos numa aparência religiosa vazia de Deus. Não deixemos
que nos roubem o Evangelho!
Não à
guerra entre nós
98.
Dentro do povo de Deus e nas diferentes comunidades, quantas guerras! No
bairro, no local de trabalho, quantas guerras por invejas e ciúmes, mesmo entre
cristãos! O mundanismo espiritual leva alguns cristãos a estar em guerra com
outros cristãos que se interpõem na sua busca pelo poder, prestígio, prazer ou
segurança económica. Além disso, alguns deixam de viver uma adesão cordial à
Igreja por alimentar um espírito de contenda. Mais do que pertencer à Igreja
inteira, com a sua rica diversidade, pertencem a este ou àquele grupo que se
sente diferente ou especial.
99. O
mundo está dilacerado pelas guerras e a violência, ou ferido por um
generalizado individualismo que divide os seres humanos e põe-nos uns contra os
outros visando o próprio bem-estar. Em vários países, ressurgem conflitos e
antigas divisões que se pensavam em parte superados. Aos cristãos de todas as
comunidades do mundo, quero pedir-lhes de modo especial um testemunho de
comunhão fraterna, que se torne fascinante e resplandecente. Que todos possam
admirar como vos preocupais uns pelos outros, como mutuamente vos encorajais
animais e ajudais: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos:
se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 35). Foi o que Jesus, com uma intensa
oração, Jesus pediu ao Pai: «Que todos sejam um só (…) em nós [para que] o
mundo creia» (Jo 17, 21). Cuidado com a tentação da inveja! Estamos no mesmo
barco e vamos para o mesmo porto! Peçamos a graça de nos alegrarmos com os
frutos alheios, que são de todos.
100.
Para quantos estão feridos por antigas divisões, resulta difícil aceitar que os
exortemos ao perdão e à reconciliação, porque pensam que ignoramos a sua dor ou
pretendemos fazer-lhes perder a memória e os ideais. Mas, se virem o testemunho
de comunidades autenticamente fraternas e reconciliadas, isso é sempre uma luz
que atrai. Por isso me dói muito comprovar como nalgumas comunidades cristãs, e
mesmo entre pessoas consagradas, se dá espaço a várias formas de ódio, divisão,
calúnia, difamação, vingança, ciúme, a desejos de impor as próprias ideias a
todo o custo, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas.
Quem queremos evangelizar com estes comportamentos?
101.
Peçamos ao Senhor que nos faça compreender a lei do amor. Que bom é termos esta
lei! Como nos faz bem, apesar de tudo amar-nos uns aos outros! Sim, apesar de
tudo! A cada um de nós é dirigida a exortação de Paulo: «Não te deixes vencer
pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21). E ainda: «Não nos cansemos de
fazer o bem» (Gal 6, 9). Todos nós provamos simpatias e antipatias, e talvez
neste momento estejamos chateados com alguém. Pelo menos digamos ao Senhor:
«Senhor, estou chateado com este, com aquela. Peço-Vos por ele e por ela».
Rezar pela pessoa com quem estamos irritados é um belo passo rumo ao amor, e é
um acto de evangelização. Façamo-lo hoje mesmo. Não deixemos que nos roubem o
ideal do amor fraterno!
Outros
desafios eclesiais
102. A
imensa maioria do povo de Deus é constituída por leigos. Ao seu serviço, está
uma minoria: os ministros ordenados. Cresceu a consciência da identidade e da
missão dos leigos na Igreja. Embora não suficiente, pode-se contar com um
numeroso laicado, dotado de um arreigado sentido de comunidade e uma grande
fidelidade ao compromisso da caridade, da catequese, da celebração da fé. Mas,
a tomada de consciência desta responsabilidade laical que nasce do Baptismo e
da Confirmação não se manifesta de igual modo em toda a parte; nalguns casos,
porque não se formaram para assumir responsabilidades importantes, noutros por
não encontrar espaço nas suas Igrejas particulares para poderem exprimir-se e
agir por causa dum excessivo clericalismo que os mantém à margem das decisões.
Apesar de se notar uma maior participação de muitos nos ministérios laicais,
este compromisso não se reflecte na penetração dos valores cristãos no mundo
social, político e económico; limita-se muitas vezes às tarefas no seio da
Igreja, sem um empenhamento real pela aplicação do Evangelho na transformação
da sociedade. A formação dos leigos e a evangelização das categorias
profissionais e intelectuais constituem um importante desafio pastoral.
103. A
Igreja reconhece a indispensável contribuição da mulher na sociedade, com uma
sensibilidade, uma intuição e certas capacidades peculiares, que habitualmente
são mais próprias das mulheres que dos homens. Por exemplo, a especial
solicitude feminina pelos outros, que se exprime de modo particular, mas não
exclusivamente, na maternidade. Vejo, com prazer, como muitas mulheres
partilham responsabilidades pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem
para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas
contribuições para a reflexão teológica. Mas ainda é preciso ampliar os espaços
para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque «o génio feminino é
necessário em todas as expressões da vida social; por isso deve ser garantida a
presença das mulheres também no âmbito do trabalho» e nos vários lugares onde
se tomam as decisões importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.
104.
As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme
convicção de que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja
questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente. O
sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na
Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão, mas pode tornar-se
particularmente controversa se se identifica demasiado a potestade sacramental
com o poder. Não se esqueça que, quando falamos da potestade sacerdotal,
«estamos na esfera da função e não na da dignidade e da santidade». O
sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao serviço do seu povo,
mas a grande dignidade vem do Baptismo, que é acessível a todos. A configuração
do sacerdote com Cristo Cabeça – isto é, como fonte principal da graça – não
comporta uma exaltação que o coloque por cima dos demais. Na Igreja, as funções
«não dão justificação à superioridade de uns sobre os outros». Com efeito, uma
mulher, Maria, é mais importante do que os Bispos. Mesmo quando a função do
sacerdócio ministerial é considerada «hierárquica», há que ter bem presente que
«se ordena integralmente à santidade dos membros do corpo místico de Cristo». A
sua pedra de fecho e o seu fulcro não são o poder entendido como domínio, mas a
potestade de administrar o sacramento da Eucaristia; daqui deriva a sua
autoridade, que é sempre um serviço ao povo. Aqui está um grande desafio para
os Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que
isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões
importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja.
105. A
pastoral juvenil, tal como estávamos habituados a desenvolvê-la, sofreu o
impacto das mudanças sociais. Nas estruturas ordinárias, os jovens
habitualmente não encontram respostas para as suas preocupações, necessidades,
problemas e feridas. A nós, adultos, custa-nos ouvi-los com paciência,
compreender as suas preocupações ou as suas reivindicações, e aprender a
falar-lhes na linguagem que eles entendem. Pela mesma razão, as propostas
educacionais não produzem os frutos esperados. A proliferação e o crescimento
de associações e movimentos predominantemente juvenis podem ser interpretados
como uma acção do Espírito que abre caminhos novos em sintonia com as suas
expectativas e a busca de espiritualidade profunda e dum sentido mais concreto
de pertença. Todavia é necessário tornar mais estável a participação destas
agregações no âmbito da pastoral de conjunto da Igreja.
106.
Embora nem sempre seja fácil abordar os jovens, houve crescimento em dois
aspectos: a consciência de que toda a comunidade os evangeliza e educa, e a
urgência de que eles tenham um protagonismo maior. Deve-se reconhecer que, no
actual contexto de crise do compromisso e dos laços comunitários, são muitos os
jovens que se solidarizam contra os males do mundo, aderindo a várias formas de
militância e voluntariado. Alguns participam na vida da Igreja, integram grupos
de serviço e diferentes iniciativas missionárias nas suas próprias dioceses ou
noutros lugares. Como é bom que os jovens sejam «caminheiros da fé», felizes
por levarem Jesus Cristo a cada esquina, a cada praça, a cada canto da terra!
107.
Em muitos lugares, há escassez de vocações ao sacerdócio e à vida consagrada.
Frequentemente isso fica-se a dever à falta de ardor apostólico contagioso nas
comunidades, pelo que estas não entusiasmam nem fascinam. Onde há vida, fervor,
paixão de levar Cristo aos outros, surgem vocações genuínas. Mesmo em paróquias
onde os sacerdotes não são muito disponíveis nem alegres, é a vida fraterna e
fervorosa da comunidade que desperta o desejo de se consagrar inteiramente a
Deus e à evangelização, especialmente se essa comunidade vivente reza
insistentemente pelas vocações e tem a coragem de propor aos seus jovens um
caminho de especial consagração. Por outro lado, apesar da escassez vocacional,
hoje temos noção mais clara da necessidade de melhor selecção dos candidatos ao
sacerdócio. Não se podem encher os seminários com qualquer tipo de motivações,
e menos ainda se estas estão relacionadas com insegurança afectiva, busca de
formas de poder, glória humana ou bem-estar económico.
108.
Como já disse, não pretendi oferecer um diagnóstico completo, mas convido as
comunidades a completarem e a enriquecerem estas perspectivas a partir da
consciência dos desafios próprios e das comunidades vizinhas. Espero que, ao
fazê-lo, tenham em conta que, todas as vezes que intentamos ler os sinais dos
tempos na realidade actual, é conveniente ouvir os jovens e os idosos. Tanto
uns como outros são a esperança dos povos. Os idosos fornecem a memória e a
sabedoria da experiência, que convida a não repetir tontamente os mesmos erros
do passado. Os jovens chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança, porque
trazem consigo as novas tendências da humanidade e abrem-nos ao futuro, de modo
que não fiquemos encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que já não
são fonte de vida no mundo actual.
109.
Os desafios existem para ser superados. Sejamos realistas, mas sem perder a
alegria, a audácia e a dedicação cheia de esperança. Não deixemos que nos
roubem a força missionária!
Capítulo III
O
ANÚNCIO DO EVANGELHO
110.
Depois de considerar alguns desafios da realidade actual, quero agora recordar
o dever que incumbe sobre nós em toda e qualquer época e lugar, porque «não
pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio explícito de Jesus como
Senhor» e sem existir uma «primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer
trabalho de evangelização». Recolhendo as preocupações dos Bispos asiáticos,
João Paulo II afirmou que, se a Igreja «deve realizar o seu destino
providencial, então uma evangelização entendida como o jubiloso, paciente e
progressivo anúncio da Morte salvífica e Ressurreição de Jesus Cristo há-de ser
a vossa prioridade absoluta». Isto é válido para todos.
1.
Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho
111. A
evangelização é dever da Igreja. Este sujeito da evangelização, porém, é mais
do que uma instituição orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que
peregrina para Deus. Trata-se certamente de um mistério que mergulha as raízes
na Trindade, mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e
evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão institucional.
Proponho que nos detenhamos um pouco nesta forma de compreender a Igreja, que
tem o seu fundamento último na iniciativa livre e gratuita de Deus.
Um
povo para todos
112. A
salvação, que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia. Não há acção
humana, por melhor que seja, que nos faça merecer tão grande dom. Por pura
graça, Deus atrai-nos para nos unir a Si. Envia o seu Espírito aos nossos
corações, para nos fazer seus filhos, para nos transformar e tornar capazes de
responder com a nossa vida ao seu amor. A Igreja é enviada por Jesus Cristo
como sacramento da salvação oferecida por Deus. Através da sua acção
evangelizadora, ela colabora como instrumento da graça divina, que opera
incessantemente para além de toda e qualquer possível supervisão. Bem o
exprimiu Bento XVI, ao abrir as reflexões do Sínodo: «É sempre importante saber
que a primeira palavra, a iniciativa verdadeira, a actividade verdadeira vem de
Deus e só inserindo-nos nesta iniciativa divina, só implorando esta iniciativa
divina, nos podemos tornar também – com Ele e n'Ele – evangelizadores». O
princípio da primazia da graça deve ser um farol que ilumine constantemente as
nossas reflexões sobre a evangelização.
113.
Esta salvação, que Deus realiza e a Igreja jubilosamente anuncia, é para todos,
e Deus criou um caminho para Se unir a cada um dos seres humanos de todos os
tempos. Escolheu convocá-los como povo, e não como seres isolados. Ninguém se
salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias
forças. Deus atrai-nos, no respeito da complexa trama de relações interpessoais
que a vida numa comunidade humana supõe. Este povo, que Deus escolheu para Si e
convocou, é a Igreja. Jesus não diz aos Apóstolos para formarem um grupo
exclusivo, um grupo de elite. Jesus diz: «Ide, pois, fazei discípulos de todos
os povos» (Mt 28, 19). São Paulo afirma que no povo de Deus, na Igreja, «não há
judeu nem grego (...), porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3, 28). Eu
gostaria de dizer àqueles que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm
medo ou aos indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte do seu povo,
e fá-lo com grande respeito e amor!
114.
Ser Igreja significa ser povo de Deus, de acordo com o grande projecto de amor
do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus no meio da humanidade; quer dizer
anunciar e levar a salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se
sente perdido, necessitado de ter respostas que encorajem, dêem esperança e
novo vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita,
onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem
segundo a vida boa do Evangelho.
Um
povo com muitos rostos
115.
Este Povo de Deus encarna-se nos povos da Terra, cada um dos quais tem a sua
cultura própria. A noção de cultura é um instrumento precioso para compreender
as diversas expressões da vida cristã que existem no povo de Deus. Trata-se do
estilo de vida que uma determinada sociedade possui, da forma peculiar que têm
os seus membros de se relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus.
Assim entendida, a cultura abrange a totalidade da vida dum povo. Cada povo, na
sua evolução histórica, desenvolve a própria cultura com legítima autonomia.
Isso fica-se a dever ao facto de que a pessoa humana, «por sua natureza,
necessita absolutamente da vida social» e mantém contínua referência à
sociedade, na qual vive uma maneira concreta de se relacionar com a realidade.
O ser humano está sempre culturalmente situado: «natureza e cultura
encontram-se intimamente ligadas». A graça supõe a cultura, e o dom de Deus
encarna-se na cultura de quem o recebe.
116.
Ao longo destes dois milénios de cristianismo, uma quantidade inumerável de
povos recebeu a graça da fé, fê-la florir na sua vida diária e transmitiu-a
segundo as próprias modalidades culturais. Quando uma comunidade acolhe o
anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda a sua cultura com a força
transformadora do Evangelho. E assim, como podemos ver na história da Igreja, o
cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, mas «permanecendo o que é,
na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição da Igreja, o
cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos
onde for acolhido e se radicar». Nos diferentes povos, que experimentam o dom
de Deus segundo a própria cultura, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade
e mostra «a beleza deste rosto pluriforme». Através das manifestações cristãs
dum povo evangelizado, o Espírito Santo embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos
aspectos da Revelação e presenteando-a com um novo rosto. Pela inculturação, a
Igreja «introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade»,
porque «cada cultura oferece formas e valores positivos que podem enriquecer o
modo como o Evangelho é pregado, compreendido e vivido». Assim, «a Igreja,
assumindo os valores das diversas culturas, torna-se sponsa ornata monilibus
suis, a noiva que se adorna com suas jóias (cf. Is 61, 10)».
117.
Se for bem entendida, a diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja. É
o Espírito Santo, enviado pelo Pai e o Filho, que transforma os nossos corações
e nos torna capazes de entrar na comunhão perfeita da Santíssima Trindade, onde
tudo encontra a sua unidade. O Espírito Santo constrói a comunhão e a harmonia
do povo de Deus. Ele mesmo é a harmonia, tal como é o vínculo de amor entre o
Pai e o Filho. É Ele que suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons
e, ao mesmo tempo, constrói uma unidade que nunca é uniformidade, mas
multiforme harmonia que atrai. A evangelização reconhece com alegria estas
múltiplas riquezas que o Espírito gera na Igreja. Não faria justiça à lógica da
encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que
algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao
desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se
identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural. Por isso, na
evangelização de novas culturas ou de culturas que não acolheram a pregação
cristã, não é indispensável impor uma determinada forma cultural, por mais bela
e antiga que seja, juntamente com a proposta do Evangelho. A mensagem, que
anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes, na Igreja,
caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais
fanatismo do que autêntico ardor evangelizador.
118.
Os Bispos da Oceânia pediram que a Igreja neste continente «desenvolva uma
compreensão e exposição da verdade de Cristo partindo das tradições e culturas
locais», e instaram todos os missionários «a trabalhar de harmonia com os
cristãos indígenas para garantir que a doutrina e a vida da Igreja sejam
expressas em formas legítimas e apropriadas a cada cultura». Não podemos
pretender que todos os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé cristã,
imitem as modalidades adoptadas pelos povos europeus num determinado momento da
história, porque a fé não se pode confinar dentro dos limites de compreensão e
expressão duma cultura. É indiscutível que uma única cultura não esgota o
mistério da redenção de Cristo.
Todos
somos discípulos missionários
119.
Em todos os baptizados, desde o primeiro ao último, actua a força santificadora
do Espírito que impele a evangelizar. O povo de Deus é santo em virtude desta
unção, que o torna infalível «in credendo», ou seja, ao crer, não pode
enganar-se, ainda que não encontre palavras para explicar a sua fé. O Espírito
guia-o na verdade e condu-lo à salvação. Como parte do seu mistério de amor
pela humanidade, Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé – o
sensus fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus. A presença
do Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade com as realidades
divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las intuitivamente, embora não
possuam os meios adequados para expressá-las com precisão.
120.
Em virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se
discípulo missionário (cf. Mt 28, 19). Cada um dos baptizados,
independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé,
é um sujeito activo de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema
de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo
fiel seria apenas receptor das suas acções. A nova evangelização deve implicar
um novo protagonismo de cada um dos baptizados. Esta convicção transforma-se
num apelo dirigido a cada cristão para que ninguém renuncie ao seu compromisso
de evangelização, porque, se uma pessoa experimentou verdadeiramente o amor de
Deus que o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair a
anunciá-lo, não pode esperar que lhe dêem muitas lições ou longas instruções.
Cada cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em
Cristo Jesus; não digamos mais que somos «discípulos» e «missionários», mas
sempre que somos «discípulos missionários». Se não estivermos convencidos
disto, olhemos para os primeiros discípulos, que logo depois de terem conhecido
o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de alegria: «Encontrámos o Messias»
(Jo 1, 41). A Samaritana, logo que terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se
missionária, e muitos samaritanos acreditaram em Jesus «devido às palavras da
mulher» (Jo 4, 39). Também São Paulo, depois do seu encontro com Jesus Cristo,
«começou imediatamente a proclamar (…) que Jesus era o Filho de Deus» (Act 9,
20). Porque esperamos nós?
121.
