Domingo,31/03/2019
A
MISERICORDIA DIVINA DIANTE DA MISÉRIA HUMANA
IV DOMINGO
DA QUARESMA DO ANO
“C”
Primeira Leitura: Josué 5,9a.10-12
Naqueles dias, 9 ao
Senhor disse a Josué: “Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito”. 10 Os
israelitas ficaram acampados em Guilgal e celebraram a Páscoa no dia catorze do
mês, à tarde, na planície de Jericó. 11 No dia seguinte à Páscoa, comeram dos
produtos da terra, pães sem fermento e grãos tostados nesse mesmo dia. 12 O
maná cessou de cair no dia seguinte, quando comeram dos produtos da terra. Os
israelitas não mais tiveram o maná. Naquele ano comeram dos frutos da terra de
Canaã.
Segunda Leitura: 2Cor 5,17-21
Irmãos: 17 Se alguém
está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é
novo. 18 E tudo vem de Deus, que, por Cristo, nos reconciliou consigo e nos
confiou o ministério da reconciliação. 19 Com efeito, em Cristo, Deus
reconciliou o mundo consigo, não imputando aos homens as suas faltas e
colocando em nós a palavra da reconciliação. 20 Somos, pois, embaixadores de
Cristo, e é Deus mesmo que exorta através de nós. Em nome de Cristo, nós vos
suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus. 21 Aquele que não cometeu nenhum
pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornemos justiça de
Deus.
Evangelho: Lc 15, 1-3. 11-32
Naquele tempo, 1 os
publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar. 2 Os fariseus,
porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus: “Este homem acolhe os pecadores e
faz refeição com eles”. 3Então Jesus contou-lhes esta parábola: 11 “Um homem
tinha dois filhos. 12 O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da
herança que me cabe’. E o pai dividiu os bens entre eles. 13 Poucos dias
depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante.
E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada. 14 Quando tinha gasto tudo o que
possuía, houve uma grande fome naquela região, e ele começou a passar
necessidade. 15 Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para
seu campo cuidar dos porcos. 16 O rapaz queria matar a fome com a comida que os
porcos comiam, mas nem isto lhe davam. 17 Então caiu em si e disse: ‘Quantos
empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. 18
Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e
contra ti; 19 já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus
empregados’. 20 Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava
longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o,
e cobriu-o de beijos. 21 O filho, então, lhe disse: ‘Pai, pequei contra Deus e
contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho’. 22 Mas o pai disse aos
empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai
um anel no seu dedo e sandálias nos pés. 23 Trazei um novilho gordo e matai-o.
Vamos fazer um banquete. 24 Porque este meu filho estava morto e tornou a
viver; estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa. 25 O filho mais
velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de
dança. 26 Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. 27
O criado respondeu: ‘É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo,
porque o recuperou com saúde’. 28 Mas ele ficou com raiva e não queria entrar.
O pai, saindo, insistia com ele. 29 Ele, porém, respondeu ao pai: ‘Eu trabalho
para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca
medeste um cabrito para eu festejar com meus amigos. 30 Quando chegou esse teu
filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho
cevado’. 31 Então o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que
é meu é teu. 32 Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão
estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado’”.
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Voltar
Para Casa
Como sabemos, a Quaresma é um tempo de graça
em que todos são convidados para o grande gesto penitencial pelos caminhos que
nos conduzem a um encontro pessoal e íntimo com Deus. As leituras de hoje
descrevem esse movimento sobre como "voltar para casa".
A Primeira Leitura narra o final dos quarenta
anos da travessia do deserto pelos hebreus. Trata-se da volta à Terra Prometida.
Para isso, os hebreus tiveram que abandonar a terra da escravidão, o Egito,
para viver o novo.
A isto somos convidados: a abandonar a
escravidão das nossas atitudes negativas e, assim, regressar a casa onde o
nosso Pai nos espera. A esplêndida parábola do filho pródigo propõe o
"voltar para casa" como o único remédio para a situação daquele que é
um símbolo de como todos nós estamos vivendo (filho mais novo, o pródigo).
