sábado, 9 de fevereiro de 2013

QUARTA-FEIRA DE CINZAS
 
Texto: Mt 6,1-6.16-18

 
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: 1“Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, para serdes vistos por eles. Caso contrário, não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus. 2Por isso, quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelos homens. Em verdade vos digo: eles receberam a sua recompensa. 3Ao contrário, quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, 4de modo que a tua esmola fique oculta. E o teu Pai, que o que está oculto, te dará a recompensa. 5Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de , nas sinagogas e nas esquinas das praças, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: eles receberam a sua recompensa. 6Ao contrário, quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta, e reza ao teu Pai que está oculto. E o teu Pai, que o que está escondido, te dará a recompensa. 16Quando jejuardes, não fiqueis com o rosto triste como os hipócritas. Eles desfiguram o rosto, para que os homens vejam que estão jejuando. Em verdade vos digo: eles receberam a sua recompensa. 17Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, 18para que os homens não vejam que tu estás jejuando, mas somente teu Pai, que está oculto. E o teu Pai, que o que está escondido, te dará a recompensa”.

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Cinza e seu significado para nossa vida

          
Com a Quarta-feira de Cinzas abrimos a nossa caminhada quaresmal. E para iniciar esta caminhada nós recebemos cinzas, colocando-as na nossa cabeça (testa).  O significado simbólico da cinza está ligado com sua semelhança com o e com o fato de que ela é o resíduo frio e ao mesmo tempo purificado da queima após a extinção do fogo. Por isso, em muitas culturas ela é símbolo da morte, da transitoriedade, do arrependimento e da penitência, mas também da purificação e da ressurreição. Para expressar luto, os gregos, os egípcios, os judeus, os árabes e as tribos primitivas espalhavam cinzas sobre a cabeça ou assentavam-se ou rolavam-se sobre as cinzas (alguns textos bíblicos para entender o que foi dito: Gn 18,27;Jó 2,8;13,12;Is 44,20;61,3;Jr 6,26;Ez 27,30;Lm 3,16;2Sm 13,19;Jn 3,6;Mt 11,21). O homem expressa com isso (cf. Gn 18,27) a consciência da relativa nulidade da criatura diante do Criador. 

          

Ao recebermos as cinzas ouvimos uma das fórmulas usadas: “Tu és , e em te hás de tornar” (Gn 3,19). A cinza recorda ao homem o reconhecimento de sua origem. A cinza é leve e por isso, ela é a imagem das coisas frágeis e efêmeras. Tudo é caduco. E toda a vaidade, todo o brilho falso e esta vida mortal, um dia conhecerão um fim. Recebemos as cinzas para nos relembrar de que somos ; é uma lembrança de que somos , de que não temos morada certa neste mundo, de que a morte é a única realidade inevitável no futuro de nossa existência. Na verdade, não é a morte que é absurda e sim a vida sem a morte. Muitos se esquecem da morte e por isso, acabam vivendo absurdamente e acabam vivendo somente em função do prazer. Como foi dito uma vez, quem vive em função do prazer, não tem prazer de viver. O prazer deve ser resultado de um viver bem. E para nós cristãos viver bem significa viver de acordo com os valores cristãos. A cinza é uma lembrança incômoda para quem acredita que o presente histórico é absoluto. Mas esta lembrança, na verdade, nos ajuda a vivermos bem, a colocarmos as coisas no seu devido lugar para ganhar seu justo valor e sua justa perspectiva.

          
Com as cinzas recebidas o homem experimenta o próprio nada. Para expressá-lo, cobre-se de cinza. Quando o homem experimenta o seu nada, nãolugar nele para a arrogância. Ao contrário, ele volta a ser humilde: humus, , criatura dependente de Deus. Quando vivemos a humildade que é a nossa própria existência o poder e a glória mundanos não vão nos atingir. Mas quando o homem deixar de reconhecer sua condição de criatura, querendo igualar-se a Deus,  ele se tornará um morto e por isso, terá que voltar à terra de que fora tirado, “porque és , em te hás de tornar” (Gn 3,19).

         
E somente quando o homem reconhece que é , que faz parte da terra, e que tudo o mais provém de Deus, brotará novamente a vida desse . E certamente as cinzas usadas na Quarta-feira de Cinzas provém das palmas do Domingo de Ramos do ano anterior, palmas triunfais do Cristo vitorioso sobre o pecado e a morte. Cristo, morrendo, deu nova vida à terra, conquanto o homem se reconheça como terra, . A quem assim confessa o próprio nada faz-se ouvir a promessa de Jesus Cristo que vem triunfar do pecado e da morte, consolar os aflitos e dar-lhes, em lugar de cinzas, um diadema, uma coroa de um rei.