Certamente todos somos chamados a crescer como evangelizadores. Devemos
procurar simultaneamente uma melhor formação, um aprofundamento do nosso amor e
um testemunho mais claro do Evangelho. Neste sentido, todos devemos deixar que
os outros nos evangelizem constantemente; isto não significa que devemos
renunciar à missão evangelizadora, mas encontrar o modo de comunicar Jesus que
corresponda à situação em que vivemos. Seja como for, todos somos chamados a
dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem
olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a
sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a vida não é a
mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e
te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros. A nossa imperfeição
não deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante para
não nos acomodarmos na mediocridade, mas continuarmos a crescer. O testemunho
de fé, que todo o cristão é chamado a oferecer, implica dizer como São Paulo:
«Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se o
alcanço, (…) lançando-me para o que vem à frente» (Fl 3, 12-13).
A
força evangelizadora da piedade popular
122.
Da mesma forma, podemos pensar que os diferentes povos, nos quais foi
inculturado o Evangelho, são sujeitos colectivos activos, agentes da
evangelização. Assim é, porque cada povo é o criador da sua cultura e o
protagonista da sua história. A cultura é algo de dinâmico, que um povo recria
constantemente, e cada geração transmite à seguinte um conjunto de atitudes
relativas às diversas situações existenciais, que esta nova geração deve
reelaborar face aos próprios desafios. O ser humano «é simultaneamente filho e
pai da cultura onde está inserido». Quando o Evangelho se inculturou num povo,
no seu processo de transmissão cultural também transmite a fé de maneira sempre
nova; daí a importância da evangelização entendida como inculturação. Cada
porção do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole
própria, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com novas expressões que
falam por si. Pode dizer-se que «o povo se evangeliza continuamente a si
mesmo». Aqui ganha importância a piedade popular, verdadeira expressão da
actividade missionária espontânea do povo de Deus. Trata-se de uma realidade em
permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito Santo.
123.
Na piedade popular, pode-se captar a modalidade em que a fé recebida se
encarnou numa cultura e continua a transmitir-se. Vista por vezes com
desconfiança, a piedade popular foi objecto de revalorização nas décadas
posteriores ao Concílio. Quem deu um impulso decisivo nesta direcção, foi Paulo
VI na sua Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Nela explica que a piedade
popular «traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os
simples podem experimentar» e «torna as pessoas capazes para terem rasgos de
generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata
de manifestar a fé». Já mais perto dos nossos dias, Bento XVI, na América
Latina, assinalou que se trata de um «precioso tesouro da Igreja Católica» e
que nela «aparece a alma dos povos latino-americanos».
124.
No Documento de Aparecida, descrevem-se as riquezas que o Espírito Santo
explicita na piedade popular por sua iniciativa gratuita. Naquele amado
Continente, onde uma multidão imensa de cristãos exprime a sua fé através da
piedade popular, os Bispos chamam-na também «espiritualidade popular» ou
«mística popular». Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade encarnada na
cultura dos simples». Não é vazia de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os
mais pela via simbólica do que pelo uso da razão instrumental e, no acto de fé,
acentua mais o credere in Deum que o credere Deum. É «uma maneira legítima de
viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser
missionários»; comporta a graça da missionariedade, do sair de si e do
peregrinar: «O caminhar juntos para os santuários e o participar em outras
manifestações da piedade popular, levando também os filhos ou convidando a
outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador». Não coarctemos nem
pretendamos controlar esta força missionária!
125.
Para compreender esta necessidade, é preciso abordá-la com o olhar do Bom
Pastor, que não procura julgar mas amar. Só a partir da conaturalidade afectiva
que dá o amor é que podemos apreciar a vida teologal presente na piedade dos
povos cristãos, especialmente nos pobres. Penso na fé firme das mães ao pé da
cama do filho doente, que se agarram a um terço ainda que não saibam elencar os
artigos do Credo; ou na carga imensa de esperança contida numa vela que se
acende, numa casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de profundo
amor a Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus, não pode ver estas
acções unicamente como uma busca natural da divindade; são a manifestação duma
vida teologal animada pela acção do Espírito Santo, que foi derramado em nossos
corações (cf. Rm 5, 5).
126.
Na piedade popular, por ser fruto do Evangelho inculturado, subjaz uma força
activamente evangelizadora que não podemos subestimar: seria ignorar a obra do
Espírito Santo. Ao contrário, somos chamados a encorajá-la e fortalecê-la para
aprofundar o processo de inculturação, que é uma realidade nunca acabada. As
expressões da piedade popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe
ler, são um lugar teológico a que devemos prestar atenção particularmente na
hora de pensar a nova evangelização.
De
pessoa a pessoa
127.
Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação missionária, há uma forma
de pregação que nos compete a todos como tarefa diária: é cada um levar o
Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos
desconhecidos. É a pregação informal que se pode realizar durante uma conversa,
e é também a que realiza um missionário quando visita um lar. Ser discípulo
significa ter a disposição permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e
isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho,
num caminho.
128.
Nesta pregação, sempre respeitosa e amável, o primeiro momento é um diálogo
pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e partilha as suas alegrias, as suas
esperanças, as preocupações com os seus entes queridos e muitas coisas que
enchem o coração. Só depois desta conversa é que se pode apresentar-lhe a
Palavra, seja pela leitura de algum versículo ou de modo narrativo, mas sempre
recordando o anúncio fundamental: o amor pessoal de Deus que Se fez homem,
entregou-Se a Si mesmo por nós e, vivo, oferece a sua salvação e a sua amizade.
É o anúncio que se partilha com uma atitude humilde e testemunhal de quem
sempre sabe aprender, com a consciência de que esta mensagem é tão rica e
profunda que sempre nos ultrapassa. Umas vezes exprime-se de maneira mais
directa, outras através dum testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou
outra forma que o próprio Espírito Santo possa suscitar numa circunstância
concreta. Se parecer prudente e houver condições, é bom que este encontro
fraterno e missionário conclua com uma breve oração que se relacione com as
preocupações que a pessoa manifestou. Assim ela sentirá mais claramente que foi
ouvida e interpretada, que a sua situação foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá
que a Palavra de Deus fala realmente à sua própria vida.
129.
Contudo não se deve pensar que o anúncio evangélico tenha de ser transmitido
sempre com determinadas fórmulas pré-estabelecidas ou com palavras concretas
que exprimam um conteúdo absolutamente invariável. Transmite-se com formas tão
diversas que seria impossível descrevê-las ou catalogá-las, e cujo sujeito
colectivo é o povo de Deus com seus gestos e sinais inumeráveis. Por
conseguinte, se o Evangelho se encarnou numa cultura, já não se comunica apenas
através do anúncio de pessoa a pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que, nos
países onde o cristianismo é minoria, para além de animar cada baptizado a
anunciar o Evangelho, as Igrejas particulares hão-de promover activamente
formas, pelo menos incipientes, de inculturação. Enfim, o que se deve procurar
é que a pregação do Evangelho, expressa com categorias próprias da cultura onde
é anunciado, provoque uma nova síntese com essa cultura. Embora estes processos
sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos demasiado. Se deixamos que as
dúvidas e os medos sufoquem toda a ousadia, é possível que, em vez de sermos
criativos, nos deixemos simplesmente ficar cómodos sem provocar qualquer avanço
e, neste caso, não seremos participantes dos processos históricos com a nossa
cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja.
Carismas
ao serviço da comunhão evangelizadora
130. O
Espírito Santo enriquece toda a Igreja evangelizadora também com diferentes
carismas. São dons para renovar e edificar a Igreja. Não se trata de um
património fechado, entregue a um grupo para que o guarde; mas são presentes do
Espírito integrados no corpo eclesial, atraídos para o centro que é Cristo,
donde são canalizados num impulso evangelizador. Um sinal claro da
autenticidade dum carisma é a sua eclesialidade, a sua capacidade de se
integrar harmoniosamente na vida do povo santo de Deus para o bem de todos. Uma
verdadeira novidade suscitada pelo Espírito não precisa de fazer sombra sobre
outras espiritualidades e dons para se afirmar a si mesma. Quanto mais um
carisma dirigir o seu olhar para o coração do Evangelho, tanto mais eclesial
será o seu exercício. É na comunhão, mesmo que seja fadigosa, que um carisma se
revela autêntica e misteriosamente fecundo. Se vive este desafio, a Igreja pode
ser um modelo para a paz no mundo.
131.
As diferenças entre as pessoas e as comunidades por vezes são incómodas, mas o
Espírito Santo, que suscita esta diversidade, de tudo pode tirar algo de bom e
transformá-lo em dinamismo evangelizador que actua por atracção. A diversidade
deve ser sempre conciliada com a ajuda do Espírito Santo; só Ele pode suscitar
a diversidade, a pluralidade, a multiplicidade e, ao mesmo tempo, realizar a
unidade. Ao invés, quando somos nós que pretendemos a diversidade e nos
fechamos em nossos particularismos, em nossos exclusivismos, provocamos a
divisão; e, por outro lado, quando somos nós que queremos construir a unidade
com os nossos planos humanos, acabamos por impor a uniformidade, a homologação.
Isto não ajuda a missão da Igreja.
Cultura,
pensamento e educação
132. O
anúncio às culturas implica também um anúncio às culturas profissionais,
científicas e académicas. É o encontro entre a fé, a razão e as ciências, que
visa desenvolver um novo discurso sobre a credibilidade, uma apologética
original que ajude a criar as predisposições para que o Evangelho seja escutado
por todos. Quando algumas categorias da razão e das ciências são acolhidas no
anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se instrumentos de evangelização; é
a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez assumido, não só é
redimido, mas torna-se instrumento do Espírito para iluminar e renovar o mundo.
133.
Uma vez que não basta a preocupação do evangelizador por chegar a cada pessoa,
mas o Evangelho também se anuncia às culturas no seu conjunto, a teologia – e
não só a teologia pastoral – em diálogo com outras ciências e experiências
humanas tem grande importância para pensar como fazer chegar a proposta do
Evangelho à variedade dos contextos culturais e dos destinatários. A Igreja,
comprometida na evangelização, aprecia e encoraja o carisma dos teólogos e o
seu esforço na investigação teológica, que promove o diálogo com o mundo da
cultura e da ciência. Faço apelo aos teólogos para que cumpram este serviço
como parte da missão salvífica da Igreja. Mas, para isso, é necessário que
tenham a peito a finalidade evangelizadora da Igreja e da própria teologia, e
não se contentem com uma teologia de gabinete.
134.
As universidades são um âmbito privilegiado para pensar e desenvolver este
compromisso de evangelização de modo interdisciplinar e inclusivo. As escolas
católicas, que sempre procuram conjugar a tarefa educacional com o anúncio
explícito do Evangelho, constituem uma contribuição muito válida para a
evangelização da cultura, mesmo em países e cidades onde uma situação adversa
nos incentiva a usar a nossa criatividade para se encontrar os caminhos
adequados.
2. A
homilia
135.
Consideremos agora a pregação dentro da Liturgia, que requer uma séria
avaliação por parte dos Pastores. Deter-me-ei particularmente, e até com certa
meticulosidade, na homilia e sua preparação, porque são muitas as reclamações
relacionadas com este ministério importante, e não podemos fechar os ouvidos. A
homilia é o ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de
encontro de um Pastor com o seu povo. De facto, sabemos que os fiéis lhe dão
muita importância; e, muitas vezes, tanto eles como os próprios ministros
ordenados sofrem: uns a ouvir e os outros a pregar. É triste que assim seja. A
homilia pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um
consolador encontro com a Palavra, uma fonte constante de renovação e
crescimento.
136.
Renovemos a nossa confiança na pregação, que se funda na convicção de que é
Deus que deseja alcançar os outros através do pregador e de que Ele mostra o
seu poder através da palavra humana. São Paulo fala vigorosamente sobre a
necessidade de pregar, porque o Senhor quis chegar aos outros por meio também
da nossa palavra (cf. Rm 10, 14-17). Com a palavra, Nosso Senhor conquistou o
coração da gente. De todas as partes, vinham para O ouvir (cf. Mc 1, 45).
Ficavam maravilhados, «bebendo» os seus ensinamentos (cf. Mc 6, 2). Sentiam que
lhes falava como quem tem autoridade (cf. Mc 1, 27). E os Apóstolos, que Jesus
estabelecera «para estarem com Ele e para os enviar a pregar» (Mc 3, 14),
atraíram para o seio da Igreja todos os povos com a palavra (cf. Mc 16, 15.20).
O
contexto litúrgico
137.
Agora é oportuno recordar que «a proclamação litúrgica da Palavra de Deus,
principalmente no contexto da assembleia eucarística, não é tanto um momento de
meditação e de catequese, como sobretudo o diálogo de Deus com o seu povo, no
qual se proclamam as maravilhas da salvação e se propõem continuamente as
exigências da Aliança». Reveste-se de um valor especial a homilia, derivado do
seu contexto eucarístico, que supera toda a catequese por ser o momento mais
alto do diálogo entre Deus e o seu povo, antes da comunhão sacramental. A
homilia é um retomar este diálogo que já está estabelecido entre o Senhor e o
seu povo. Aquele que prega deve conhecer o coração da sua comunidade para
identificar onde está vivo e ardente o desejo de Deus e também onde é que este
diálogo de amor foi sufocado ou não pôde dar fruto.
138. A
homilia não pode ser um espectáculo de divertimento, não corresponde à lógica
dos recursos mediáticos, mas deve dar fervor e significado à celebração. É um
género peculiar, já que se trata de uma pregação no quadro duma celebração
litúrgica; por conseguinte, deve ser breve e evitar que se pareça com uma
conferência ou uma lição. O pregador pode até ser capaz de manter vivo o
interesse das pessoas por uma hora, mas assim a sua palavra torna-se mais
importante que a celebração da fé. Se a homilia se prolonga demasiado, lesa
duas características da celebração litúrgica: a harmonia entre as suas partes e
o seu ritmo. Quando a pregação se realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se
como parte da oferenda que se entrega ao Pai e como mediação da graça que
Cristo derrama na celebração. Este mesmo contexto exige que a pregação oriente
a assembleia, e também o pregador, para uma comunhão com Cristo na Eucaristia,
que transforme a vida. Isto requer que a palavra do pregador não ocupe um lugar
excessivo, para que o Senhor brilhe mais que o ministro.
A
conversa da mãe
139.
Dissemos que o povo de Deus, pela acção constante do Espírito nele, se
evangeliza continuamente a si mesmo. Que implicações tem esta convicção para o
pregador? Lembra-nos que a Igreja é mãe e prega ao povo como uma mãe fala ao
seu filho, sabendo que o filho tem confiança de que tudo o que se lhe ensina é
para seu bem, porque se sente amado. Além disso, a boa mãe sabe reconhecer tudo
o que Deus semeou no seu filho, escuta as suas preocupações e aprende com ele.
O espírito de amor que reina numa família guia tanto a mãe como o filho nos
seus diálogos, nos quais se ensina e aprende, se corrige e valoriza o que é
bom; assim deve acontecer também na homilia. O Espírito que inspirou os
Evangelhos e actua no povo de Deus, inspira também como se deve escutar a fé do
povo e como se deve pregar em cada Eucaristia. Portanto a pregação cristã
encontra, no coração da cultura do povo, um manancial de água viva tanto para
saber o que se deve dizer como para encontrar o modo mais apropriado para o
dizer. Assim como todos gostamos que nos falem na nossa língua materna, assim
também, na fé, gostamos que nos falem em termos da «cultura materna», em termos
do idioma materno (cf. 2 Mac 7, 21.27), e o coração dispõe-se a ouvir melhor.
Esta linguagem é uma tonalidade que transmite coragem, inspiração, força,
impulso.
140.
Este âmbito materno-eclesial, onde se desenrola o diálogo do Senhor com o seu
povo, deve ser encarecido e cultivado através da proximidade cordial do
pregador, do tom caloroso da sua voz, da mansidão do estilo das suas frases, da
alegria dos seus gestos. Mesmo que às vezes a homilia seja um pouco maçante, se
houver este espírito materno-eclesial, será sempre fecunda, tal como os
conselhos maçantes duma mãe, com o passar do tempo, dão fruto no coração dos
filhos.
141.
Ficamos admirados com os recursos empregues pelo Senhor para dialogar com o seu
povo, revelar o seu mistério a todos, cativar a gente comum com ensinamentos
tão elevados e exigentes. Creio que o segredo de Jesus esteja escondido naquele
seu olhar o povo mais além das suas fraquezas e quedas: «Não temais, pequenino
rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino» (Lc 12, 32); Jesus prega
com este espírito. Transbordando de alegria no Espírito, bendiz o Pai por Lhe
atrair os pequeninos: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque
escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos
pequeninos» (Lc 10, 21). O Senhor compraz-Se verdadeiramente em dialogar com o
seu povo, e compete ao pregador fazer sentir este gosto do Senhor ao seu povo.
Palavras
que abrasam os corações
142.
Um diálogo é muito mais do que a comunicação duma verdade. Realiza-se pelo
prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica através das palavras entre
aqueles que se amam. É um bem que não consiste em coisas, mas nas próprias
pessoas que mutuamente se dão no diálogo. A pregação puramente moralista ou
doutrinadora e também a que se transforma numa lição de exegese reduzem esta
comunicação entre os corações que se verifica na homilia e que deve ter um
carácter quase sacramental: «A fé surge da pregação, e a pregação surge pela
palavra de Cristo» (Rm 10, 17). Na homilia, a verdade anda de mãos dadas com a
beleza e o bem. Não se trata de verdades abstractas ou de silogismos frios,
porque se comunica também a beleza das imagens que o Senhor utilizava para
incentivar a prática do bem. A memória do povo fiel, como a de Maria, deve
ficar transbordante das maravilhas de Deus. O seu coração, esperançado na
prática alegre e possível do amor que lhe foi anunciado, sente que toda a
palavra na Escritura, antes de ser exigência, é dom.
143. O
desafio duma pregação inculturada consiste em transmitir a síntese da mensagem evangélica,
e não ideias ou valores soltos. Onde está a tua síntese, ali está o teu
coração. A diferença entre fazer luz com sínteses e o fazê-lo com ideias soltas
é a mesma que há entre o ardor do coração e o tédio. O pregador tem a belíssima
e difícil missão de unir os corações que se amam: o do Senhor e os do seu povo.
O diálogo entre Deus e o seu povo reforça ainda mais a aliança entre ambos e
estreita o vínculo da caridade. Durante o tempo da homilia, os corações dos
crentes fazem silêncio e deixam-No falar a Ele. O Senhor e o seu povo falam-se
de mil e uma maneiras directamente, sem intermediários, mas, na homilia, querem
que alguém sirva de instrumento e exprima os sentimentos, de modo que, depois,
cada um possa escolher como continuar a sua conversa. A palavra é,
essencialmente, mediadora e necessita não só dos dois dialogantes mas também de
um pregador que a represente como tal, convencido de que «não nos pregamos a
nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor, e nos consideramos vossos servos, por
amor de Jesus» (2 Cor 4, 5).
144.