São Paulo (na Segunda Leitura), mais que
repetir as ideias de que temos que voltar para casa, nos faz aprofundar na
novidade cristã da reconciliação. Desde o princípio adverte: “O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo”.
O antigo é a distância que nos separa de Deus. Temos que percorrer para acabar
com nossa distância com Deus e com nossos irmãos da mesma jornada neste mundo. A
realidade é que já estamos em casa, mas nem sempre temos o espirito fraterno,
como aconteceu com o filho mais velho da parábola do filho pródigo. É uma ausência
na presença, paradoxalmente. O nosso corpo está no lugar onde moramos, mas através
de nossa maneira de viver e conviver estamos muito longe do espirito da casa, do
espirito familiar em que todos são irmãos e irmãs do mesmo pai com os mesmos
direitos e obrigações.
Pão
Eucarístico É Nosso Pão Pascal, Fonte De Nossa Força e Alegria.
A Primeira Leitura, tirada do livro de Josué, nos narra que com
a chegada à terra que Deus tinha prometido a Abraão, Isaac e Jacó, termina o
êxodo, a peregrinação. O povo peregrino se converte em sedentário e começa a
comer frutos da terra. Na planície de Jericó, ao anoitecer do dia 14 do mês, os
hebreus celebraram a Páscoa para comemorar esta chegada. É o ponto culminante
da libertação: “Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito”.
Tudo isso é símbolo de nossa peregrinação
atual: a libertação da escravidão do pecado pela conversão quaresmal (catecumenal-penitencial),
a entrada na Igreja- visibilidade do Reino de Deus, da Terra prometida, aqui e
agora, o saciar-se do Pão eucarístico (memorial da Páscoa) e de todos os frutos
da Nova Terra.
Esta primeira leitura de hoje nos convida a
celebrarmos a Páscoa, nos estimula em nosso caminho para a Páscoa da Nova
Aliança. Para nós, os cristãos libertados da ignominia do pecado (cf. a Segunda
Leitura e o Evangelho), a Páscoa é a culminação das celebrações do ano,
liturgicamente. A Páscoa do Senhor nos abre as portas do Paraiso e do Reino, da
Terra Prometida (cf. Lc 23,43). Da Páscoa do Senhor, temos um sacramento: a
Eucaristia que é na Terra o Pão do Reino de Deus, o Pão sem fermento, que
significa, como nos dirá são Paulo no dia da Páscoa (1Cor 5,8), uma renovação
total em sinceridade e verdade.
Também hoje, na Segunda Leitura, são Paulo nos
diz que em Cristo somos uma criatura nova: “Se
alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo
agora é novo” (2Cor 5,17). Portanto, a Eucaristia é sempre para nós o Pão
da novidade pascal, o Pão que continuamente nos renova. Mas pelo fato de sermos
peregrinos ainda neste mundo para a Terra Prometida (céu), o Pão descido do céu
nos dá vida permanentemente (cf. Jo 6). O Pão da Eucaristia é nos apresentado
como alimento de peregrinos (viático) e como alimento do Reino que já nos
chegou pela Páscoa do Senhor. A Eucaristia é também o ponto culminante de nossa
peregrinação quaresmal em seu aspecto penitencial: é o banquete festivo depois
da reconciliação, a passagem da morte para a vida (cf. Evangelho de hoje).
Como o filho pródigo que nos narra o Evangelho
de hoje, temos que empreender o itinerário penitencial para voltar à casa do
Pai. O caminho da penitência será autêntico na medida em que saibamos abrir
compreensivamente nosso coração aos demais, perdoando-os e evitando qualquer
atitude de superioridade ou soberba espiritual (filho mais velho do parábola do
filho pródigo).