         
Ao receber as cinzas, o cristão testemunha o absoluto de Deus em sua vida. E como conseqüência da profissão sobre o absoluto de Deus, o cristão relativiza todas as coisas. Isto quer dizer que as coisas somente têm seu valor em relação ao seu Criador. Sob o sinal das cinzas, o cristão reafirma hoje a sua liberdade de filho de Deus e ao mesmo tempo reafirma sua condição como ou criatura e que pode sobreviver como tal por causa da misericórdia de Deus. E Deus não tem como não ajudá-lo, pois o ser humano foi feito de acordo com a própria imagem de Deus (cf. Gn 1,26). Devemos ler, portanto, as três práticas de piedade apresentadas através do evangelho deste dia que abre nossa caminhada quaresmal.

 
A leitura do Evangelho quer responder a seguinte pergunta: “Como agradar a Deus?”. A prática da esmola, da oração e do jejum tem finalidade de sintonizar-nos com a vontade do Pai, de forma a preparar-nos da melhor maneira possível, para a celebração da Páscoa.

          
Jesus enuncia o princípio geral sobre a prática dessa piedade. Estas obras de piedade não se devem praticar para ganhar prestígio diante dos homens e com isso, adquirir posição de poder ou privilégio. Os que fazem assim privam-se da comunicação divina, cessa a relação de filho-Pai com Deus. Segundo Jesus, ninguém merece a graça de Deus se ele finge executar ação que não corresponde à atitude interior que ele chama de hipocrisia.


 A esmola (vv.1-4)

         
A linguagem utilizada por Mt nesta passagem e nas outras duas seguintes revela uma forte polêmica entre cristãos e judeus. Os hipócritas são os fariseus do tempo do evangelista que praticavam e queriam impor aos outros um cumprimento externo da Lei de Moisés. Segundo Jesus aos quer querem entrar no Reino dos céus devem cumprir a vontade do Pai sem ostentação.

          
A expressão utilizada por Mt para descrever esta atitude e comportamento (praticar a justiça) somente aparece neste evangelho(sete vezes. Cinco delas se encontram em Mt 5-7) e tem uma grande importância para a teologia de Mt. Mas não se trata da justiça como a entendemos. Quando se fala da justiça nos círculos judaicos trata-se do conjunto de atos que fazem o homem merecedor da salvação. Entre os fariseus do tempo de Jesus estes atos de piedade eram fundamentalmente três: a esmola, a oração e o jejum. Mas para muitos estas práticas se tornavam uma questão puramente externa e um motivo de orgulho, até o ponto de que alguns faziam exibição pública de sua religiosidade (justiça).

          
Os profetas do AT falam freqüentemente do dever da compaixão para com o pobre, mas eles acentuam muito mais a justiça do que a caridade. O mendigo ou o pobre é acusação de um sistema injusto que gera pobres e miseráveis, dependentes da “bondadealheia.  Mendigo é o fruto de uma sociedade que não quer partilhar seus bens para os outros(Mas de outra lado, certo mendigo é aquele que quer uma vida fácil, pois pela experiência, muitos não querem trabalhar, apesar de alguém oferecer-lhe trabalho. Mas eles são apenas um grupo pequeno).

          
A esmola deve ser expressão da misericórdia que existe no coração de quem se faz solidário com a carência alheia. A solidariedade acontece quando o homem tem compaixão, quando sente na própria pele o sofrimento alheio. O que sobra para nós, por pouco que seja, sempre faz falta para os outros que não tem nada. Mas sempre ficamos incomodados, pois sabemos que isso nunca resolverá completamente o problema do mendigo ou do pobre. Mas a esmola é um sinal, um lembrete de que devemos lutar por um sistema econômico que realmente faça uma partilha justa dos bens. Reflitamos as palavras de São Basílio (+ 379):Ao faminto pertence o pão que guardas. Ao homem nu, o manto que guardas até nos teus cofres. Ao que anda descalço, o calçado que apodrece em tua casa. Ao miserável, o dinheiro que guardas escondido. É assim que vives oprimindo tanta gente que poderias ajudar”. E Santo Agostinho acrescenta: “O Senhor te fez servo bom, mas tu criaste em teu coração um mau senhor. Ficas alegres por causa da riqueza do cofre e não te lamentas pela pobreza de teu coração? Há acréscimo em tua arca, mas observa bem o que diminui em teu coração”.