Falar com o coração implica mantê-lo não só ardente, mas também iluminado pela
integridade da Revelação e pelo caminho que essa Palavra percorreu no coração
da Igreja e do nosso povo fiel ao longo da sua história. A identidade cristã,
que é aquele abraço baptismal que o Pai nos deu em pequeninos, faz-nos anelar,
como filhos pródigos – e predilectos em Maria –, pelo outro abraço, o do Pai
misericordioso que nos espera na glória. Fazer com que o nosso povo se sinta,
de certo modo, no meio destes dois abraços é a tarefa difícil, mas bela, de
quem prega o Evangelho.
3. A
preparação da pregação
145. A
preparação da pregação é uma tarefa tão importante que convém dedicar-lhe um
tempo longo de estudo, oração, reflexão e criatividade pastoral. Com muita
amizade, quero deter-me a propor um itinerário de preparação da homilia.
Trata-se de indicações que, para alguns, poderão parecer óbvias, mas considero
oportuno sugeri-las para recordar a necessidade de dedicar um tempo
privilegiado a este precioso ministério. Alguns párocos sustentam
frequentemente que isto não é possível por causa de tantas incumbências que
devem desempenhar; todavia atrevo-me a pedir que todas as semanas se dedique a
esta tarefa um tempo pessoal e comunitário suficientemente longo, mesmo que se
tenha de dar menos tempo a outras tarefas também importantes. A confiança no
Espírito Santo que actua na pregação não é meramente passiva, mas activa e
criativa. Implica oferecer-se como instrumento (cf. Rm 12, 1), com todas as próprias
capacidades, para que possam ser utilizadas por Deus. Um pregador que não se
prepara não é «espiritual»: é desonesto e irresponsável quanto aos dons que
recebeu.
O
culto da verdade
146. O
primeiro passo, depois de invocar o Espírito Santo, é prestar toda a atenção ao
texto bíblico, que deve ser o fundamento da pregação. Quando alguém se detém
procurando compreender qual é a mensagem dum texto, exerce o «culto da
verdade». É a humildade do coração que reconhece que a Palavra sempre nos
transcende, que somos, «não os árbitros nem os proprietários, mas os
depositários, os arautos e os servidores». Esta atitude de humilde e
deslumbrada veneração da Palavra exprime-se detendo-se a estudá-la com o máximo
cuidado e com um santo temor de a manipular. Para se poder interpretar um texto
bíblico, faz falta paciência, pôr de parte toda a ansiedade e atribuir-lhe
tempo, interesse e dedicação gratuita. Há que pôr de lado qualquer preocupação
que nos inquiete, para entrar noutro âmbito de serena atenção. Não vale a pena
dedicar-se a ler um texto bíblico, se aquilo que se quer obter são resultados
rápidos, fáceis ou imediatos. Por isso, a preparação da pregação requer amor.
Uma pessoa só dedica um tempo gratuito e sem pressa às coisas ou às pessoas que
ama; e aqui trata-se de amar a Deus, que quis falar. A partir deste amor, uma
pessoa pode deter-se todo o tempo que for necessário, com a atitude dum
discípulo: «Fala, Senhor; o teu servo escuta» (1 Sam 3, 9).
147.
Em primeiro lugar, convém estarmos seguros de compreender adequadamente o
significado das palavras que lemos. Quero insistir em algo que parece evidente,
mas que nem sempre é tido em conta: o texto bíblico, que estudamos, tem dois ou
três mil anos, a sua linguagem é muito diferente da que usamos agora. Por mais
que nos pareça termos entendido as palavras, que estão traduzidas na nossa
língua, isso não significa que compreendemos correctamente tudo o que o
escritor sagrado queria exprimir. São conhecidos os vários recursos que
proporciona a análise literária: prestar atenção às palavras que se repetem ou
evidenciam, reconhecer a estrutura e o dinamismo próprio dum texto, considerar
o lugar que ocupam os personagens, etc. Mas o objectivo não é o de compreender
todos os pequenos detalhes dum texto; o mais importante é descobrir qual é a
mensagem principal, a mensagem que confere estrutura e unidade ao texto. Se o
pregador não faz este esforço, é possível que também a sua pregação não tenha
unidade nem ordem; o seu discurso será apenas uma súmula de várias ideias desarticuladas
que não conseguirão mobilizar os outros. A mensagem central é aquela que o
autor quis primariamente transmitir, o que implica identificar não só uma ideia
mas também o efeito que esse autor quis produzir. Se um texto foi escrito para
consolar, não deveria ser utilizado para corrigir erros; se foi escrito para
exortar, não deveria ser utilizado para instruir; se foi escrito para ensinar
algo sobre Deus, não deveria ser utilizado para explicar várias opiniões
teológicas; se foi escrito para levar ao louvor ou ao serviço missionário, não
o utilizemos para informar sobre as últimas notícias.
148. É
verdade que, para se entender adequadamente o sentido da mensagem central dum
texto, é preciso colocá-lo em ligação com o ensinamento da Bíblia inteira, transmitida
pela Igreja. Este é um princípio importante da interpretação bíblica, que tem
em conta que o Espírito Santo não inspirou só uma parte, mas a Bíblia inteira,
e que, nalgumas questões, o povo cresceu na sua compreensão da vontade de Deus
a partir da experiência vivida. Assim se evitam interpretações equivocadas ou
parciais, que contradizem outros ensinamentos da mesma Escritura. Mas isto não
significa enfraquecer a acentuação própria e específica do texto que se deve
pregar. Um dos defeitos duma pregação enfadonha e ineficaz é precisamente não
poder transmitir a força própria do texto que foi proclamado.
A
personalização da Palavra
149. O
pregador «deve ser o primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal
com a Palavra de Deus: não lhe basta conhecer o aspecto linguístico ou
exegético, sem dúvida necessário; precisa de se abeirar da Palavra com o
coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e
sentimentos e gere nele uma nova mentalidade». Faz-nos bem renovar, cada dia,
cada domingo, o nosso ardor na preparação da homilia, e verificar se, em nós
mesmos, cresce o amor pela Palavra que pregamos. É bom não esquecer que,
«particularmente, a maior ou menor santidade do ministro influi sobre o anúncio
da Palavra». Como diz São Paulo, «falamos, não para agradar aos homens, mas a
Deus que põe à prova os nossos corações» (1 Ts 2, 4). Se está vivo este desejo
de, primeiro, ouvirmos nós a Palavra que temos de pregar, esta transmitir-se-á
duma maneira ou doutra ao povo fiel de Deus: «A boca fala da abundância do
coração» (Mt 12, 34). As leituras do domingo ressoarão com todo o seu esplendor
no coração do povo, se primeiro ressoarem assim no coração do Pastor.
150.
Jesus irritava-Se com pretensiosos mestres, muito exigentes com os outros, que
ensinavam a Palavra de Deus mas não se deixavam iluminar por ela: «Atam fardos
pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não põem
nem um dedo para os deslocar» (Mt 23, 4). E o Apóstolo São Tiago exortava:
«Meus irmãos, não haja muitos entre vós que pretendam ser mestres, sabendo que
nós teremos um julgamento mais severo» (3, 1). Quem quiser pregar, deve
primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne na sua
vida concreta. Assim, a pregação consistirá na actividade tão intensa e fecunda
que é «comunicar aos outros o que foi contemplado». Por tudo isto, antes de
preparar concretamente o que vai dizer na pregação, o pregador tem que aceitar
ser primeiro trespassado por essa Palavra que há-de trespassar os outros,
porque é uma Palavra viva e eficaz, que, como uma espada, «penetra até à
divisão da alma e do corpo, das articulações e das medulas, e discerne os
sentimentos e intenções do coração» (Heb 4, 12). Isto tem um valor pastoral.
Mesmo nesta época, a gente prefere escutar as testemunhas: «Tem sede de
autenticidade (...), reclama evangelizadores que lhe falem de um Deus que eles
conheçam e lhes seja familiar como se eles vissem o invisível».
151.
Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar,
vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos
cair os braços. Indispensável é que o pregador esteja seguro de que Deus o ama,
de que Jesus Cristo o salvou, de que o seu amor tem sempre a última palavra. À
vista de tanta beleza, sentirá muitas vezes que a sua vida não lhe dá
plenamente glória e desejará sinceramente corresponder melhor a um amor tão
grande. Todavia, se não se detém com sincera abertura a escutar esta Palavra,
se não deixa que a mesma toque a sua vida, que o interpele, exorte, mobilize,
se não dedica tempo para rezar com esta Palavra, então na realidade será um
falso profeta, um embusteiro ou um charlatão vazio. Em todo o caso, desde que
reconheça a sua pobreza e deseje comprometer-se mais, sempre poderá dar Jesus
Cristo, dizendo como Pedro: «Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te
dou» (Act 3, 6). O Senhor quer servir-Se de nós como seres vivos, livres e
criativos, que se deixam penetrar pela sua Palavra antes de a transmitir; a sua
mensagem deve passar realmente através do pregador, e não só pela sua razão,
mas tomando posse de todo o seu ser. O Espírito Santo, que inspirou a Palavra,
é quem «hoje ainda, como nos inícios da Igreja, age em cada um dos
evangelizadores que se deixa possuir e conduzir por Ele, e põe na sua boca as
palavras que ele sozinho não poderia encontrar».
A
leitura espiritual
152.
Há uma modalidade concreta para escutarmos aquilo que o Senhor nos quer dizer
na sua Palavra e nos deixarmos transformar pelo Espírito: designamo-la por
«lectio divina». Consiste na leitura da Palavra de Deus num tempo de oração,
para lhe permitir que nos ilumine e renove. Esta leitura orante da Bíblia não
está separada do estudo que o pregador realiza para individuar a mensagem central
do texto; antes pelo contrário, é dela que deve partir para procurar descobrir
aquilo que essa mesma mensagem tem a dizer à sua própria vida. A leitura
espiritual dum texto deve partir do seu sentido literal. Caso contrário, uma
pessoa facilmente fará o texto dizer o que lhe convém, o que serve para
confirmar as suas próprias decisões, o que se adapta aos seus próprios esquemas
mentais. E isto seria, em última análise, usar o sagrado para proveito próprio
e passar esta confusão para o povo de Deus. Nunca devemos esquecer-nos de que,
por vezes, «também Satanás se disfarça em anjo de luz» (2 Cor 11, 14).
153.
Na presença de Deus, numa leitura tranquila do texto, é bom perguntar-se, por
exemplo: «Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis
mudar na minha vida? Que é que me dá fastídio neste texto? Porque é que isto
não me interessa?»; ou então: «De que gosto? Em que me estimula esta Palavra?
Que me atrai? E porque me atrai?». Quando se procura ouvir o Senhor, é normal
ter tentações. Uma delas é simplesmente sentir-se chateado e acabrunhado e dar
tudo por encerrado; outra tentação muito comum é começar a pensar naquilo que o
texto diz aos outros, para evitar de o aplicar à própria vida. Acontece também
começar a procurar desculpas, que nos permitam diluir a mensagem específica do
texto. Outras vezes pensamos que Deus nos exige uma decisão demasiado grande,
que ainda não estamos em condições de tomar. Isto leva muitas pessoas a
perderem a alegria do encontro com a Palavra, mas isso significaria esquecer
que ninguém é mais paciente do que Deus Pai, ninguém compreende e sabe esperar
como Ele. Deus convida sempre a dar um passo mais, mas não exige uma resposta
completa, se ainda não percorremos o caminho que a torna possível. Apenas quer que
olhemos com sinceridade a nossa vida e a apresentemos sem fingimento diante dos
seus olhos, que estejamos dispostos a continuar a crescer, e peçamos a Ele o
que ainda não podemos conseguir.
À
escuta do povo
154. O
pregador deve também pôr-se à escuta do povo, para descobrir aquilo que os
fiéis precisam de ouvir. Um pregador é um contemplativo da Palavra e também um
contemplativo do povo. Desta forma, descobre «as aspirações, as riquezas e as
limitações, as maneiras de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que
caracterizam este ou aquele aglomerado humano», prestando atenção «ao povo
concreto com os seus sinais e símbolos e respondendo aos problemas que
apresenta». Trata-se de relacionar a mensagem do texto bíblico com uma situação
humana, com algo que as pessoas vivem, com uma experiência que precisa da luz
da Palavra. Esta preocupação não é ditada por uma atitude oportunista ou
diplomática, mas é profundamente religiosa e pastoral. No fundo, é uma
«sensibilidade espiritual para saber ler nos acontecimentos a mensagem de
Deus», e isto é muito mais do que encontrar algo interessante para dizer.
Procura-se descobrir «o que o Senhor tem a dizer nessas circunstâncias». Então
a preparação da pregação transforma-se num exercício de discernimento
evangélico, no qual se procura reconhecer – à luz do Espírito – «um “apelo” que
Deus faz ressoar na própria situação histórica: também nele e através dele,
Deus chama o crente».
155.
Nesta busca, é possível recorrer apenas a alguma experiência humana frequente,
como, por exemplo, a alegria dum reencontro, as desilusões, o medo da solidão,
a compaixão pela dor alheia, a incerteza perante o futuro, a preocupação com um
ser querido, etc.; mas faz falta intensificar a sensibilidade para se
reconhecer o que isso realmente tem a ver com a vida das pessoas. Recordemos
que nunca se deve responder a perguntas que ninguém se põe, nem convém fazer a
crónica da actualidade para despertar interesse; para isso, já existem os
programas televisivos. Em todo o caso, é possível partir de algum facto para
que a Palavra possa repercutir fortemente no seu apelo à conversão, à adoração,
a atitudes concretas de fraternidade e serviço, etc., porque acontece, às
vezes, que algumas pessoas gostam de ouvir comentários sobre a realidade na
pregação, mas nem por isso se deixam interpelar pessoalmente.
Recursos
pedagógicos
156.
Alguns acreditam que podem ser bons pregadores por saber o que devem dizer, mas
descuidam o como, a forma concreta de desenvolver uma pregação. Zangam-se
quando os outros não os ouvem ou não os apreciam, mas talvez não se tenham
empenhado por encontrar a forma adequada de apresentar a mensagem. Lembremo-nos
de que «a evidente importância do conteúdo da evangelização não deve esconder a
importância dos métodos e dos meios da mesma evangelização». A preocupação com
a forma de pregar também é uma atitude profundamente espiritual. É responder ao
amor de Deus, entregando-nos com todas as nossas capacidades e criatividade à
missão que Ele nos confia; mas também é um exímio exercício de amor ao próximo,
porque não queremos oferecer aos outros algo de má qualidade. Na Bíblia, por
exemplo, aparece a recomendação para se preparar a pregação de modo a garantir
uma apropriada extensão: «Sê conciso no teu falar: muitas coisas em poucas
palavras» (Sir 32, 8).
157.
Apenas, para exemplificar, recordemos alguns recursos práticos que podem
enriquecer uma pregação e torná-la mais atraente. Um dos esforços mais
necessários é aprender a usar imagens na pregação, isto é, a falar por imagens.
Às vezes usam-se exemplos para tornar mais compreensível algo que se quer
explicar, mas estes exemplos frequentemente dirigem-se apenas ao entendimento,
enquanto as imagens ajudam a apreciar e acolher a mensagem que se quer
transmitir. Uma imagem fascinante faz com que se sinta a mensagem como algo
familiar, próximo, possível, relacionado com a própria vida. Uma imagem
apropriada pode levar a saborear a mensagem que se quer transmitir, desperta um
desejo e motiva a vontade na direcção do Evangelho. Uma boa homilia, como me
dizia um antigo professor, deve conter «uma ideia, um sentimento, uma imagem».
158.
Já dizia Paulo VI que os fiéis «esperam muito desta pregação e dela poderão
tirar fruto, contanto que ela seja simples, clara, directa, adaptada». A
simplicidade tem a ver com a linguagem utilizada. Deve ser linguagem que os
destinatários compreendam, para não correr o risco de falar ao vento. Acontece
frequentemente que os pregadores usam palavras que aprenderam nos seus estudos
e em certos ambientes, mas que não fazem parte da linguagem comum das pessoas
que os ouvem. Há palavras próprias da teologia ou da catequese, cujo
significado não é compreensível para a maioria dos cristãos. O maior risco dum
pregador é habituar-se à sua própria linguagem e pensar que todos os outros a
usam e compreendem espontaneamente. Se se quer adaptar à linguagem dos outros,
para poder chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar muito, é preciso
partilhar a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção. A simplicidade e
a clareza são duas coisas diferentes. A linguagem pode ser muito simples, mas
pouco clara a pregação. Pode-se tornar incompreensível pela desordem, pela sua
falta de lógica, ou porque trata vários temas ao mesmo tempo. Por isso, outro
cuidado necessário é procurar que a pregação tenha unidade temática, uma ordem
clara e ligação entre as frases, de modo que as pessoas possam facilmente
seguir o pregador e captar a lógica do que lhes diz.
159.
Outra característica é a linguagem positiva. Não diz tanto o que não se deve
fazer, como sobretudo propõe o que podemos fazer melhor. E, se aponta algo
negativo, sempre procura mostrar também um valor positivo que atraia, para não
se ficar pela queixa, o lamento, a crítica ou o remorso. Além disso, uma
pregação positiva oferece sempre esperança, orienta para o futuro, não nos
deixa prisioneiros da negatividade. Como é bom que sacerdotes, diáconos e
leigos se reúnam periodicamente para encontrarem, juntos, os recursos que
tornem mais atraente a pregação!
4. Uma
evangelização para o aprofundamento do querigma
160. O
mandato missionário do Senhor inclui o apelo ao crescimento da fé, quando diz:
«ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28, 20). Daqui se vê
claramente que o primeiro anúncio deve desencadear também um caminho de
formação e de amadurecimento. A evangelização procura também o crescimento, o
que implica tomar muito a sério em cada pessoa o projecto que Deus tem para
ela. Cada ser humano precisa sempre mais de Cristo, e a evangelização não
deveria deixar que alguém se contente com pouco, mas possa dizer com plena
verdade: «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gal 2, 20).
161.
Não seria correcto que este apelo ao crescimento fosse interpretado, exclusiva
ou prioritariamente, como formação doutrinal. Trata-se de «cumprir» aquilo que
o Senhor nos indicou como resposta ao seu amor, sobressaindo, junto com todas
as virtudes, aquele mandamento novo que é o primeiro, o maior, o que melhor nos
identifica como discípulos: «É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos
outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). É evidente que, quando os autores do Novo
Testamento querem reduzir a mensagem moral cristã a uma última síntese, ao mais
essencial, apresentam-nos a exigência irrenunciável do amor ao próximo: «Quem
ama o próximo cumpre plenamente a lei. (…) É no amor que está o pleno
cumprimento da lei» (Rm 13, 8.10). De igual modo, São Paulo, para quem o
mandamento do amor não só resume a lei mas constitui o centro e a razão de ser
da mesma: «Toda a lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu
próximo como a ti mesmo» (Gal 5, 14). E, às suas comunidades, apresenta a vida
cristã como um caminho de crescimento no amor: «O Senhor vos faça crescer e
superabundar de caridade uns para com os outros e para com todos» (1 Ts 3, 12).