O itinerário de nossa conversão, de nossa
volta para a casa do Pai sempre termina na alegria festiva (o filho perdido que
voltou é recebido com festa). Por isso, a liturgia de hoje, desde seu começo,
nos convida à alegria: “Alegra-te,
Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes, exultai de
alegria! saciai-vos com a abundância de suas consolações” (antífona de
entrada). E é que já estão próximas as festas pascais, e com elas, a plena
restauração da comunidade cristã pela Morte Ressurreição de Cristo. Por isso,
pedimos ao Senhor, na Oração de Coleta (oração inicial) que o povo cristão corra,
cheio de fervor e exultando de fé, ao encontro das festas que se aproximam. Assim
entramos nos sentimentos do coração de Deus que nos diz hoje: “Filho, era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu
irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado”
(Evangelho de hoje).
Estendamos nossa reflexão sobre o Evangelho
proclamado neste Quarto Domingo da Quaresmo!
A parábola sobre o filho pródigo, ou melhor,
a do Pai cheio de misericórdia, é considerada a pérola das parábolas
evangélicas. A parábola do Pai misericordioso é “a obra mestra de todas as parábolas de Jesus” (J.E.Compton). “Esta parábola é, com certeza, uma das
páginas mais cativantes de todo o evangelho” (J.Dupont). “Esta parábola é a mais conhecida e a mais
amada de todas as parábolas de Jesus, com toda razão apreciada como um tesouro
por sua extraordinária beleza literária, pela penetrante descrição dos
personagens, assim como pela sua afirmação da misericórdia divina que
ultrapassa todas as expectativas” (G.B.Caird). É quase um “evangelho
“dentro do Evangelho. É uma parábola que fala Do ensinamento de Jesus sobre a
Divina Misericórdia e a alegria de Deus por ter reencontrado o que estava
perdido. Estes dois temas, misericórdia e alegria, são característicos da obra
de Lucas. Por isso, sem dúvida nenhuma “a
face mais bonita do Amor de Deus é a Misericórdia” (João Paulo II).
Lucas 15 é o coração do Evangelho de Lucas.
Neste capítulo se revela para nós o que Deus quer, o que Jesus faz e se revela
também o julgamento que divide as pessoas entre as que aceitam e as que
rejeitam a Boa Notícia que constrói a nova sociedade e a nova história, a nova
fraternidade.
Na parte anterior desta parábola há duas
parábolas: a da ovelha perdida e a da moeda de prata perdida (Lc 15,4-10). O
que admirável na parábola da ovelha reencontrada é a medida drástica que o
pastor toma para buscar uma ovelha perdida. Deixa noventa e
nove no deserto em perigo, para que a perdida possa ser trazida de volta ao
aprisco. A ovelha não se desgarrou (cf. Mt 18,12) mas “se perdeu” e o pastor
toma a iniciativa de encontrá-lo. Essa é a condição do pecador antes da
conversão, e a resposta de Deus é buscar o perdido. Outro aspecto que Lucas
sublinha também é o tom de alegria que acompanha essa bem-sucedida conversão.
Para Lucas, o resultado da verdadeira conversão é a experiência de estar
perdido, depois encontrado, que leva à alegria sem limites.
A segunda parábola é a da moeda reencontrada,
desta vez usando uma mulher como personagem central. É uma parábola paralela do
mesmo motivo. A mulher pobre faz tudo para encontrar a moeda perdida. ”Acende
uma lâmpada, varre a casa e procura cuidadosamente até encontrá-la”(v.8). Os
verbos mostram o esforço incansável para recuperar a moeda perdida. Com essa
solicitude, com essa impaciência amorosa, com esse carinho Deus se comporta
para encontrar e salvar os perdidos.
O tema de perdido e reencontrado culmina na
parábola do Pai misericordioso ou, na do filho reencontrado. Nestas parábolas,
o evangelista Lucas procede do menos precioso ao mais precioso. Na parábola do
Pai misericordioso, não se trata mais de um animal, ainda que de estimação,
como uma ovelha, nem de um objeto, mesmo precioso como uma moeda de prata, mas
de um ser humano amado por Deus, por ser Seu filho ainda que seja/fosse um
filho transviado. Cada um de nós é precioso nos olhos de Deus e ninguém escapa
do olhar d´Ele. “Veja, Eu tatuei você na palma da Minha mão: suas muralhas
estão sempre diante de mim“ (Is 49,16). Basta que um de nós esteja perdido
para que seja objeto da preocupação de Deus.
Estes temas, misericórdia e alegria, são
importantes também em nossos dias, pois vivemos num mundo, que cada vez mais
está ficando sem coração, sem sensibilidade, sem acolhimento. No mundo de hoje
as pessoas são meros números. Milhões delas não contam: os velhos, os
aleijados, os loucos, etc. O homem
perdeu a humanidade. Ele não vê no outro alguém igual a ele. Ele não vê no
outro um irmão com as mesmas emoções, sentimentos, necessidades. O outro não
passa de objeto de produção, de consumo, de exploração.
As três parábolas da misericórdia têm como
destinatários os escribas e os fariseus. O que Jesus quer proclamar ao contá-las
é que o amor, a misericórdia, o perdão e a comunhão são oferecidos por Deus aos
perdidos; que a alegria de Deus quando um pecador se converte e acolhe a
salvação que lhe é oferecida é muito maior do que tudo o que nós poderíamos
imaginar.
Queremos refletir, de modo geral, sobre o
retrato de cada personagem nesta parábola e cada um pode se identificar com um
deles ou quem sabe com um pouco de cada.
RETRATO
DO FILHO MAIS VELHO
Fisicamente ele
fica tão perto do seu pai e irmão, mas tem uma grande distância interior que o
separa deles. A proximidade física, de fato, não é uma garantia para ter amor,
misericórdia, compreensão e perdão, somente a proximidade interior. Uma verdade
nos diz: “É muito mais fácil ferir as pessoas que estão próximas do que as
pessoas estranhas, os distantes “. Nenhuma vez ele chama seu pai de pai, nem
seu irmão de irmão; ele chama o irmão de “teu filho “. Ele acusa o pai como
cego e injusto. Para demonstrar-lhe sua cegueira e sua injustiça, ele compara
seu comportamento exemplar com a conduta irresponsável do irmão caçula. Ele perdeu a sensibilidade, o que o liga com
os demais na família.
Vítima de ressentimento e do rancor, o filho
mais velho recusa-se terminantemente a entrar e participar da festa: “Não
queria entrar” (v.28). Para ele, que se considera justo e irrepreensível, seria
uma humilhação e uma indignidade sentar-se à mesa com um degenerado e um
perdido, que se tornou impuro no contato com os pagãos, com as prostitutas e
com os porcos.
Portanto, não basta reconhecer a Misericórdia
de Deus para com os outros, autorizá-la e até mesmo concordar com ela, temos de
partilhá-la, fazer nossa a alegria de um Deus que quer não a morte do homem mas
sua vida. E isto permanecerá sempre o mais difícil: acolher o Reino de Deus e
Sua Justiça que nem sempre é a nossa.
Neste filho mais velho encontramos o que
chamamos de “pecado dos bons “. Este pecado discreto, camuflado que passa
despercebido por vezes até os olhos de quem o comete. Pensam à nossa volta que
somos melhores do que os outros e nós mesmos facilmente pensamos que quando se
fala em pecados ou em pecadores, se trata dos outros. E chega uma ocasião
inesperada em que nos convencemos de que também nós pertencemos redondamente à
família dos pecadores. Talvez já tenhamos passado por essa experiência sob um exterior
virtuoso, o filho mais velho revela subitamente os maus sentimentos que se
escondem no fundo do seu coração. Talvez os viesse reprimindo mas explodirão
repentinamente sob a ação da cólera. As mais belas virtudes empalidecem aos
olhos de Deus quando a pessoa se orgulha das suas virtudes.
Ao contemplar o comportamento do filho mais
velho, devemos refletir sobre nós mesmos para ver em que medida o nosso
coração, como o do filho mais velho, está triste e ressentido; para ver em que
medida trabalhamos e observamos as normas e os preceitos, mas vivemos fechados
em nós mesmos, na nossa “justiça” e na nossa autossuficiência, e somos
incapazes de abrir-nos à alegria da comunhão com Deus e com os irmãos.