Também São Tiago exorta os cristãos a cumprir «a lei do Reino, de acordo com a
Escritura: Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (2, 8), acabando por não citar
nenhum preceito.
162.
Entretanto, este caminho de resposta e crescimento aparece sempre precedido
pelo dom, porque o antecede aquele outro pedido do Senhor: «baptizando-os em
nome...» (Mt 28, 19). A adopção como filhos que o Pai oferece gratuitamente e a
iniciativa do dom da sua graça (cf. Ef 2, 8-9; 1 Cor 4, 7) são a condição que
torna possível esta santificação constante, que agrada a Deus e Lhe dá glória.
É deixar-se transformar em Cristo, vivendo progressivamente «de acordo com o
Espírito» (Rm 8, 5).
Uma
catequese querigmática e mistagógica
163. A
educação e a catequese estão ao serviço deste crescimento. Já temos à
disposição vários textos do Magistério e subsídios sobre a catequese,
preparados pela Santa Sé e por diversos episcopados. Lembro a Exortação
Apostólica Catechesi tradendae (1979), o Directório Geral para a Catequese (1997)
e outros documentos cujo conteúdo, sempre actual, não é necessário repetir
aqui. Queria deter-me apenas nalgumas considerações que me parece oportuno
evidenciar.
164.
Voltámos a descobrir que também na catequese tem um papel fundamental o
primeiro anúncio ou querigma, que deve ocupar o centro da actividade
evangelizadora e de toda a tentativa de renovação eclesial. O querigma é
trinitário. É o fogo do Espírito que se dá sob a forma de línguas e nos faz
crer em Jesus Cristo, que, com a sua morte e ressurreição, nos revela e
comunica a misericórdia infinita do Pai. Na boca do catequista, volta a ressoar
sempre o primeiro anúncio: «Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar,
e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar». Ao
designar-se como «primeiro» este anúncio, não significa que o mesmo se situa no
início e que, em seguida, se esquece ou substitui por outros conteúdos que o
superam; é o primeiro em sentido qualitativo, porque é o anúncio principal,
aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que
sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra, durante a catequese,
em todas as suas etapas e momentos. Por isso, também «o sacerdote, como a
Igreja, deve crescer na consciência da sua permanente necessidade de ser
evangelizado».
165.
Não se deve pensar que, na catequese, o querigma é deixado de lado em favor
duma formação supostamente mais «sólida». Nada há de mais sólido, mais
profundo, mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse anúncio. Toda a
formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma que se vai, cada
vez mais e melhor, fazendo carne, que nunca deixa de iluminar a tarefa
catequética, e permite compreender adequadamente o sentido de qualquer tema que
se desenvolve na catequese. É o anúncio que dá resposta ao anseio de infinito
que existe em todo o coração humano. A centralidade do querigma requer certas
características do anúncio que hoje são necessárias em toda a parte: que
exprima o amor salvífico de Deus como prévio à obrigação moral e religiosa, que
não imponha a verdade mas faça apelo à liberdade, que seja pautado pela
alegria, o estímulo, a vitalidade e uma integralidade harmoniosa que não reduza
a pregação a poucas doutrinas, por vezes mais filosóficas que evangélicas. Isto
exige do evangelizador certas atitudes que ajudam a acolher melhor o anúncio:
proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial que não
condena.
166.
Outra característica da catequese, que se desenvolveu nas últimas décadas, é a
iniciação mistagógica, que significa essencialmente duas coisas: a necessária
progressividade da experiência formativa na qual intervém toda a comunidade e
uma renovada valorização dos sinais litúrgicos da iniciação cristã. Muitos
manuais e planificações ainda não se deixaram interpelar pela necessidade duma
renovação mistagógica, que poderia assumir formas muito diferentes de acordo
com o discernimento de cada comunidade educativa. O encontro catequético é um
anúncio da Palavra e está centrado nela, mas precisa sempre duma ambientação
adequada e duma motivação atraente, do uso de símbolos eloquentes, da sua
inserção num amplo processo de crescimento e da integração de todas as
dimensões da pessoa num caminho comunitário de escuta e resposta.
167. É
bom que toda a catequese preste uma especial atenção à «via da beleza (via
pulchritudinis)». Anunciar Cristo significa mostrar que crer n’Ele e segui-Lo
não é algo apenas verdadeiro e justo, mas também belo, capaz de cumular a vida
dum novo esplendor e duma alegria profunda, mesmo no meio das provações. Nesta
perspectiva, todas as expressões de verdadeira beleza podem ser reconhecidas
como uma senda que ajuda a encontrar-se com o Senhor Jesus. Não se trata de
fomentar um relativismo estético, que pode obscurecer o vínculo indivisível
entre verdade, bondade e beleza, mas de recuperar a estima da beleza para poder
chegar ao coração do homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade do
Ressuscitado. Se nós, como diz Santo Agostinho, não amamos senão o que é belo,
o Filho feito homem, revelação da beleza infinita, é sumamente amável e
atrai-nos para Si com laços de amor. Por isso, torna-se necessário que a
formação na via pulchritudinis esteja inserida na transmissão da fé. É
desejável que cada Igreja particular incentive o uso das artes na sua obra
evangelizadora, em continuidade com a riqueza do passado, mas também na
vastidão das suas múltiplas expressões actuais, a fim de transmitir a fé numa
nova «linguagem parabólica». É preciso ter a coragem de encontrar os novos
sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as
diversas formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais,
incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco
significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se particularmente
atraentes para os outros.
168.
Relativamente à proposta moral da catequese, que convida a crescer na
fidelidade ao estilo de vida do Evangelho, é oportuno indicar sempre o bem
desejável, a proposta de vida, de maturidade, de realização, de fecundidade,
sob cuja luz se pode entender a nossa denúncia dos males que a podem
obscurecer. Mais do que como peritos em diagnósticos apocalípticos ou juízes
sombrios que se comprazem em detectar qualquer perigo ou desvio, é bom que nos
possam ver como mensageiros alegres de propostas altas, guardiões do bem e da
beleza que resplandecem numa vida fiel ao Evangelho.
O
acompanhamento pessoal dos processos de crescimento
169.
Numa civilização paradoxalmente ferida pelo anonimato e, simultaneamente,
obcecada com os detalhes da vida alheia, descaradamente doente de morbosa
curiosidade, a Igreja tem necessidade de um olhar solidário para contemplar,
comover-se e parar diante do outro, tantas vezes quantas forem necessárias.
Neste mundo, os ministros ordenados e os outros agentes de pastoral podem
tornar presente a fragrância da presença solidária de Jesus e o seu olhar
pessoal. A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e
leigos – nesta «arte do acompanhamento», para que todos aprendam a descalçar
sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar
ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e
cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer
na vida cristã.
170.
Embora possa soar óbvio, o acompanhamento espiritual deve conduzir cada vez
mais para Deus, em quem podemos alcançar a verdadeira liberdade. Alguns
crêem-se livres quando caminham à margem de Deus, sem se dar conta que ficam
existencialmente órfãos, desamparados, sem um lar para onde sempre possam
voltar. Deixam de ser peregrinos para se transformarem em errantes, que giram
indefinidamente ao redor de si mesmos, sem chegar a lado nenhum. O
acompanhamento seria contraproducente, caso se tornasse uma espécie de terapia
que incentive esta reclusão das pessoas na sua imanência e deixe de ser uma
peregrinação com Cristo para o Pai.
171.
Hoje mais do que nunca precisamos de homens e mulheres que conheçam, a partir da
sua experiência de acompanhamento, o modo de proceder onde reine a prudência, a
capacidade de compreensão, a arte de esperar, a docilidade ao Espírito, para no
meio de todos defender as ovelhas a nós confiadas dos lobos que tentam
desgarrar o rebanho. Precisamos de nos exercitar na arte de escutar, que é mais
do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração
que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro
espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra oportunos que
nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a partir desta escuta
respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento
genuíno, despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder
plenamente ao amor de Deus e o anelo de desenvolver o melhor de quanto Deus
semeou na nossa própria vida. Mas sempre com a paciência de quem está ciente
daquilo que ensinava São Tomás de Aquino: alguém pode ter a graça e a caridade,
mas não praticar bem nenhuma das virtudes «por causa de algumas inclinações
contrárias» que persistem. Por outras palavras, as virtudes organizam-se sempre
e necessariamente «in habitu», embora os condicionamentos possam dificultar as
operações desses hábitos virtuosos. Por isso, faz falta «uma pedagogia que
introduza a pessoa passo a passo até chegar à plena apropriação do mistério».
Para se chegar a um estado de maturidade, isto é, para que as pessoas sejam
capazes de decisões verdadeiramente livres e responsáveis, é preciso dar tempo
ao tempo, com uma paciência imensa. Como dizia o Beato Pedro Fabro: «O tempo é
o mensageiro de Deus».
172.
Quem acompanha sabe reconhecer que a situação de cada pessoa diante de Deus e a
sua vida em graça é um mistério que ninguém pode conhecer plenamente a partir
do exterior. O Evangelho propõe-nos que se corrija e ajude a crescer uma pessoa
a partir do reconhecimento da maldade objectiva das suas acções (cf. Mt 18,
15), mas sem proferir juízos sobre a sua responsabilidade e culpabilidade (cf.
Mt 7, 1; Lc 6, 37). Seja como for, um válido acompanhante não transige com os
fatalismos nem com a pusilanimidade. Sempre convida a querer curar-se, a pegar
no catre (cf. Mt 9, 6), a abraçar a cruz, a deixar tudo e partir sem cessar
para anunciar o Evangelho. A experiência pessoal de nos deixarmos acompanhar e
curar, conseguindo exprimir com plena sinceridade a nossa vida a quem nos
acompanha, ensina-nos a ser pacientes e compreensivos com os outros e
habilita-nos a encontrar as formas para despertar neles a confiança, a abertura
e a vontade de crescer.
173. O
acompanhamento espiritual autêntico começa sempre e prossegue no âmbito do
serviço à missão evangelizadora. A relação de Paulo com Timóteo e Tito é
exemplo deste acompanhamento e desta formação durante a acção apostólica. Ao
mesmo tempo que lhes confia a missão de permanecer numa cidade concreta para
«acabar de organizar o que ainda falta» (Tt 1, 5; cf. 1 Tm 1, 3-5), dá-lhes os
critérios para a vida pessoal e a actividade pastoral. Isto é claramente distinto
de todo o tipo de acompanhamento intimista, de auto-realização isolada. Os
discípulos missionários acompanham discípulos missionários.
Ao
redor da Palavra de Deus
174.
Não é só a homilia que se deve alimentar da Palavra de Deus. Toda a evangelização
está fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e
testemunhada. A Sagrada Escritura é fonte da evangelização. Por isso, é preciso
formar-se continuamente na escuta da Palavra. A Igreja não evangeliza, se não
se deixa continuamente evangelizar. É indispensável que a Palavra de Deus «se
torne cada vez mais o coração de toda a actividade eclesial». A Palavra de Deus
ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia, alimenta e reforça interiormente
os cristãos e torna-os capazes de um autêntico testemunho evangélico na vida
diária. Superámos já a velha contraposição entre Palavra e Sacramento: a
Palavra proclamada, viva e eficaz, prepara a recepção do Sacramento e, no
Sacramento, essa Palavra alcança a sua máxima eficácia.
175. O
estudo da Sagrada Escritura deve ser uma porta aberta para todos os crentes. É
fundamental que a Palavra revelada fecunde radicalmente a catequese e todos os
esforços para transmitir a fé. A evangelização requer a familiaridade com a
Palavra de Deus, e isto exige que as dioceses, paróquias e todos os grupos
católicos proponham um estudo sério e perseverante da Bíblia e promovam
igualmente a sua leitura orante pessoal e comunitária. Nós não procuramos Deus
tacteando, nem precisamos de esperar que Ele nos dirija a palavra, porque
realmente «Deus falou, já não é o grande desconhecido, mas mostrou-Se a Si
mesmo». Acolhamos o tesouro sublime da Palavra revelada!
Capítulo IV
A
DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
176.
Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo. «Nenhuma definição
parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica, complexa e
dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até
mesmo de a mutilar». Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas
com a dimensão social da evangelização, precisamente porque, se esta dimensão
não for devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o
sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.
1. As
repercussões comunitárias e sociais do querigma
177. O
querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do
Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo
do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a
caridade.
Confissão
da fé e compromisso social
178.
Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano implica descobrir que
«assim lhe confere uma dignidade infinita». Confessar que o Filho de Deus
assumiu a nossa carne humana significa que cada pessoa humana foi elevada até ao
próprio coração de Deus. Confessar que Jesus deu o seu sangue por nós
impede-nos de ter qualquer dúvida acerca do amor sem limites que enobrece todo
o ser humano. A sua redenção tem um sentido social, porque «Deus, em Cristo,
não redime somente a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os
homens». Confessar que o Espírito Santo actua em todos implica reconhecer que
Ele procura permear toda a situação humana e todos os vínculos sociais: «O
Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe
prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas mais complexas e
impenetráveis». A evangelização procura colaborar também com esta acção
libertadora do Espírito. O próprio mistério da Trindade nos recorda que somos
criados à imagem desta comunhão divina, pelo que não podemos realizar-nos nem
salvar-nos sozinhos. A partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão
íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que se deve
necessariamente exprimir e desenvolver em toda a acção evangelizadora. A
aceitação do primeiro anúncio, que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo
com o amor que Ele mesmo nos comunica, provoca na vida da pessoa e nas suas
acções uma primeira e fundamental reacção: desejar, procurar e ter a peito o
bem dos outros.
179.
Este laço indissolúvel entre a recepção do anúncio salvífico e um efectivo amor
fraterno exprime-se nalguns textos da Escritura, que convém considerar e
meditar atentamente para tirar deles todas as consequências. É uma mensagem a
que frequentemente nos habituamos e repetimos quase mecanicamente, mas sem nos
assegurarmos de que tenha real incidência na nossa vida e nas nossas
comunidades. Como é perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva a
perder a maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da
fraternidade e da justiça! A Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o
prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós: «Sempre que
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes»
(Mt 25, 40). O que fizermos aos outros, tem uma dimensão transcendente: «Com a
medida com que medirdes, assim sereis medidos» (Mt 7, 2); e corresponde à
misericórdia divina para connosco: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é
misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis
condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado (...). A medida
que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6, 36-38). Nestes textos,
exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio para o irmão», como um
dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a norma moral e como o
sinal mais claro para discernir sobre o caminho de crescimento espiritual em
resposta à doação absolutamente gratuita de Deus. Por isso mesmo, «também o
serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e expressão
irrenunciável da sua própria essência». Assim como a Igreja é missionária por
natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza a caridade efectiva para com
o próximo, a compaixão que compreende, assiste e promove.
O
Reino que nos chama
180.
Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não
consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também
não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a
favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma «caridade
por receita», uma série de acções destinadas apenas a tranquilizar a própria
consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a
Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a
vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade
para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a
provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o
Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6,
33). O projecto de Jesus é instaurar o Reino de seu Pai; por isso, pede aos
seus discípulos: «Proclamai que o Reino do Céu está perto» (Mt 10, 7).
181. O
Reino, que se antecipa e cresce entre nós, abrange tudo, como nos recorda
aquele princípio de discernimento que Paulo VI propunha a propósito do
verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens e o homem todo». Sabemos que «a
evangelização não seria completa, se ela não tomasse em consideração a
interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida
concreta, pessoal e social, dos homens». É o critério da universalidade,
próprio da dinâmica do Evangelho, dado que o Pai quer que todos os homens se
salvem; e o seu plano de salvação consiste em «submeter tudo a Cristo, reunindo
n’Ele o que há no céu e na terra» (Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo mundo
inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura» (Mc 16, 15), porque toda «a
criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos
de Deus» (Rm 8, 19). Toda a criação significa também todos os aspectos da vida
humana, de tal modo que «a missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem
destinação universal. Seu mandato de caridade alcança todas as dimensões da
existência, todas as pessoas, todos os ambientes da convivência e todos os
povos. Nada do humano pode lhe parecer estranho». A verdadeira esperança
cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história.
A
doutrina da Igreja sobre as questões sociais
182.
Os ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes estão sujeitos a
maiores ou novos desenvolvimentos e podem ser objecto de discussão, mas não
podemos evitar de ser concretos – sem pretender entrar em detalhes – para que
os grandes princípios sociais não fiquem meras generalidades que não interpelam
ninguém. É preciso tirar as suas consequências práticas, para que «possam
incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas». Os Pastores,
acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de exprimir
opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado que a
tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser
humano. Já não se pode afirmar que a religião deve limitar-se ao âmbito privado
e serve apenas para preparar as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a
felicidade dos seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à
plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para nosso usufruto» (1 Tm
6, 17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a conversão cristã
exige rever «especialmente tudo o que diz respeito à ordem social e consecução
do bem comum».
183.
Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a
intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e
nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil,
sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem
ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e
da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que
nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar
o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa
passagem por ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e
amamos a humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os
seus anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a
nossa casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e
construtivo, orienta uma acção transformadora e, neste sentido, não deixa de
ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao
mesmo tempo, «une o próprio empenho ao esforço em campo social das demais
Igrejas e Comunidades eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
184.
Aqui não é o momento para explanar todas as graves questões sociais que afectam
o mundo actual, algumas das quais já comentei no terceiro capítulo. Este não é
um documento social e, para nos ajudar a reflectir sobre estes vários temas,
temos um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social da
Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo. Além disso, nem o Papa nem a
Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da
apresentação de soluções para os problemas contemporâneos. Posso repetir aqui o
que indicava, com grande lucidez, Paulo VI: «Perante situações, assim tão
diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como
o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição
nossa, nem mesmo a nossa missão. É às comunidades cristãs que cabe analisarem,
com objectividade, a situação própria do seu país».
185.
Em seguida, procurarei concentrar-me sobre duas grandes questões que me parecem
fundamentais neste momento da história. Desenvolvê-las-ei com uma certa
amplitude, porque considero que irão determinar o futuro da humanidade. A
primeira é a inclusão social dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do
diálogo social.
2. A
inclusão social dos pobres
186.
Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres
e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais
abandonados da sociedade.
Unidos
a Deus, ouvimos um clamor
187.
Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao
serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se
plenamente na sociedade; isto supõe estar docilmente atentos, para ouvir o
clamor do pobre e socorrê-lo. Basta percorrer as Escrituras, para descobrir
como o Pai bom quer ouvir o clamor dos pobres: «Eu bem vi a opressão do meu
povo que está no Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspectores;
conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de os libertar (...). E
agora, vai; Eu te envio...» (Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se solícito com as
suas necessidades: «Os filhos de Israel clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor
enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar surdo a este clamor, quando somos os
instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos fora da vontade do Pai e do
seu projecto, porque esse pobre «clamaria ao Senhor contra ti, e aquilo
tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15, 9). E a falta de solidariedade, nas
suas necessidades, influi directamente sobre a nossa relação com Deus: «Se te
amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a sua oração» (Sir
4, 6). Sempre retorna a antiga pergunta: «Se alguém possuir bens deste mundo e,
vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor
de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17). Lembremos também com quanta
convicção o Apóstolo São Tiago retomava a imagem do clamor dos oprimidos:
«Olhai que o salário que não pagastes, aos trabalhadores que ceifaram os vossos
campos, está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do
Senhor do universo» (5, 4).
188. A
Igreja reconheceu que a exigência de ouvir este clamor deriva da própria obra
libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma missão
reservada apenas a alguns: «A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo
amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas as
suas forças». Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus
discípulos: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37), que envolve tanto a
cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o
desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples e diários de
solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos. Embora um
pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra «solidariedade»
significa muito mais do que alguns actos esporádicos de generosidade; supõe a
criação duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade
da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns.
189. A
solidariedade é uma reacção espontânea de quem reconhece a função social da
propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à
propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e
aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade
deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde.
Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem
caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança
nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas
mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e
ineficazes.
190.
Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da
terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas
também no respeito pelo direito dos povos». Lamentavelmente, até os direitos
humanos podem ser usados como justificação para uma defesa exacerbada dos
direitos individuais ou dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando a
independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o
planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade, e que o simples facto
de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não
justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que «os
mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem
colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros». Para
falarmos adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar e
abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras regiões do próprio
país. Precisamos de crescer numa solidariedade que «permita a todos os povos
tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada homem é chamado a
desenvolver-se».
191.
Animados pelos seus Pastores, os cristãos são chamados, em todo o lugar e
circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se expressaram os Bispos
do Brasil: «Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as
angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das
periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde
– lesadas em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e
conhecendo o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe
alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e
da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício».
192.
Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de
garantir a comida ou um decoroso «sustento» para todos, mas «prosperidade e
civilização em seus múltiplos aspectos». Isto engloba educação, acesso aos
cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho livre,
criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a
dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros
bens que estão destinados ao uso comum.
Fidelidade
ao Evangelho, para não correr em vão
193.
Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em nós, quando no
mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do sofrimento alheio. Voltemos
a ler alguns ensinamentos da Palavra de Deus sobre a misericórdia, para que
ressoem vigorosamente na vida da Igreja. O Evangelho proclama: «Felizes os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). O Apóstolo São
Tiago ensina que a misericórdia para com os outros permite-nos sair triunfantes
no juízo divino: «Falai e procedei como pessoas que hão-de ser julgadas segundo
a lei da liberdade. Porque, quem não pratica a misericórdia, será julgado sem
misericórdia. Mas a misericórdia não teme o julgamento» (2, 12-13). Neste
texto, São Tiago aparece-nos como herdeiro do que tinha de mais rico a
espiritualidade judaica do pós-exílio, a qual atribuía um especial valor
salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado pela justiça, e as tuas
iniquidades, pela piedade para com os infelizes; talvez isto consiga prolongar
a tua prosperidade» (Dn 4, 24). Nesta mesma perspectiva, a literatura
sapiencial fala da esmola como exercício concreto da misericórdia para com os
necessitados: «A esmola livra da morte e limpa de todo o pecado» (Tb 12, 9). E
de forma ainda mais sensível se exprime Ben-Sirá: «A água apaga o fogo ardente,
e a esmola expia o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma síntese no Novo
Testamento: «Mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a
multidão dos pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou profundamente a mentalidade
dos Padres da Igreja, tendo exercido uma resistência profética como alternativa
cultural face ao individualismo hedonista pagão. Recordemos apenas um exemplo:
«Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar
(...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha,
irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma
obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que
nos é oferecida e na qual podemos extinguir o incêndio».
194. É
uma mensagem tão clara, tão directa, tão simples e eloquente que nenhuma
hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar. A reflexão da Igreja sobre
estes textos não deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas antes
ajudar a assumi-los com coragem e ardor. Para quê complicar o que é tão
simples? As elaborações conceptuais hão-de favorecer o contacto com a realidade
que pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale sobretudo para as
exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação, ao amor fraterno, ao
serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre. Jesus
ensinou-nos este caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras e com
os seus gestos. Para quê ofuscar o que é tão claro? Não nos preocupemos só com
não cair em erros doutrinais, mas também com ser fiéis a este caminho luminoso
de vida e sabedoria. Porque «é frequente dirigir aos defensores da “ortodoxia”
a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a
situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas
situações».
195.
Quando São Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém para discernir «se estava
a correr ou tinha corrido em vão» (Gal 2, 2), o critério-chave de autenticidade
que lhe indicaram foi que não se esquecesse dos pobres (cf. Gal 2, 10). Este
critério importante para que as comunidades paulinas não se deixassem arrastar
pelo estilo de vida individualista dos pagãos, tem uma grande actualidade no
contexto actual em que tende a desenvolver-se um novo paganismo individualista.
A própria beleza do Evangelho nem sempre a conseguimos manifestar
adequadamente, mas há um sinal que nunca deve faltar: a opção pelos últimos,
por aqueles que a sociedade descarta e lança fora.
196.
Às vezes somos duros de coração e de mente, esquecemo-nos, entretemo-nos,
extasiamo-nos com as imensas possibilidades de consumo e de distracção que esta
sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de alienação que nos afecta a
todos, pois «alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social,
de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a
constituição dessa solidariedade inter-humana».
O
lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus
197.
No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele
mesmo «Se fez pobre» (2 Cor 8, 9). Todo o caminho da nossa redenção está
assinalado pelos pobres. Esta salvação veio a nós, através do «sim» duma jovem
humilde, duma pequena povoação perdida na periferia dum grande império. O
Salvador nasceu num presépio, entre animais, como sucedia com os filhos dos
mais pobres; foi apresentado no Templo, juntamente com dois pombinhos, a oferta
de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc 2, 24; Lv 5, 7);
cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou com suas mãos para ganhar
o pão. Quando começou a anunciar o Reino, seguiam-No multidões de deserdados,
pondo assim em evidência o que Ele mesmo dissera: «O Espírito do Senhor está
sobre Mim, porque Me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18). A
quantos sentiam o peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza, assegurou que
Deus os tinha no âmago do seu coração: «Felizes vós, os pobres, porque vosso é
o Reino de Deus» (Lc 6, 20); e com eles Se identificou: «Tive fome e destes-Me
de comer», ensinando que a misericórdia para com eles é a chave do Céu (cf. Mt
25, 34-40).
198.
Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que
cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus «manifesta a sua
misericórdia antes de mais» a eles. Esta preferência divina tem consequências
na vida de fé de todos os cristãos, chamados a possuírem «os mesmos sentimentos
que estão em Cristo Jesus» (Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência, a Igreja
fez uma opção pelos pobres, entendida como uma «forma especial de primado na
prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja». Como
ensinava Bento XVI, esta opção «está implícita na fé cristológica naquele Deus
que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza». Por isso,
desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além
de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo
sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova
evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a
colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo
neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus
amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que
Deus nos quer comunicar através deles.
199. O
nosso compromisso não consiste exclusivamente em acções ou em programas de
promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento não é um excesso
de activismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro «considerando-o
como um só consigo mesmo». Esta atenção amiga é o início duma verdadeira
preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar efectivamente o
seu bem. Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo
de ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é
sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou
vaidade, mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência: «Do amor,
pelo qual uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça».
Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor», e isto diferencia a
autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de
utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a
partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los
adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os
pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este
estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino?» Sem a opção
preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a
primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se
naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicação diariamente nos
apresenta».
200.
Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja Católica, desejo
afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de
cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à
fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade,
a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum
caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos
pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada
e prioritária.
201.
Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque as suas opções de
vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa
frequente nos ambientes académicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo
eclesiais. Embora se possa dizer, em geral, que a vocação e a missão próprias
dos fiéis leigos é a transformação das diversas realidades terrenas para que
toda a actividade humana seja transformada pelo Evangelho, ninguém pode
sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social: «A
conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela
justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são exigidos a
todos». Temo que também estas palavras sejam objecto apenas de alguns
comentários, sem verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho confiança
na abertura e nas boas disposições dos cristãos e peço-vos que procureis,
comunitariamente, novos caminhos para acolher esta renovada proposta.
Economia
e distribuição das entradas
202. A
necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e
não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a
sociedade, mas também para a curar duma mazela que a torna frágil e indigna e
que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de assistência, que acorrem a
determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas
provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos
pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação
financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se
resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A
desigualdade é a raiz dos males sociais.
203. A
dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam
estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices
adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem
programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram
molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale
de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta
que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade
dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da
justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objecto duma
manipulação oportunista que as desonra. A cómoda indiferença diante destas
questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado. A
vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um
sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum
com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis
a todos.
204.
Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O
crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o
pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente
orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de
oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o
mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a
economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando
se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando
assim novos excluídos.
205.
Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico
diálogo que vise efectivamente sanar as raízes profundas e não a aparência dos
males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma
das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum. Temos de nos
convencer que a caridade «é o princípio não só das micro-relações estabelecidas
entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações como
relacionamentos sociais, económicos, políticos». Rezo ao Senhor para que nos
conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo,
a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder financeiro
levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho
digno, instrução e cuidados sanitários para todos os cidadãos. E porque não
acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos? Estou convencido de que,
a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma nova
mentalidade política e económica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta
entre a economia e o bem comum social.
206. A
economia – como indica o próprio termo – deveria ser a arte de alcançar uma
adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo o acto
económico duma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do planeta,
repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem duma
responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar
soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo que a
política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos
alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história,
de um modo mais eficiente de interacção que, sem prejuízo da soberania das
nações, assegure o bem-estar económico a todos os países e não apenas a alguns.
207. E
qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila
sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres
vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua
dissolução, mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente
acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas
religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios.
208.
Se alguém se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as exprimo com
estima e com a melhor das intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou
ideologia política. A minha palavra não é a dum inimigo nem a dum opositor. A
mim interessa-me apenas procurar que, quantos vivem escravizados por uma
mentalidade individualista, indiferente e egoísta, possam libertar-se dessas cadeias
indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre,
mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra.
Cuidar
da fragilidade
209.
Jesus, o evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa, identificou-Se
especialmente com os mais pequeninos (cf. Mt 25, 40). Isto recorda-nos, a todos
os cristãos, que somos chamados a cuidar dos mais frágeis da Terra. Mas, no
modelo «do êxito» e «individualista» em vigor, parece que não faz sentido
investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na
vida.
210.
Embora aparentemente não nos traga benefícios tangíveis e imediatos, é
indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as novas formas de pobreza e
fragilidade, nas quais somos chamados a reconhecer Cristo sofredor: os sem
abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos cada
vez mais sós e abandonados, etc. Os migrantes representam um desafio especial
para mim, por ser Pastor duma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos.
Por isso, exorto os países a uma abertura generosa, que, em vez de temer a
destruição da identidade local, seja capaz de criar novas sínteses culturais.
Como são belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que
são diferentes, fazendo desta integração um novo factor de progresso! Como são
encantadoras as cidades que, já no seu projecto arquitectónico, estão cheias de
espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!
211.
Sempre me angustiou a situação das pessoas que são objecto das diferentes
formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito de Deus, perguntando a
todos nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Onde está o teu irmão escravo?
Onde está o irmão que estás matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na
rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem
de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos de
distraídos! Há muita cumplicidade... A pergunta é para todos! Nas nossas
cidades, está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos
cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade.
212.
Duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão,
maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de
defender os seus direitos. E todavia, também entre elas, encontramos
continuamente os mais admiráveis gestos de heroísmo quotidiano na defesa e
cuidado da fragilidade das suas famílias.
213.
Entre estes seres frágeis, de que a Igreja quer cuidar com predilecção, estão
também os nascituros, os mais inermes e inocentes de todos, a quem hoje se quer
negar a dignidade humana para poder fazer deles o que apetece, tirando-lhes a
vida e promovendo legislações para que ninguém o possa impedir. Muitas vezes,
para ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida dos nascituros,
procura-se apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista e
conservadora; e no entanto esta defesa da vida nascente está intimamente ligada
à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é
sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu
desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras
dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos sólidos e
permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre sujeitos às
conveniências contingentes dos poderosos de turno. Por si só a razão é
suficiente para se reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas,
se a olhamos também a partir da fé, «toda a violação da dignidade pessoal do
ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do
homem».
214. E
precisamente porque é uma questão que mexe com a coerência interna da nossa
mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve esperar que a Igreja
altere a sua posição sobre esta questão. A propósito, quero ser completamente
honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou «modernizações».
Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida
humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar
adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o
aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias,
particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado duma
violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender
estas situações de tamanho sofrimento?
215.
Há outros seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à mercê dos
interesses económicos ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da
criação. Nós, os seres humanos, não somos meramente beneficiários, mas
guardiões das outras criaturas. Pela nossa realidade corpórea, Deus uniu-nos
tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como
uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se
fosse uma mutilação. Não deixemos que, à nossa passagem, fiquem sinais de
destruição e de morte que afectem a nossa vida e a das gerações futuras. Neste
sentido, faço meu o expressivo e profético lamento que, já há vários anos,
formularam os Bispos das Filipinas: «Uma incrível variedade de insectos vivia
no bosque; e estavam ocupados com todo o tipo de tarefas. (...) Os pássaros voavam
pelo ar, as suas penas brilhantes e os seus variados gorjeios acrescentavam cor
e melodia ao verde dos bosques. (...) Deus quis que esta terra fosse para nós,
suas criaturas especiais, mas não para a podermos destruir ou transformar num
baldio. (...) Depois de uma única noite de chuva, observa os rios de
castanho-chocolate da tua localidade e lembra-te que estão a arrastar o sangue
vivo da terra para o mar. (...) Como poderão os peixes nadar em esgotos como o
rio Pasig e muitos outros rios que poluímos? Quem transformou o maravilhoso
mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»
216.
Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós,
cristãos, somos chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que
vivemos.
3. O
bem comum e a paz social
217.
Falámos muito sobre a alegria e o amor, mas a Palavra de Deus menciona também o
fruto da paz (cf. Gal 5, 22).
218. A
paz social não pode ser entendida como irenismo ou como mera ausência de
violência obtida pela imposição de uma parte sobre as outras. Também seria uma
paz falsa aquela que servisse como desculpa para justificar uma organização
social que silencie ou tranquilize os mais pobres, de modo que aqueles que
gozam dos maiores benefícios possam manter o seu estilo de vida sem
sobressaltos, enquanto os outros sobrevivem como podem. As reivindicações
sociais, que têm a ver com a distribuição das entradas, a inclusão social dos
pobres e os direitos humanos não podem ser sufocados com o pretexto de construir
um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz. A
dignidade da pessoa humana e o bem comum estão por cima da tranquilidade de
alguns que não querem renunciar aos seus privilégios. Quando estes valores são
afectados, é necessária uma voz profética.
219. E
a paz também «não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre
precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca duma ordem querida por
Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens». Enfim, uma paz
que não surja como fruto do desenvolvimento integral de todos, não terá futuro
e será sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência.
220.
Em cada nação, os habitantes desenvolvem a dimensão social da sua vida,
configurando-se como cidadãos responsáveis dentro de um povo e não como massa
arrastada pelas forças dominantes. Lembremo-nos que «ser cidadão fiel é uma
virtude, e a participação na vida política é uma obrigação moral». Mas,
tornar-se um povo é algo mais, exigindo um processo constante no qual cada nova
geração está envolvida. É um trabalho lento e árduo que exige querer
integrar-se e aprender a fazê-lo até se desenvolver uma cultura do encontro
numa harmonia pluriforme.
221.
Para avançar nesta construção de um povo em paz, justiça e fraternidade, há
quatro princípios relacionados com tensões bipolares próprias de toda a
realidade social. Derivam dos grandes postulados da Doutrina Social da Igreja,
que constituem o «primeiro e fundamental parâmetro de referência para a
interpretação e o exame dos fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora
propor estes quatro princípios que orientam especificamente o desenvolvimento
da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se
harmonizam dentro de um projecto comum. Faço-o na convicção de que a sua
aplicação pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no
mundo inteiro.
O
tempo é superior ao espaço
222.
Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a
vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O
«tempo», considerado em sentido amplo, faz referimento à plenitude como
expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é expressão do
limite que se vive num espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a
conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos
abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro princípio
para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao espaço.
223.
Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados
imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as
mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a
tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que,
às vezes, se nota na actividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder
em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder
como loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de
todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e
pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar
processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e
transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás.
Trata-se de privilegiar as acções que geram novos dinamismos na sociedade e
comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificar em
acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras
e tenazes.
224.
Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo actual, se
preocupam realmente mais com gerar processos que construam um povo do que com
obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e
efémeros, mas que não constroem a plenitude humana. A história julgá-los-á
talvez com aquele critério enunciado por Romano Guardini: «O único padrão para
avaliar justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve
e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana, de
acordo com o carácter peculiar e as possibilidades da dita época».
225.
Este critério é muito apropriado também para a evangelização, que exige ter
presente o horizonte, adoptar os processos possíveis e a estrada longa. O
próprio Senhor, na sua vida mortal, deu a entender várias vezes aos seus
discípulos que havia coisas que ainda não podiam compreender e era necessário
esperar o Espírito Santo (cf. Jo 16, 12-13). A parábola do trigo e do joio (cf.
Mt 13, 24-30) descreve um aspecto importante de evangelização que consiste em
mostrar como o inimigo pode ocupar o espaço do Reino e causar dano com o joio,
mas é vencido pela bondade do trigo que se manifesta com o tempo.
A
unidade prevalece sobre o conflito
226. O
conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser aceitado. Mas, se
ficamos encurralados nele, perdemos a perspectiva, os horizontes reduzem-se e a
própria realidade fica fragmentada. Quando paramos na conjuntura conflitual,
perdemos o sentido da unidade profunda da realidade.
227.
Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam adiante como se nada
fosse, lavam-se as mãos para poder continuar com a sua vida. Outros entram de
tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o horizonte, projectam
nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade
torna-se impossível. Mas há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar o
conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de
ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9)!
228.
Deste modo, torna-se possível desenvolver uma comunhão nas diferenças, que pode
ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a
superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade mais profunda.
Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável para construir
a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida
no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de
construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os
opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é
apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num
plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades
em contraste.
229.
Este critério evangélico recorda-nos que Cristo tudo unificou em Si: céu e
terra, Deus e homem, tempo e eternidade, carne e espírito, pessoa e sociedade.
O sinal distintivo desta unidade e reconciliação de tudo n’Ele é a paz. Cristo
«é a nossa paz» (Ef 2, 14). O anúncio do Evangelho começa sempre com a saudação
de paz; e a paz coroa e cimenta em cada momento as relações entre os discípulos.
A paz é possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente
conflitualidade, «pacificando pelo sangue da sua cruz» (Col 1, 20). Entretanto,
se examinarmos a fundo estes textos bíblicos, descobriremos que o primeiro
âmbito onde somos chamados a conquistar esta pacificação nas diferenças é a
própria interioridade, a própria vida sempre ameaçada pela dispersão
dialéctica. Com corações despedaçados em milhares de fragmentos, será difícil
construir uma verdadeira paz social.
230. O
anúncio de paz não é a proclamação duma paz negociada, mas a convicção de que a
unidade do Espírito harmoniza todas as diversidades. Supera qualquer conflito
numa nova e promissora síntese. A diversidade é bela, quando aceita entrar
constantemente num processo de reconciliação até selar uma espécie de pacto
cultural que faça surgir uma «diversidade reconciliada», como justamente
ensinaram os Bispos da República Democrática do Congo: «A diversidade das
nossas etnias é uma riqueza. (…) Só com a unidade, a conversão dos corações e a
reconciliação é que poderemos fazer avançar o nosso país».
A
realidade é mais importante do que a ideia
231.
Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade
simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um
diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É
perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que
postular um terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe
evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os
totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos mais
formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem
bondade, os intelectualismos sem sabedoria.
232. A
ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da captação, compreensão e
condução da realidade. A ideia desligada da realidade dá origem a idealismos e
nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam ou definem, mas não
empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio. É preciso
passar do nominalismo formal à objectividade harmoniosa. Caso contrário,
manipula-se a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela
cosmética. Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam por
que motivo o povo não os compreende nem segue, se as suas propostas são tão
lógicas e claras. Possivelmente é porque se instalaram no reino das puras
ideias e reduziram a política ou a fé à retórica; outros esqueceram a
simplicidade e importaram de fora uma racionalidade alheia à gente.
233. A
realidade é superior à ideia. Este critério está ligado à encarnação da Palavra
e ao seu cumprimento: «Reconheceis que o espírito é de Deus por isto: todo o
espírito que confessa Jesus Cristo que veio em carne mortal é de Deus». (1 Jo
4, 2). O critério da realidade, duma Palavra já encarnada e sempre procurando
encarnar-se, é essencial à evangelização. Por um lado, leva-nos a valorizar a
história da Igreja como história de salvação, a recordar os nossos Santos que
inculturaram o Evangelho na vida dos nossos povos, a recolher a rica tradição
bimilenária da Igreja, sem pretender elaborar um pensamento desligado deste
tesouro como se quiséssemos inventar o Evangelho. Por outro lado, este critério
impele-nos a pôr em prática a Palavra, a realizar obras de justiça e caridade
nas quais se torne fecunda esta Palavra. Não pôr em prática, não levar à
realidade a Palavra é construir sobre a areia, permanecer na pura ideia e
degenerar em intimismos e gnosticismos que não dão fruto, que esterilizam o seu
dinamismo.
O todo
é superior à parte
234.
Entre a globalização e a localização também se gera uma tensão. É preciso
prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade.
Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar
com os pés por terra. As duas coisas unidas impedem de cair em algum destes
dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo abstracto e
globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os fogos de
artifício do mundo, que é de outros, com a boca aberta e aplausos programados;
o outro extremo é que se transformem num museu folclórico de eremitas
localistas, condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de se
deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha
fora das suas fronteiras.
235. O
todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas.
Portanto, não se deve viver demasiado obcecados por questões limitadas e
particulares. É preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que
trará benefícios a todos nós. Mas há que o fazer sem se evadir nem se
desenraizar. É necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do
próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está
próximo, mas com uma perspectiva mais ampla. Da mesma forma, uma pessoa que
conserva a sua peculiaridade pessoal e não esconde a sua identidade, quando se
integra cordialmente numa comunidade não se aniquila, mas recebe sempre novos
estímulos para o seu próprio desenvolvimento. Não é a esfera global que
aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.
236.
Aqui o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes e, nela, cada ponto
é equidistante do centro, não havendo diferenças entre um ponto e o outro. O
modelo é o poliedro, que reflecte a confluência de todas as partes que nele
mantêm a sua originalidade. Tanto a acção pastoral como a acção política
procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os pobres com a
sua cultura, os seus projectos e as suas próprias potencialidades. Até mesmo as
pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não
se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a sua
própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um
bem comum que verdadeiramente incorpore a todos.
237. A
nós, cristãos, este princípio fala-nos também da totalidade ou integridade do
Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a pregar. A sua riqueza plena
incorpora académicos e operários, empresários e artistas, incorpora todos. A
«mística popular» acolhe, a seu modo, o Evangelho inteiro e encarna-o em
expressões de oração, de fraternidade, de justiça, de luta e de festa. A Boa
Nova é a alegria dum Pai que não quer que se perca nenhum dos seus pequeninos.
Assim nasce a alegria no Bom Pastor que encontra a ovelha perdida e a reintegra
no seu rebanho. O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e cidade que
brilha no cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho possui um
critério de totalidade que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa Nova enquanto
não for anunciado a todos, enquanto não fecundar e curar todas as dimensões do
homem, enquanto não unir todos os homens à volta da mesa do Reino. O todo é
superior à parte.
4. O
diálogo social como contribuição para a paz
238. A
evangelização implica também um caminho de diálogo. Neste momento, existem
sobretudo três campos de diálogo onde a Igreja deve estar presente, cumprindo
um serviço a favor do pleno desenvolvimento do ser humano e procurando o bem
comum: o diálogo com os Estados, com a sociedade – que inclui o diálogo com as
culturas e as ciências – e com os outros crentes que não fazem parte da Igreja
Católica. Em todos os casos, «a Igreja fala a partir da luz que a fé lhe dá»,
oferece a sua experiência de dois mil anos e conserva sempre na memória as
vidas e sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão humana, mas
também tem um significado que pode enriquecer a quantos não crêem e convida a
razão a alargar as suas perspectivas.
239. A
Igreja proclama o «evangelho da paz» (Ef 6, 15) e está aberta à colaboração com
todas as autoridades nacionais e internacionais para cuidar deste bem universal
tão grande. Ao anunciar Jesus Cristo, que é a paz em pessoa (cf. Ef 2, 14), a
nova evangelização incentiva todo o baptizado a ser instrumento de pacificação
e testemunha credível duma vida reconciliada. É hora de saber como projectar,
numa cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de
consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa,
capaz de memória e sem exclusões. O autor principal, o sujeito histórico deste
processo, é a gente e a sua cultura, não uma classe, uma fracção, um grupo, uma
elite. Não precisamos de um projecto de poucos para poucos, ou de uma minoria
esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento colectivo. Trata-se
de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural.
240. O
cuidado e a promoção do bem comum da sociedade compete ao Estado. Este, com
base nos princípios de subsidiariedade e solidariedade e com um grande esforço
de diálogo político e criação de consensos, desempenha um papel fundamental –
que não pode ser delegado – na busca do desenvolvimento integral de todos. Este
papel exige, nas circunstâncias actuais, uma profunda humildade social.
241.
No diálogo com o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem soluções para todas
as questões específicas. Mas, juntamente com as várias forças sociais,
acompanha as propostas que melhor correspondam à dignidade da pessoa humana e
ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe sempre com clareza os valores fundamentais da
existência humana, para transmitir convicções que possam depois traduzir-se em
acções políticas.
O
diálogo entre a fé, a razão e as ciências
242. O
diálogo entre ciência e fé também faz parte da acção evangelizadora que
favorece a paz. O cientificismo e o positivismo recusam-se a «admitir, como
válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das
ciências positivas». A Igreja propõe outro caminho, que exige uma síntese entre
um uso responsável das metodologias próprias das ciências empíricas e os outros
saberes como a filosofia, a teologia, e a própria fé que eleva o ser humano até
ao mistério que transcende a natureza e a inteligência humana. A fé não tem
medo da razão; pelo contrário, procura-a e tem confiança nela, porque «a luz da
razão e a luz da fé provêm ambas de Deus», e não se podem contradizer entre si.
A evangelização está atenta aos progressos científicos para os iluminar com a
luz da fé e da lei natural, tendo em vista procurar que sempre respeitem a
centralidade e o valor supremo da pessoa humana em todas as fases da sua
existência. Toda a sociedade pode ser enriquecida através deste diálogo que
abre novos horizontes ao pensamento e amplia as possibilidades da razão. Também
este é um caminho de harmonia e pacificação.
243. A
Igreja não pretende deter o progresso admirável das ciências. Pelo contrário,
alegra-se e inclusivamente desfruta reconhecendo o enorme potencial que Deus
deu à mente humana. Quando o progresso das ciências, mantendo-se com rigor
académico no campo do seu objecto específico, torna evidente uma determinada
conclusão que a razão não pode negar, a fé não a contradiz. Nem os crentes
podem pretender que uma opinião científica que lhes agrada – e que nem sequer
foi suficientemente comprovada – adquira o peso dum dogma de fé. Em certas
ocasiões, porém, alguns cientistas vão mais além do objecto formal da sua
disciplina e exageram com afirmações ou conclusões que extravasam o campo da
própria ciência. Neste caso, não é a razão que se propõe, mas uma determinada
ideologia que fecha o caminho a um diálogo autêntico, pacífico e frutuoso.
O
diálogo ecuménico
244. O
compromisso ecuménico corresponde à oração do Senhor Jesus pedindo «que todos
sejam um só» (Jo 17, 21). A credibilidade do anúncio cristão seria muito maior,
se os cristãos superassem as suas divisões e a Igreja realizasse «a plenitude
da catolicidade que lhe é própria naqueles filhos que, embora incorporados pelo
Baptismo, estão separados da sua plena comunhão». Devemos sempre lembrar-nos de
que somos peregrinos, e peregrinamos juntos. Para isso, devemos abrir o coração
ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças, e olhar primariamente
para o que procuramos: a paz no rosto do único Deus. O abrir-se ao outro tem
algo de artesanal, a paz é artesanal. Jesus disse-nos: «Felizes os
pacificadores» (Mt 5, 9). Neste esforço, mesmo entre nós, cumpre-se a antiga
profecia: «Transformarão as suas espadas em relhas de arado» (Is 2, 4).
245.
Sob esta luz, o ecumenismo é uma contribuição para a unidade da família humana.
A presença no Sínodo do Patriarca de Constantinopla, Sua Santidade Bartolomeu
I, e do Arcebispo de Cantuária, Sua Graça Rowan Douglas Williams, foi um
verdadeiro dom de Deus e um precioso testemunho cristão.
246.
Dada a gravidade do contra-testemunho da divisão entre cristãos, sobretudo na
Ásia e na África, torna-se urgente a busca de caminhos de unidade. Os
missionários, nesses continentes, referem repetidamente as críticas, queixas e
sarcasmos que recebem por causa do escândalo dos cristãos divididos. Se nos
concentrarmos nas convicções que nos unem e recordarmos o princípio da
hierarquia das verdades, poderemos caminhar decididamente para formas comuns de
anúncio, de serviço e de testemunho. A imensa multidão que não recebeu o
anúncio de Jesus Cristo não pode deixar-nos indiferentes. Por isso, o esforço
por uma unidade que facilite a recepção de Jesus Cristo deixa de ser mera
diplomacia ou um dever forçado para se transformar num caminho imprescindível
da evangelização. Os sinais de divisão entre cristãos, em países que já estão
dilacerados pela violência, juntam outros motivos de conflito vindos da parte
de quem deveria ser um activo fermento de paz. São tantas e tão valiosas as
coisas que nos unem! E, se realmente acreditamos na acção livre e generosa do
Espírito, quantas coisas podemos aprender uns dos outros! Não se trata apenas
de receber informações sobre os outros para os conhecermos melhor, mas de
recolher o que o Espírito semeou neles como um dom também para nós. Só para dar
um exemplo, no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a
possibilidade de aprender algo mais sobre o significado da colegialidade
episcopal e sobre a sua experiência da sinodalidade. Através dum intercâmbio de
dons, o Espírito pode conduzir-nos cada vez mais para a verdade e o bem.
As
relações com o Judaísmo
247.
Um olhar muito especial é dirigido ao povo judeu, cuja Aliança com Deus nunca
foi revogada, porque «os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis» (Rm 11,
29). A Igreja, que partilha com o Judaísmo uma parte importante das Escrituras
Sagradas, considera o povo da Aliança e a sua fé como uma raiz sagrada da
própria identidade cristã (cf. Rm 11, 16-18). Como cristãos, não podemos
considerar o Judaísmo como uma religião alheia, nem incluímos os judeus entre
quantos são chamados a deixar os ídolos para se converter ao verdadeiro Deus
(cf. 1 Ts 1, 9). Juntamente com eles, acreditamos no único Deus que actua na
história, e acolhemos, com eles, a Palavra
revelada comum.
248. O
diálogo e a amizade com os filhos de Israel fazem parte da vida dos discípulos
de Jesus. O afecto que se desenvolveu leva-nos a lamentar, sincera e
amargamente, as terríveis perseguições de que foram e são objecto,
particularmente aquelas que envolvem ou envolveram cristãos.
249.
Deus continua a operar no povo da Primeira Aliança e faz nascer tesouros de
sabedoria que brotam do seu encontro com a Palavra divina. Por isso, a Igreja
também se enriquece quando recolhe os valores do Judaísmo. Embora algumas
convicções cristãs sejam inaceitáveis para o Judaísmo e a Igreja não possa
deixar de anunciar Jesus como Senhor e Messias, há uma rica complementaridade
que nos permite ler juntos os textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos mutuamente
a desentranhar as riquezas da Palavra, bem como compartilhar muitas convicções
éticas e a preocupação comum pela justiça e o desenvolvimento dos povos.
O
diálogo inter-religioso
250.
Uma atitude de abertura na verdade e no amor deve caracterizar o diálogo com os
crentes das religiões não-cristãs, apesar dos vários obstáculos e dificuldades,
de modo particular os fundamentalismos de ambos os lados. Este diálogo
inter-religioso é uma condição necessária para a paz no mundo e, por
conseguinte, é um dever para os cristãos e também para outras comunidades
religiosas. Este diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana
ou simplesmente – como propõem os Bispos da Índia – «estar aberto a eles,
compartilhando as suas alegrias e penas». Assim aprendemos a aceitar os outros,
na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método,
poderemos assumir juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá
tornar-se um critério básico de todo o intercâmbio. Um diálogo, no qual se
procurem a paz e a justiça social, é em si mesmo, para além do aspecto
meramente pragmático, um compromisso ético que cria novas condições sociais. Os
esforços à volta dum tema específico podem transformar-se num processo em que,
através da escuta do outro, ambas as partes encontram purificação e
enriquecimento. Portanto, estes esforços também podem ter o significado de amor
à verdade.
251.
Neste diálogo, sempre amável e cordial, nunca se deve descuidar o vínculo
essencial entre diálogo e anúncio, que leva a Igreja a manter e intensificar as
relações com os não-cristãos. Um sincretismo conciliador seria, no fundo, um
totalitarismo de quantos pretendem conciliar prescindindo de valores que os
transcendem e dos quais não são donos. A verdadeira abertura implica
conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma identidade
clara e feliz, mas «disponível para compreender as do outro» e «sabendo que o
diálogo pode enriquecer a ambos». Não nos serve uma abertura diplomática que
diga sim a tudo para evitar problemas, porque seria um modo de enganar o outro
e negar-lhe o bem que se recebeu como um dom para partilhar com generosidade.
Longe de se contraporem, a evangelização e o diálogo inter-religioso apoiam-se
e alimentam-se reciprocamente.
252.
Neste tempo, adquire grande importância a relação com os crentes do Islão, hoje
particularmente presentes em muitos países de tradição cristã, onde podem
celebrar livremente o seu culto e viver integrados na sociedade. Não se deve
jamais esquecer que eles «professam seguir a fé de Abraão, e connosco adoram o
Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia». Os
escritos sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos cristãos; Jesus
Cristo e Maria são objecto de profunda veneração e é admirável ver como jovens
e idosos, mulheres e homens do Islão são capazes de dedicar diariamente tempo à
oração e participar fielmente nos seus ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos
deles têm uma profunda convicção de que a própria vida, na sua totalidade, é de
Deus e para Deus. Reconhecem também a necessidade de Lhe responder com um
compromisso ético e com a misericórdia para com os mais pobres.
253.
Para sustentar o diálogo com o Islão é indispensável a adequada formação dos
interlocutores, não só para que estejam sólida e jubilosamente radicados na sua
identidade, mas também para que sejam capazes de reconhecer os valores dos
outros, compreender as preocupações que subjazem às suas reivindicações e fazer
aparecer as convicções comuns. Nós, cristãos, deveríamos acolher com afecto e
respeito os imigrantes do Islão que chegam aos nossos países, tal como
esperamos e pedimos para ser acolhidos e respeitados nos países de tradição
islâmica. Rogo, imploro humildemente a esses países que assegurem liberdade aos
cristãos para poderem celebrar o seu culto e viver a sua fé, tendo em conta a
liberdade que os crentes do Islão gozam nos países ocidentais. Frente a
episódios de fundamentalismo violento que nos preocupam, o afecto pelos
verdadeiros crentes do Islão deve levar-nos a evitar odiosas generalizações,
porque o verdadeiro Islão e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a
toda a violência.
254.
Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem, por gratuita iniciativa divina,
viver «justificados por meio da graça de Deus» e, assim, «associados ao
mistério pascal de Jesus Cristo». Devido, porém, à dimensão sacramental da
graça santificante, a acção divina neles tende a produzir sinais, ritos,
expressões sagradas que, por sua vez, envolvem outros numa experiência
comunitária do caminho para Deus. Não têm o significado e a eficácia dos
Sacramentos instituídos por Cristo, mas podem ser canais que o próprio Espírito
suscita para libertar os não-cristãos do imanentismo ateu ou de experiências
religiosas meramente individuais. O mesmo Espírito suscita por toda a parte
diferentes formas de sabedoria prática que ajudam a suportar as carências da
vida e a viver com mais paz e harmonia. Nós, cristãos, podemos tirar proveito
também desta riqueza consolidada ao longo dos séculos, que nos pode ajudar a
viver melhor as nossas próprias convicções.
O
diálogo social num contexto de liberdade religiosa
255.