O filho mais velho é agressivo e intransigente
porque é vítima do ciúme e do ressentimento. Confrontando nossos sentimentos,
atitudes e comportamentos com os do filho mais velho, devemos nos perguntar com
toda sinceridade, até que ponto nos deixamos conduzir também pela dureza e
intransigência da “justiça” farisaica em vez de acolher, viver e partilhar a
bondade de Deus. Muitas vezes, feridos pelas rejeições das quais nos julgamos
vítimas, tendemos a fechar-nos dentro de nós mesmos, cultivando insatisfações e
frustrações. Quanto mais nos fechamos, mais insatisfeitos nos sentimos e mais
razões encontramos para condenar os outros e a nós mesmos. E quanto mais nos
queixamos de nós mesmos e dos outros, mais rejeitados somos e mais
incompreendidos e “perdidos” nos sentimos. Se nos deixarmos envolver nesse
círculo vicioso, seremos incapazes de experimentar a alegria em nós mesmos e de
partilhar a alegria dos outros.
Jesus convida todos nós a depor toda a inveja
e toda compreensão legalista da lei e da ordem e a abrir-nos ao amor generoso e
gratuito de Deus para com todos, inclusive e sobretudo para com os que não o
“merecem”. Justamente porque seu amor é absolutamente gratuito, Deus oferece-o
também aos que não têm “direitos” nem “méritos” para apresentar, mas só
necessidade e o reconhecimento do seu pecado. Nós devemos decidir se queremos
ficar presos ao princípio de uma justiça rígida e excludente ou, se queremos
aderir ao Evangelho de Jesus acolhendo a bondade e generosidade ilimitada de
Deus. O Reino de Deus acontece quando nós acolhemos o amor gratuito de Deus que
nos é oferecido e quando essa acolhida muda nossa conduta, nossa relação com
Deus e com os homens.
E nós, ajudamos os outros irmãos a se
levantarem das quedas ou só temos o costume de atirar pedras? E a minha atitude
diante dos irmãos que erram se parece mais com a dos fariseus que condenam ou
com a de Jesus que perdoa e restaura a dignidade?
RETRATO
DO FILHO MAIS NOVO (vv.11-16)
As palavras do filho mais novo” “Dá-me a
parte dos bens que me cabe” são a ferida mais dolorosa que um filho podia
causar no pai, pois elas expressam a ruptura do convívio e da comunhão com ele.
Trata-se também de uma morte simbólica do pai, pois o filho mais novo pede logo
a herança enquanto seu pai está vivo. Ele quebra os laços com o pai, com o lar,
com a família. Esta ruptura é ainda mais enfatizada pela menção da partida para
“um país longínquo”, isto é para uma terra pagã, para um mundo onde a maneira
de pensar, de viver, de comportar-se, não tem nada a ver com a família e a casa
onde o filho nasceu, foi alimentado, cresceu e aprendeu a relacionar-se. Esta
partida significa um afastamento, uma rejeição de seu pai como pai. As consequências
da ruptura com o pai serão a miséria extrema e a degradação máxima. Quando
atravessou o limiar da casa paterna e deu as costas ao pai, o filho estava
partindo sem o saber, para a solidão, para a alienação e para a perdição. Santo
Agostinho comentou: “O homem, para onde se dirija, sem se apoiar em Deus só
encontrará dor e sofrimento”.
Quando nos afastamos de Deus, estamos
rejeitando, na verdade, o amor com que nos amou e escolheu desde toda a
eternidade (Jr 31,3), estamos rejeitando o Deus que nos conhece e chama pelo
nome (Is 43,1), nome que tem gravado nas palmas de suas mãos (Is 49,16); o Deus
que nos leva nas suas asas, que nos protege e nos carrega nos seus ombros como
o bom pastor. E quando nos afastamos de Deus e não ouvimos mais a sua voz,
somos seduzidos pelas vozes dos ídolos que nos prometem a felicidade pela
conquista do êxito, do poder e do prazer; da estima, da fama, do prestígio. Uma
vez perdemos a liberdade interior, perdemos também a confiança nos outros.
Nosso coração se endurece, o mundo se torna hostil e escuro, nossa vida não tem
mais sentido. Estamos perdidos, e sentimo-nos perdidos.
Enquanto ele tinha dinheiro, não lhe faltavam
amigos. Aliás, tais amigos (falsos) sempre existem em tal situação. Todos os
que se aproximaram dele estavam interessados no seu dinheiro e nas festas que
ele pagava. Mas um dia o dinheiro acabou. E ele se viu abandonado por todos.
Quando o dinheiro acabou, também ele deixou de existir para os “amigos”. Ele
cuida dos porcos. Isto para um judeu é um trabalho sumamente humilhante, pois a
lei considera o porco um animal impuro (cf. Lv 11,7; Dt 14,8). O Talmud
afirmará: “Maldito seja o homem que cuida de porcos”. Alimentar e fazer crescer
o que há de mais imundo no mundo é a abominação máxima para um judeu. As consequências
da opção do filho pródigo são a perda da justiça, ao não cumprir as exigências
da Lei, e a apostasia da própria religião, pois um judeu que serve a um pagão
rompe o vínculo com Deus. Isto quer dizer que a vida do filho mais novo desce
até o nível de animal, sem valor, sem sentido, sem rumo e sem salvação. Ele chegou
ao fundo do abismo da degradação.
Mas ele reconhece a misericórdia do pai, por
isso ele volta. Ele começou a refletir
sobre si mesmo quando chegou ao mais fundo da miséria, da solidão e da
humilhação, quando não tinha mais nenhum vínculo humano com ninguém. Foi
justamente ao chegar ao fundo desse abismo, ao comparar sua situação de
perdição com as condições de vida na casa do pai, que o filho perdido
reencontrou seu verdadeiro eu. A conversão dele inicia pelo estômago antes de
atingir o coração, uma tomada de consciência, prossegue com uma decisão de
retorno, um pedido de perdão e finalmente o ato de retorno. O que é a
penitência/conversão? Não é nada mais que o ser reencontrado e o voltar para
casa. Onde provamos da jovialidade de Deus em sua alegria por nós e reacendemos
nosso ânimo de viver, ali o Reino de Deus é a própria fonte da vida. Se
experimentarmos assim o Reino de Deus, assumiremos a plenitude de nossas
possibilidades de vida.
A figura do filho pródigo, no momento em que
é abraçado pelo pai nos mostra como termina quem dá ouvidos às promessas de
felicidade do mundo. A figura do pai que o acolhe nos mostra que quaisquer que
tenham sido os caminhos do nosso afastamento e os abismos da nossa perdição,
sempre podemos empreender o caminho de volta. O coração de Deus está sempre
aberto para nos acolher, seus braços estão sempre abertos para nos abençoar.
Suas palavras serão sempre as mesmas: “Tu és meu filho muito amado”. O amor
incondicional e criador de Deus nos devolve a dignidade perdida.
Todos nós, de um ou de outra forma, nos
afastamos da casa do Deus Pai; rompemos durante um tempo maior ou menor, a
comunhão com ele e estivemos perdidos. Mas um dia retomamos o caminho de volta
e fomos acolhidos, abraçados e perdoados pelo Pai que nos esperava.
RETRATO
DO PAI
O que Jesus quer nos mostrar nesta parábola é
o modo como Deus se comporta conosco, seus filhos; como ele pensa e sente, age
e reage diante dos nossos comportamentos. Jesus nos revela um Deus cheio de
ternura e de misericórdia, que vai ao encontro dos perdidos, libertando-os da
exclusão e do isolamento; um Deus que exulta de alegria quando os reencontra e
que convida a todos para a festa da comunhão e da alegria pelo seu retorno.