Os Padres sinodais lembraram a importância do respeito pela liberdade
religiosa, considerada um direito humano fundamental. Inclui «a liberdade de
escolher a religião que se crê ser verdadeira e de manifestar publicamente a
própria crença». Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que
pensam diferente e os valorizem como tais, não implica uma privatização das
religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio e à obscuridade da
consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado das igrejas,
sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em definitivo, de uma nova forma de
discriminação e autoritarismo. O respeito devido às minorias de agnósticos ou
de não-crentes não se deve impor de maneira arbitrária que silencie as
convicções de maiorias crentes ou ignore a riqueza das tradições religiosas. No
fundo, isso fomentaria mais o ressentimento do que a tolerância e a paz.
256.
Ao questionar-se sobre a incidência pública da religião, é preciso distinguir
diferentes modos de a viver. Tanto os intelectuais como os jornalistas caem,
frequentemente, em generalizações grosseiras e pouco académicas, quando falam
dos defeitos das religiões e, muitas vezes, não são capazes de distinguir que
nem todos os crentes – nem todos os líderes religiosos – são iguais. Alguns
políticos aproveitam esta confusão para justificar acções discriminatórias.
Outras vezes, desprezam-se os escritos que surgiram no âmbito duma convicção
crente, esquecendo que os textos religiosos clássicos podem oferecer um
significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre
novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade.
São desprezados pela miopia dos racionalismos. Será razoável e inteligente
relegá-los para a obscuridade, só porque nasceram no contexto duma crença
religiosa? Contêm princípios profundamente humanistas que possuem um valor
racional, apesar de estarem permeados de símbolos e doutrinas religiosos.
257.
Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles que, não se reconhecendo
parte de qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente a verdade, a bondade
e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a sua fonte em Deus.
Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade
humana, na construção duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da
criação. Um espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos, como o «Átrio dos
Gentios», onde «crentes e não-crentes podem dialogar sobre os temas
fundamentais da ética, da arte e da ciência, e sobre a busca da
transcendência». Também este é um caminho de paz para o nosso mundo ferido.
258. A
partir de alguns temas sociais, importantes para o futuro da humanidade,
procurei explicitar uma vez mais a incontornável dimensão social do anúncio do Evangelho,
para encorajar todos os cristãos a manifestá-la sempre nas suas palavras,
atitudes e acções.
Capítulo V
EVANGELIZADORES
COM ESPÍRITO
259.
Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que se abrem sem medo à
acção do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito faz os Apóstolos saírem de
si mesmos e transforma-os em anunciadores das maravilhas de Deus, que cada um
começa a entender na própria língua. Além disso, o Espírito Santo infunde a
força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia (parresia), em voz alta
e em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo hoje, bem
apoiados na oração, sem a qual toda a acção corre o risco de ficar vã e o
anúncio, no fim de contas, carece de alma. Jesus quer evangelizadores que anunciem
a Boa Nova, não só com palavras mas sobretudo com uma vida transfigurada pela
presença de Deus.
260.
Neste último capítulo, não vou oferecer uma síntese da espiritualidade cristã,
nem desenvolverei grandes temas como a oração, a adoração eucarística ou a
celebração da fé, sobre os quais já possuímos preciosos textos do Magistério e
escritos célebres de grandes autores. Não pretendo substituir nem superar tanta
riqueza. Limitar-me-ei simplesmente a propor algumas reflexões acerca do
espírito da nova evangelização.
261.
Quando se diz de uma realidade que tem «espírito», indica-se habitualmente uma
moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à acção pessoal e
comunitária. Uma evangelização com espírito é muito diferente de um conjunto de
tarefas vividas como uma obrigação pesada, que quase não se tolera ou se
suporta como algo que contradiz as nossas próprias inclinações e desejos. Como
gostaria de encontrar palavras para encorajar uma estação evangelizadora mais
ardorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de amor até ao fim e feita de vida
contagiante! Mas sei que nenhuma motivação será suficiente, se não arde nos
corações o fogo do Espírito. Em suma, uma evangelização com espírito é uma
evangelização com o Espírito Santo, já que Ele é a alma da Igreja
evangelizadora. Antes de propor algumas motivações e sugestões espirituais,
invoco uma vez mais o Espírito Santo; peço-Lhe que venha renovar, sacudir,
impelir a Igreja numa decidida saída para fora de si mesma a fim de evangelizar
todos os povos.
1. Motivações
para um renovado impulso missionário
262.
Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que rezam e trabalham.
Do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas
desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e
acções sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração.
Estas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm
força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho. É preciso cultivar sempre
um espaço interior que dê sentido cristão ao compromisso e à actividade. Sem
momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a Palavra, de diálogo
sincero com o Senhor, as tarefas facilmente se esvaziam de significado,
quebrantamo-nos com o cansaço e as dificuldades, e o ardor apaga-se. A Igreja
não pode dispensar o pulmão da oração, e alegra-me imenso que se multipliquem,
em todas as instituições eclesiais, os grupos de oração, de intercessão, de
leitura orante da Palavra, as adorações perpétuas da Eucaristia. Ao mesmo
tempo, «há que rejeitar a tentação duma espiritualidade intimista e
individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com
a lógica da encarnação». Há o risco de que alguns momentos de oração se tornem uma
desculpa para evitar de dedicar a vida à missão, porque a privatização do
estilo de vida pode levar os cristãos a refugiarem-se nalguma falsa
espiritualidade.
263. É
salutar recordar-se dos primeiros cristãos e de tantos irmãos ao longo da
história que se mantiveram transbordantes de alegria, cheios de coragem,
incansáveis no anúncio e capazes de uma grande resistência activa. Há quem se
console, dizendo que hoje é mais difícil; temos, porém, de reconhecer que o
contexto do Império Romano não era favorável ao anúncio do Evangelho, nem à
luta pela justiça, nem à defesa da dignidade humana. Em cada momento da
história, estão presentes a fraqueza humana, a busca doentia de si mesmo, a
comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos ameaça a todos. Isto está
sempre presente, sob uma roupagem ou outra; deriva mais da limitação humana que
das circunstâncias. Por isso, não digamos que hoje é mais difícil; é diferente.
Em vez disso, aprendamos com os Santos que nos precederam e enfrentaram as
dificuldades próprias do seu tempo. Com esta finalidade, proponho-vos que nos
detenhamos a recuperar algumas motivações que nos ajudem a imitá-los nos nossos
dias.
O
encontro pessoal com o amor de Jesus que nos salva
264. A
primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela
experiência de sermos salvos por Ele que nos impele a amá-Lo cada vez mais. Com
efeito, um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de a
apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria? Se não sentimos o desejo
intenso de comunicar Jesus, precisamos de nos deter em oração para Lhe pedir
que volte a cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir a sua graça
para que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial.
Colocados diante d’Ele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe,
reconhecemos aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus Se
fez presente e lhe disse: «Eu vi-te, quando estavas debaixo da figueira!» (Jo
1, 48). Como é doce permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do
Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos seus
olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie
para comunicar a sua vida nova! Sucede então que, em última análise, «o que nós
vimos e ouvimos, isso anunciamos» (1 Jo 1, 3). A melhor motivação para se
decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor, é deter-se nas suas
páginas e lê-lo com o coração. Se o abordamos desta maneira, a sua beleza
deslumbra-nos, volta a cativar-nos vezes sem conta. Por isso, é urgente
recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir, cada dia, que
somos depositários dum bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova. Não
há nada de melhor para transmitir aos outros.
265.
Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua
coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total
dedicação, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal. Todas as vezes que
alguém volta a descobri-lo, convence-se de que é isso mesmo o que os outros
precisam, embora não o saibam: «Aquele que venerais sem O conhecer, é Esse que
eu vos anuncio» (Act 17, 23). Às vezes perdemos o entusiasmo pela missão,
porque esquecemos que o Evangelho dá resposta às necessidades mais profundas
das pessoas, porque todos fomos criados para aquilo que o Evangelho nos propõe:
a amizade com Jesus e o amor fraterno. Quando se consegue exprimir, de forma
adequada e bela, o conteúdo essencial do Evangelho, de certeza que essa
mensagem fala aos anseios mais profundos do coração: «O missionário está
convencido de que existe já, nas pessoas e nos povos, pela acção do Espírito,
uma ânsia – mesmo se inconsciente – de conhecer a verdade acerca de Deus, do
homem, do caminho que conduz à liberação do pecado e da morte. O entusiasmo
posto no anúncio de Cristo deriva da convicção de responder a tal ânsia».
O
entusiasmo na evangelização funda-se nesta convicção. Temos à disposição um
tesouro de vida e de amor que não pode enganar, a mensagem que não pode
manipular nem desiludir. É uma resposta que desce ao mais fundo do ser humano e
pode sustentá-lo e elevá-lo. É a verdade que não passa de moda, porque é capaz
de penetrar onde nada mais pode chegar. A nossa tristeza infinita só se cura com
um amor infinito.
266.
Esta convicção, porém, é sustentada com a experiência pessoal, constantemente
renovada, de saborear a sua amizade e a sua mensagem. Não se pode perseverar
numa evangelização cheia de ardor, se não se está convencido, por experiência
própria, que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não O conhecer, não é a
mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tacteando, não é a mesma coisa poder
escutá-Lo ou ignorar a sua Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo,
adorá-Lo, descansar n’Ele ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar
construir o mundo com o seu Evangelho em vez de o fazer unicamente com a
própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito mais plena e,
com Ele, é mais fácil encontrar o sentido para cada coisa. É por isso que
evangelizamos. O verdadeiro missionário, que não deixa jamais de ser discípulo,
sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com
ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não
O descobre presente no coração mesmo da entrega missionária, depressa perde o
entusiasmo e deixa de estar seguro do que transmite, faltam-lhe força e paixão.
E uma pessoa que não está convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não
convence ninguém.
267.
Unidos a Jesus, procuramos o que Ele procura, amamos o que Ele ama. Em última
instância, o que procuramos é a glória do Pai, vivemos e agimos «para que seja
prestado louvor à glória da sua graça» (Ef 1, 6). Se queremos entregar-nos a
sério e com perseverança, esta motivação deve superar toda e qualquer outra. O
movente definitivo, o mais profundo, o maior, a razão e o sentido último de
tudo o resto é este: a glória do Pai que Jesus procurou durante toda a sua
existência. Ele é o Filho eternamente feliz, com todo o seu ser «no seio do
Pai» (Jo 1, 18). Se somos missionários, antes de tudo é porque Jesus nos disse:
«A glória do meu Pai [consiste] em que deis muito fruto» (Jo 15, 8).
Independentemente de que nos convenha, interesse, aproveite ou não, para além
dos estreitos limites dos nossos desejos, da nossa compreensão e das nossas
motivações, evangelizamos para a maior glória do Pai que nos ama.
O
prazer espiritual de ser povo
268. A
Palavra de Deus convida-nos também a reconhecer que somos povo: «Vós que
outrora não éreis um povo, agora sois povo de Deus» (1 Pd 2, 10). Para ser
evangelizadores com espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual
de estar próximo da vida das pessoas, até chegar a descobrir que isto se torna
fonte duma alegria superior. A missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente
uma paixão pelo seu povo. Quando paramos diante de Jesus crucificado,
reconhecemos todo o seu amor que nos dignifica e sustenta, mas lá também, se
não formos cegos, começamos a perceber que este olhar de Jesus se alonga e
dirige, cheio de afecto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos novamente
que Ele quer servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo
amado. Toma-nos do meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa identidade
não se compreende sem esta pertença.
269. O
próprio Jesus é o modelo desta opção evangelizadora que nos introduz no coração
do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto de todos! Se falava com alguém, fitava os
seus olhos com uma profunda solicitude cheia de amor: «Jesus, fitando nele o
olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível ao encontro,
quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10, 46-52) e quando come e
bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16), sem Se importar que O chamem de glutão e
beberrão (cf. Mt 11, 19). Vemo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta
ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando recebe, de noite, Nicodemos (cf.
Jo 3, 1-21). A entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que
marcou toda a sua vida. Fascinados por este modelo, queremos inserir-nos a
fundo na sociedade, partilhamos a vida com todos, ouvimos as suas preocupações,
colaboramos material e espiritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com
os que estão alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na
construção de um mundo novo, lado a lado com os outros. Mas não por obrigação,
nem como um peso que nos desgasta, mas como uma opção pessoal que nos enche de
alegria e nos dá uma identidade.
270.
Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância
das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que
toquemos a carne sofredora dos outros. Espera que renunciemos a procurar
aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do
nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com
a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos,
a vida complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser
povo, a experiência de pertencer a um povo.
271. É
verdade que, na nossa relação com o mundo, somos convidados a dar razão da
nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o dedo e condenam. A
advertência é muito clara: fazei-o «com mansidão e respeito» (1 Pd 3, 16) e
«tanto quanto for possível e de vós dependa, vivei em paz com todos os homens»
(Rm 12, 18). E somos incentivados também a vencer «o mal com o bem» (Rm 12,
21), sem nos cansarmos de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem pretendermos aparecer como
superiores, antes «considerai os outros superiores a vós próprios» (Fl 2, 3).
Na realidade, os Apóstolos do Senhor «tinham a simpatia de todo o povo» (Act 2,
47; cf. 4, 21.33; 5, 13). Está claro que Jesus não nos quer como príncipes que
olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo. Esta não é a opinião
de um Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são indicações da
Palavra de Deus tão claras, directas e contundentes, que não precisam de
interpretações que as despojariam da sua força interpeladora. Vivamo-las sine
glossa, sem comentários. Assim, experimentaremos a alegria missionária de
partilhar a vida com o povo fiel de Deus, procurando acender o fogo no coração
do mundo.
272. O
amor às pessoas é uma força espiritual que favorece o encontro em plenitude com
Deus, a ponto de se dizer, de quem não ama o irmão, que «está nas trevas e nas
trevas caminha» (1 Jo 2, 11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou a
conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). Bento XVI disse que «fechar os olhos diante do
próximo torna cegos também diante de Deus», e que o amor é fundamentalmente a
única luz que «ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem
de viver e agir». Portanto, quando vivemos a mística de nos aproximar dos
outros com a intenção de procurar o seu bem, ampliamos o nosso interior para
receber os mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com um ser
humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada vez
que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa
fé para reconhecer a Deus. Em consequência disto, se queremos crescer na vida
espiritual, não podemos renunciar a ser missionários. A tarefa da evangelização
enriquece a mente e o coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos mais
sensíveis para reconhecer a acção do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas
espirituais limitados. Ao mesmo tempo, um missionário plenamente devotado ao
seu trabalho experimenta o prazer de ser um manancial que transborda e refresca
os outros. Só pode ser missionário quem se sente bem procurando o bem do
próximo, desejando a felicidade dos outros. Esta abertura do coração é fonte de
felicidade, porque «a felicidade está mais em dar do que em receber» (Act 20,
35). Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se, negando-se a
partilhar, resistindo a dar, fechando-se na comodidade. Isto não é senão um
lento suicídio.
273. A
missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que
posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha
vida. É algo que não posso arrancar do meu ser, se não me quero destruir. Eu
sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso
considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar,
abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar. Nisto se revela a enfermeira
autêntica , o professor autêntico, o político autêntico, aqueles que decidiram,
no mais íntimo do seu ser, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se
uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna
cinzento e viverá continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as
suas próprias exigências. Deixará de ser povo.
274.
Para partilhar a vida com a gente e dar-nos generosamente, precisamos de
reconhecer também que cada pessoa é digna da nossa dedicação. E não pelo seu
aspecto físico, suas capacidades, sua linguagem, sua mentalidade ou pelas
satisfações que nos pode dar, mas porque é obra de Deus, criatura sua. Ele
criou-a à sua imagem, e reflecte algo da sua glória. Cada ser humano é objecto
da ternura infinita do Senhor, e Ele mesmo habita na sua vida. Na cruz, Jesus
Cristo deu o seu sangue precioso por essa pessoa. Independentemente da
aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso afecto e a nossa
dedicação. Por isso, se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já
justifica o dom da minha vida. É maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos
plenitude, quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de
nomes!
A
acção misteriosa do Ressuscitado e do seu Espírito
275.
No terceiro capítulo, reflectimos sobre a carência de espiritualidade profunda
que se traduz no pessimismo, no fatalismo, na desconfiança. Algumas pessoas não
se dedicam à missão, porque crêem que nada pode mudar e assim, segundo elas, é
inútil esforçar-se. Pensam: «Para quê privar-me das minhas comodidades e
prazeres, se não vejo algum resultado importante?» Com esta mentalidade,
torna-se impossível ser missionário. Esta atitude é precisamente uma desculpa
maligna para continuar fechado na própria comodidade, na preguiça, na tristeza
insatisfeita, no vazio egoísta. Trata-se de uma atitude autodestrutiva, porque
«o homem não pode viver sem esperança: a sua vida, condenada à insignificância,
tornar-se-ia insuportável». No caso de pensarmos que as coisas não vão mudar,
recordemos que Jesus Cristo triunfou sobre o pecado e a morte e possui todo o
poder. Jesus Cristo vive verdadeiramente. Caso contrário, «se Cristo não
ressuscitou, é vã a nossa pregação» (1 Cor 15, 14). Diz-nos o Evangelho que,
quando os primeiros discípulos saíram a pregar, «o Senhor cooperava com eles,
confirmando a Palavra» (Mc 16, 20). E o mesmo acontece hoje. Somos convidados a
descobri-lo, a vivê-lo. Cristo ressuscitado e glorioso é a fonte profunda da
nossa esperança, e não nos faltará a sua ajuda para cumprir a missão que nos
confia.
276. A
sua ressurreição não é algo do passado; contém uma força de vida que penetrou o
mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam a aparecer por todo o lado os
rebentos da ressurreição. É uma força sem igual. É verdade que muitas vezes
parece que Deus não existe: vemos injustiças, maldades, indiferenças e
crueldades que não cedem. Mas também é certo que, no meio da obscuridade,
sempre começa a desabrochar algo de novo que, mais cedo ou mais tarde, produz
fruto. Num campo arrasado, volta a aparecer a vida, tenaz e invencível. Haverá
muitas coisas más, mas o bem sempre tende a reaparecer e espalhar-se. Cada dia,
no mundo, renasce a beleza, que ressuscita transformada através dos dramas da
história. Os valores tendem sempre a reaparecer sob novas formas, e na
realidade o ser humano renasceu muitas vezes de situações que pareciam
irreversíveis. Esta é a força da ressurreição, e cada evangelizador é um
instrumento deste dinamismo.
277. E
continuamente aparecem também novas dificuldades, a experiência do fracasso, as
mesquinhices humanas que tanto ferem. Todos sabemos, por experiência, que às
vezes uma tarefa não nos dá as satisfações que desejaríamos, os frutos são
escassos e as mudanças são lentas, e vem-nos a tentação de se dar por cansado.
Todavia, não é a mesma coisa quando alguém, por cansaço, baixa momentaneamente
os braços e quando os baixa definitivamente dominado por um descontentamento
crónico, por uma acédia que lhe mirra a alma. Pode acontecer que o coração se
canse de lutar, porque, em última análise, se busca a si mesmo num carreirismo
sedento de reconhecimentos, aplausos, prémios, promoções; então a pessoa não
baixa os braços, mas já não tem garra, carece de ressurreição. Assim, o
Evangelho, que é a mensagem mais bela que há neste mundo, fica sepultado sob
muitas desculpas.
278. A
fé significa também acreditar n’Ele, acreditar que nos ama verdadeiramente, que
está vivo, que é capaz de intervir misteriosamente, que não nos abandona, que
tira bem do mal com o seu poder e a sua criatividade infinita. Significa
acreditar que Ele caminha vitorioso na história «e, com Ele, estarão os
chamados, os escolhidos, os fiéis» (Ap 17, 14). Acreditamos no Evangelho que
diz que o Reino de Deus já está presente no mundo, e vai-se desenvolvendo-se
aqui e além de várias maneiras: como a pequena semente que pode chegar a
transformar-se numa grande árvore (cf. Mt 13, 31-32), como o punhado de
fermento que leveda uma grande massa (cf. Mt 13, 33), e como a boa semente que
cresce no meio do joio (cf. Mt 13, 24-30) e sempre nos pode surpreender
positivamente: ei-la que aparece, vem outra vez, luta para florescer de novo. A
ressurreição de Cristo produz por toda a parte rebentos deste mundo novo; e,
ainda que os cortem, voltam a despontar, porque a ressurreição do Senhor já
penetrou a trama oculta desta história; porque Jesus não ressuscitou em vão.
Não fiquemos à margem desta marcha da esperança viva!
279.
Como nem sempre vemos estes rebentos, precisamos de uma certeza interior, ou
seja, da convicção de que Deus pode actuar em qualquer circunstância, mesmo no
meio de aparentes fracassos, porque «trazemos este tesouro em vasos de barro»
(2 Cor 4, 7). Esta certeza é o que se chama «sentido de mistério», que consiste
em saber, com certeza, que a pessoa que se oferece e entrega a Deus por amor,
seguramente será fecunda (cf. Jo 15, 5). Muitas vezes esta fecundidade é
invisível, incontrolável, não pode ser contabilizada. A pessoa sabe com certeza
que a sua vida dará frutos, mas sem pretender conhecer como, onde ou quando;
está segura de que não se perde nenhuma das suas obras feitas com amor, não se
perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros, não se perde nenhum
acto de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas fadigas, não se
perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula pelo mundo como uma força
de vida. Às vezes invade-nos a sensação de não termos obtido resultado algum
com os nossos esforços, mas a missão não é um negócio nem um projecto
empresarial, nem mesmo uma organização humanitária, não é um espectáculo para
que se possa contar quantas pessoas assistiram devido à nossa propaganda. É
algo de muito mais profundo, que escapa a toda e qualquer medida. Talvez o
Senhor Se sirva da nossa entrega para derramar bênçãos noutro lugar do mundo,
aonde nunca iremos. O Espírito Santo trabalha como quer, quando quer e onde
quer; e nós gastamo-nos com grande dedicação, mas sem pretender ver resultados espectaculares.
Sabemos apenas que o dom de nós mesmos é necessário. No meio da nossa entrega
criativa e generosa, aprendamos a descansar na ternura dos braços do Pai.
Continuemos para diante, empenhemo-nos totalmente, mas deixemos que seja Ele a
tornar fecundos, como melhor Lhe parecer, os nossos esforços.
280.
Para manter vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida confiança no
Espírito Santo, porque Ele «vem em auxílio da nossa fraqueza» (Rm 8, 26). Mas
esta confiança generosa tem de ser alimentada e, para isso, precisamos de O
invocar constantemente. Ele pode curar-nos de tudo o que nos faz esmorecer no
compromisso missionário. É verdade que esta confiança no invisível pode
causar-nos alguma vertigem: é como mergulhar num mar onde não sabemos o que
vamos encontrar. Eu mesmo o experimentei tantas vezes. Mas não há maior
liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito, renunciando a calcular
e controlar tudo e permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione
para onde Ele quiser. O Espírito Santo bem sabe o que faz falta em cada época e
em cada momento. A isto chama-se ser misteriosamente fecundos!
A
força missionária da intercessão
281.
Há uma forma de oração que nos incentiva particularmente a gastarmo-nos na
evangelização e nos motiva a procurar o bem dos outros: é a intercessão.
Fixemos, por momentos, o íntimo dum grande evangelizador como São Paulo, para
perceber como era a sua oração. Esta estava repleta de seres humanos: «Em todas
as minhas orações, sempre peço com alegria por todos vós (...), pois tenho-vos
no coração» (Fl 1, 4.7). Descobrimos, assim, que interceder não nos afasta da
verdadeira contemplação, porque a contemplação que deixa de fora os outros é
uma farsa.
282.
Esta atitude transforma-se também num agradecimento a Deus pelos outros. «Antes
de mais, dou graças ao meu Deus por todos vós, por meio de Jesus Cristo» (Rm 1,
8). Trata-se de um agradecimento constante: «Dou incessantemente graças ao meu
Deus por vós, pela graça de Deus que vos foi concedida em Cristo Jesus» (1 Cor
1, 4); «todas as vezes que me lembro de vós, dou graças ao meu Deus» (Fl 1, 3).
Não é um olhar incrédulo, negativo e sem esperança, mas uma visão espiritual,
de fé profunda, que reconhece aquilo que o próprio Deus faz neles. E,
simultaneamente, é a gratidão que brota de um coração verdadeiramente solícito
pelos outros. Deste modo, quando um evangelizador sai da oração, o seu coração
tornou-se mais generoso, libertou-se da consciência isolada e está ansioso por
fazer o bem e partilhar a vida com os outros.
283.
Os grandes homens e mulheres de Deus foram grandes intercessores. A intercessão
é como «fermento» no seio da Santíssima Trindade. É penetrarmos no Pai e
descobrirmos novas dimensões que iluminam as situações concretas e as mudam.
Poderíamos dizer que o coração de Deus se deixa comover pela intercessão, mas
na realidade Ele sempre nos antecipa, pelo que, com a nossa intercessão, apenas
possibilitamos que o seu poder, o seu amor e a sua lealdade se manifestem mais
claramente no povo.
2.
Maria, a Mãe da evangelização
284.
Juntamente com o Espírito Santo, sempre está Maria no meio do povo. Ela reunia
os discípulos para O invocarem (Act 1, 14), e assim tornou possível a explosão
missionária que se deu no Pentecostes. Ela é a Mãe da Igreja evangelizadora e,
sem Ela, não podemos compreender cabalmente o espírito da nova evangelização.
O dom
de Jesus ao seu povo
285.
Na cruz, quando Cristo suportava em sua carne o dramático encontro entre o
pecado do mundo e a misericórdia divina, pôde ver a seus pés a presença
consoladora da Mãe e do amigo. Naquele momento crucial, antes de declarar
consumada a obra que o Pai Lhe havia confiado, Jesus disse a Maria: «Mulher,
eis o teu filho!» E, logo a seguir, disse ao amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!»
(Jo 19, 26-27). Estas palavras de Jesus, no limiar da morte, não exprimem
primariamente uma terna preocupação por sua Mãe; mas são, antes, uma fórmula de
revelação que manifesta o mistério duma missão salvífica especial. Jesus
deixava-nos a sua Mãe como nossa Mãe. E só depois de fazer isto é que Jesus
pôde sentir que «tudo se consumara» (Jo 19, 28). Ao pé da cruz, na hora suprema
da nova criação, Cristo conduz-nos a Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer
que caminhemos sem uma mãe; e, nesta imagem materna, o povo lê todos os mistérios
do Evangelho. Não é do agrado do Senhor que falte à sua Igreja o ícone
feminino. Ela, que O gerou com tanta fé, também acompanha «o resto da sua
descendência, isto é, os que observam os mandamentos de Deus e guardam o
testemunho de Jesus» (Ap 12, 17). Esta ligação íntima entre Maria, a Igreja e
cada fiel, enquanto de maneira diversa geram Cristo, foi maravilhosamente
expressa pelo Beato Isaac da Estrela: «Nas Escrituras divinamente inspiradas, o
que se atribui em geral à Igreja, Virgem e Mãe, aplica-se em especial à Virgem
Maria (...). Alem disso, cada alma fiel é igualmente, a seu modo, esposa do
Verbo de Deus, mãe de Cristo, filha e irmã, virgem e mãe fecunda. (...) No
tabernáculo do ventre de Maria, Cristo habitou durante nove meses; no tabernáculo
da fé da Igreja, permanecerá até ao fim do mundo; no conhecimento e amor da
alma fiel habitará pelos séculos dos séculos».
286.
Maria é aquela que sabe transformar um curral de animais na casa de Jesus, com
uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. Ela é a serva humilde do Pai,
que transborda de alegria no louvor. É a amiga sempre solícita para que não
falte o vinho na nossa vida. É aquela que tem o coração trespassado pela
espada, que compreende todas as penas. Como Mãe de todos, é sinal de esperança
para os povos que sofrem as dores do parto até que germine a justiça. Ela é a
missionária que Se aproxima de nós, para nos acompanhar ao longo da vida,
abrindo os corações à fé com o seu afecto materno. Como uma verdadeira mãe,
caminha connosco, luta connosco e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus.
Através dos diferentes títulos marianos, geralmente ligados aos santuários,
compartilha as vicissitudes de cada povo que recebeu o Evangelho e entra a
formar parte da sua identidade histórica. Muitos pais cristãos pedem o Baptismo
para seus filhos num santuário mariano, manifestando assim a fé na acção
materna de Maria que gera novos filhos para Deus. É lá, nos santuários, que se
pode observar como Maria reúne ao seu redor os filhos que, com grandes sacrifícios,
vêm peregrinos para A ver e deixar-se olhar por Ela. Lá encontram a força de
Deus para suportar os sofrimentos e as fadigas da vida. Como a São João Diego,
Maria oferece-lhes a carícia da sua consolação materna e diz-lhes: «Não se
perturbe o teu coração. (...) Não estou aqui eu, que sou tua Mãe?»
A
Estrela da nova evangelização
287. À
Mãe do Evangelho vivente, pedimos a sua intercessão a fim de que este convite
para uma nova etapa da evangelização seja acolhido por toda a comunidade
eclesial. Ela é a mulher de fé, que vive e caminha na fé, e «a sua excepcional
peregrinação da fé representa um ponto de referência constante para a Igreja».
Ela deixou-Se conduzir pelo Espírito, através dum itinerário de fé, rumo a uma
destinação feita de serviço e fecundidade. Hoje fixamos n’Ela o olhar, para que
nos ajude a anunciar a todos a mensagem de salvação e para que os novos
discípulos se tornem operosos evangelizadores. Nesta peregrinação
evangelizadora, não faltam as fases de aridez, de ocultação e até de um certo
cansaço, como as que viveu Maria nos anos de Nazaré enquanto Jesus crescia:
«Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é
difícil, porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido
a uma espécie de “noite da fé” – para usar as palavras de São João da Cruz –
como que um “véu” através do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver
na intimidade com o mistério. Foi deste modo efectivamente que Maria, durante
muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no
seu itinerário de fé».
288.
Há um estilo mariano na actividade evangelizadora da Igreja. Porque sempre que
olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e
do afecto. N’Ela, vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos
fracos, mas dos fortes, que não precisam de maltratar os outros para se sentir
importantes. Fixando-A, descobrimos que aquela que louvava a Deus porque
«derrubou os poderosos de seus tronos» e «aos ricos despediu de mãos vazias»
(Lc 1, 52.53) é mesma que assegura o aconchego dum lar à nossa busca de
justiça. E é a mesma também que conserva cuidadosamente «todas estas coisas
ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19). Maria sabe reconhecer os vestígios do
Espírito de Deus tanto nos grandes acontecimentos como naqueles que parecem
imperceptíveis. É contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história e na
vida diária de cada um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré,
mas é também nossa Senhora da prontidão, a que sai «à pressa» (Lc 1, 39) da sua
povoação para ir ajudar os outros. Esta dinâmica de justiça e ternura, de
contemplação e de caminho para os outros faz d’Ela um modelo eclesial para a
evangelização. Pedimos-Lhe que nos ajude, com a sua oração materna, para que a
Igreja se torne uma casa para muitos, uma mãe para todos os povos, e torne
possível o nascimento dum mundo novo. É o Ressuscitado que nos diz, com uma
força que nos enche de imensa confiança e firmíssima esperança: «Eu renovo
todas as coisas» (Ap 21, 5). Com Maria, avançamos confiantes para esta
promessa, e dizemos-Lhe:
Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.
Vós, cheia da presença de Cristo,
levastes a alegria a João o Baptista,
fazendo-o exultar no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do Senhor.
Vós, que permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé inabalável,
e recebestes a jubilosa consolação da ressurreição,
reunistes os discípulos à espera do Espírito
para que nascesse a Igreja evangelizadora.
Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.
Vós, Virgem da escuta e da contemplação,
Mãe do amor, esposa das núpcias eternas
intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por instaurar o Reino.
Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Amen. Aleluia!
Dado em Roma, junto de São Pedro,
no encerramento do Ano da Fé, dia 24 de Novembro – Solenidade de Nosso Senhor
Jesus Cristo, Rei do Universo – do ano de 2013, primeiro do meu Pontificado.
Franciscus PP
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ÍNDICE
1. Alegria que se renova e comunica [2-8] ……………………….. 2
2. A doce e reconfortante alegria de evangelizar [9-10] ………….. 6
Uma eterna novidade [11-13] ……………………...…………………….. 7
3. A nova evangelização para a transmissão da fé [14-15] ………….. 9
A proposta desta Exortação e seus contornos [16-18] …..…………….. 11
Capítulo IA TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
1. Uma Igreja «em saída» [20-23] …..………………………..……….. 13
«Primeirear», envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar [24] ..….. 14
2. Pastoral em conversão [25-26] …..…………………………...…….. 16
Uma renovação eclesial inadiável [27-33] …..……………….………….. 17
3. A partir do coração do Evangelho [34-39] …..……………...…….. 21
4. A missão que se encarna nas limitações humanas [40-45] ...….. 23
5. Uma mãe de coração aberto [46-49] …..………………….....…….. 27
Capítulo IINA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
1. Alguns desafios do mundo actual [52] …..…………………....…….. 30
Não a uma economia da exclusão [53-54] …..…………………....…….. 30
Não à nova idolatria do dinheiro [55-56] …..…………………....…….. 31
Não a um dinheiro que governa em vez de servir [57-58] …...…….. 32
Não à desigualdade social que gera violência [59-60] …..…………….. 33
Alguns desafios culturais [61-67] …..…………………...............…….. 35
Desafios da inculturação da fé [68-70] …..…………………....…….. 38
Desafios das culturas urbanas [71-75] …..…………………....…….. 40
2. Tentações dos agentes pastorais [76-77] …..……..……....…….. 42
Sim ao desafio duma espiritualidade missionária [78-80] …....…….. 43
Não à acédia egoísta [81-83] …..………………….........................…….. 45
Não ao pessimismo estéril [84-86] …..…………………...............…….. 46
Sim às relações novas geradas por Jesus Cristo [87-92] …..………….….. 48
Não ao mundanismo espiritual [93-97] …..…………………....……... 51
Não à guerra entre nós [98-101] …..…………………...............…….. 53
Outros desafios eclesiais [102-109] …..…………………....…………..... 55
Capítulo IIIO ANÚNCIO DO EVANGELHO
1. Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho [111] …..……….…….. 60
Um povo para todos [112-114] …..…………………...............…….. 60
Um povo com muitos rostos [115-118] …..…………………....……... 62
Todos somos discípulos missionários [119-121] …..……………...…….. 65
A força evangelizadora da piedade popular [122-126] …..……….…….. 66
De pessoa a pessoa [127-129] …..………………….........................…….. 69
Carismas ao serviço da comunhão evangelizadora [130-131] …....….….. 70
Cultura, pensamento e educação [132-134] …..………………....…..…..... 71
2. A homilia [135-136] …..………………………………..……………... 72
O contexto litúrgico [137-138] …..…………………....……………….….. 73
A conversa da mãe [139-141] …..………………….........................…….. 74
Palavras que abrasam os corações [142-144] …..………….......…….. 75
3. A preparação da pregação [145] …..…………………....………...….. 77
O culto da verdade [146-148] …..………………….........................…….. 77
A personalização da Palavra [148-151] …..…………………....….….. 79
A leitura espiritual [152-153] …..……………………………….....…….. 81
À escuta do povo [154-155] …..…………………..........................…….. 82
Recursos pedagógicos [156-159] …..…………………....………..….. 84
4. Uma evangelização para o aprofundamento do querigma [160-162] . 85
Uma catequese querigmática e mistagógica [163-168] …..……….…….. 87
O acompanhamento pessoal dos processos de crescimento [169-173] ….... 90
Ao redor da Palavra de Deus [174-175] …..………………….....…….. 92
Capítulo IVA DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
1. As repercussões comunitárias e sociais do querigma [177] ….... 94
Confissão da fé e compromisso social [178-179] …..………………….... 94
O Reino que nos chama [180-181] …..…………………....………...….. 96
A doutrina da Igreja sobre as questões sociais [182-185] …….…….. 97
2. A inclusão social dos pobres [186] …..…………………....……... 99
Unidos a Deus, ouvimos um clamor [187-192] …..…………………..... 99
Fidelidade ao Evangelho, para não correr em vão [193-196] …..…….... 102
O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus [197-201] …..…….... 105
Economia e distribuição das entradas [202-208] …..………………….... 108
Cuidar da fragilidade [209-216] …..……………………………….... 110
3. O bem comum e a paz social [217-221] …..………………………...... 114
O tempo é superior ao espaço [222-225] …..………………………...... 115
A unidade prevalece sobre o conflito [226-230] …..………………….... 117
A realidade é mais importante do que a ideia [231-233] …..…………...... 118
O todo é superior à parte [234-237] …..……………………………….... 120
4. O diálogo social como contribuição para a paz [238-241] …..……... 121
O diálogo entre a fé, a razão e as ciências [242-243] …..…………...... 123
O diálogo ecuménico [244-246] …..……………………………........ 124
As relações com o Judaísmo [247-249] …..………………………...... 125
O diálogo inter-religioso [250-254] …..……………………………….... 126
O
1. Motivações
O
O
A acção misteriosa do Ressuscitado e do
A
2. Maria, a
O
A
(
(26 de Novembro de 2013) © Innovative Media Inc.
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