Então, o que nos interessa aqui é a atitude
fora do comum do pai que na verdade é o amor sem limite de Deus e a total
gratuidade de seu perdão. Perdoar significa concretamente refazer uma
verdadeira comunidade, o que supõe um amor sem medida. O amor de Deus por nós
não é o fruto de nossas obras ou de nossos méritos. Seu amor é anterior a tudo (1Jo
4,19). Portanto, a questão não ‘e como ganhar ou conquistar o amor de Deus. A
verdadeira questão, a questão primeira e última é como conhecer, acolher e
experimentar esse amor primeiro de Deus. Em outras palavras, como deixar-se
amar por Deus.
Se nos for dada a graça de crer nesse amor e
de experimentá-lo, ele curará todas as feridas e todos os sofrimentos causados
em nós pela nossa baixa estima, pela nossa insegurança e pelos nossos
ressentimentos. Se nos for dada a graça de experimentar esse amor, serão
exorcizados todos os “demônios”, disfarçados de ídolos, que tentam de todas as
formas nos seduzir para nos destruir: os falsos deuses que nos prometem a
felicidade por meio de ter, do dinheiro, exibição e consumo de coisas
materiais; por meio do prazer (sexo, drogas, bebidas etc.); ou por meio do
poder. Esses ídolos só terão poder de sedução sobre nós se nos sentirmos
afetivamente carentes. Se, porém, nos sentirmos amados por Deus com um amor
total e eterno, esses ídolos serão vistos por nós como ídolos com pés de barro.
Quem conhece e experimenta o amor de Deus,
recebe os dons da liberdade interior, da alegria e da paz, que lhe permitem
pautar todas as suas opções e ações pelos valores do Evangelho. A uma pessoa
com essa liberdade e com essa alegria, nada lhe falta. Essa pessoa vai chegar a
conhecer, experimentar e amar a Deus como Criador, e como Pai, como origem e o
fim de todas as coisas. Quem, pelo contrário, não estiver enraizado no amor de
Deus, não poderá encontrar em nenhuma criatura a alegria e a liberdade buscadas
porque elas são convertidas em ídolos.
A parábola termina com um ponto de
interrogação. Nunca saberemos se o filho mais velho entrou em casa e participou
da festa ou continuou em sua raiva, suas certezas, seu direito e sua justiça. É
deste ponto de interrogação que precisaríamos partir, sabendo que o convite
feito ao filho mais velho pretende atingir e questionar os cristãos deste tempo.
Provavelmente teremos que fazer, para nós mesmos, a experiência extraordinária
do que é a misericórdia de Deus. Temos que purificar a imagem que dele fazemos,
com a nossa mediocridade de falsários inconscientes. Temos ainda que entender
que não somente devemos agir como Deus, mas também alegrar-nos com Ele. Isto é
uma maneira de viver a misericórdia de Deus, a face mais bonita do Amor d’Ele
por todos nós. Temos a generosidade de perdoar ou somos vingativos?
E o pai dá três ordens
para os empregados: trazer a melhor túnica, colocar
um anel no
dedo do filho e sandálias nos pés.
·
Na
cultura oriental do tempo de Jesus, uma vestimenta
elegante era sinal de
dignidade de seu portador. Isto quer dizer que o filho mais novo volta a ter a
mesma dignidade que ele tinha antes de sair de casa.
·
Anel significa a plena
condição de herdeiro, com todos os direitos, incluindo o poder de representar o
pai e selar contratos. Em outras palavras, anel significa plenos poderes. O
filho voltou a ter o poder que tinha antes.
·
Sandálias representam a
condição de homem livre e de senhor de casa. Os hóspedes tiram as sandálias ao
entrar na casa, o filho as põe; os escravos andam descalços, as pessoas de
condição elevada calçam sandálias. Caminhar calçado pela casa significa posse.
Isto quer dizer que o filho mais novo voltou a ter sua dignidade perdida.
Assim será minha vida, sua vida, nossa vida
quando decidirmos voltar para Deus. Nesta parábola o
filho mais novo quer nos dizer: Qualquer um de nós pode se perder no caminho,
mas jamais esqueçamos o caminho de volta para a casa de Deus, nosso verdadeiro
lar. Que esta volta não seja tarde demais para que
o espirito mundano não nos destrua. Assim seja!
P. Vitus Gustama,svd
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