          
O próprio Jesus menciona a esmola para censurar a ostentação(cf. Mt 6,22ss). Isso devemos começar dentro de nossa família. Enquanto isso não acontece, ficamos incomodados.

          
Ao dar a esmola Jesus pede  a separação da pessoa quem a dá do seu gesto: “...a tua mão esquerda ignore aquilo que faz a direita...E o teu Pai...dar-te-á a recompensa” (vv.3-4). O resultado do bem fica escondido ao homem que recusa de ser o juiz de seus atos.  O único capaz de apreciar é um Deus invisível  que habita no segredo e não presta conta a ninguém. Um dito popular diz: “Se você fizer um benefício, nunca se lembre dele; se receber um, nunca se esqueça dele”. A vida vivida apenas para satisfazer a própria pessoa nunca satisfaz ninguém. Nãomelhor exercício para fortalecer o coração do que estender o braço para baixo e erguer pessoas. A bondade é o único investimento que nunca falha.


 A oração (vv5-6)

          
A instrução sobre a oração (vv.5-15) é a mais extensa das três práticas de piedade judaica e está situada no centro literário do Sermão da Montanha. Esta instrução está composta por uma introdução sobre a forma de orar (vv.5-8), o Pai-Nosso (vv.9-13) e uma conclusão que fala do perdão(vv.14-15).

          
Através deste texto Mt quer fazer uma catequese sobre a oração cristã, semelhante a de Lc (Lc 11,1-11), mas cada um dos dois evangelistas se dirige a um grupo distinto. Lc escreve para uma comunidade que necessita aprender a orar. Mt, ao contrário, escreve para uma comunidade que sabe orar, mas necessita aprender a fazer a oração de outra maneira (“Quando orardes, não sejais como os hipócritas...” v.5.7). Lc tem diante de si uma comunidade de origem pagã que não tem hábito de orar(será que viraremos pagãos se pararmos de orar?). Mt, ao contrário, está diante de uma comunidade ondebastantes judeus que haviam aprendido a orar três vezes por dia desde sua infância.

          
Mt enfrenta um problema em relação à prática de oração. A oração como as demais práticas religiosas os fariseus convertem em um motivo de ostentação e em uma prática pura externa. A oração não é mais um momento de falar com Deus, mas serve de instrumento para alcançar honra e prestígio diante dos homens.

          
Mt convida os cristãos a recuperar o sentido religioso da oração, purificando-a daquilo que há desviado a oração de seu fim. Para Mt a oração do cristão deve estabelecer um relacionamento íntimo com o Pai: “...entra no teu quarto, fecha a porta, e reza ao teu Pai” (v.6a), num clima de abandono e confiança em Deus: “O Pai de vocês conhece as necessidades que vocês têm”(v.8). Os cristãos devem orar como Jesus orava. E o estilo desta oração é condensado na oração do Pai-Nosso (vv.9-13).

          
Uma das principais raízes da vida cristã que nos ajuda a sugar a energia inesgotável do amor divino é a prática da oração. Nossa oração deve ser discreta, vivida na intimidade de nosso coração, repleta de silêncio capaz de perceber as insinuações do Espírito Santo. Mas se cresce na vida de oração, reservando a ela, diariamente, o mesmo tempo, pelo menos, que reservamos às refeições que nutrem o nosso corpo.



O jejum

       
Sobre o jejum Mt utiliza o mesmo esquema literário que há utilizado  nas duas instruções anteriores (quando...não façam como os hipócritas: v.2.5.16). Como foi refletido no domingo anterior, o jejum era uma prática estendida entre os grupos religiosos ao redor de Jesus (Mt 9,14). Os fariseus jejuavam duas vezes por semana (Lc 18,12).

          
Mt relata que Jesus praticou o jejum para preparar-se antes de exercer sua missão (Mt 4,12). E a comunidade de Mt praticava o jejum (Mt 9,15), mas Mt quer dar um sentido novo a esta prática, evitando toda a ostentação exterior.   

           
Com o jejum evitamos que os bens deste mundo não nos escravizem. Faz uso deles para o bem próprio e do próximo, e neles degusta o Bem maior que é Deus. Jejuar, então, significa abster-se de alimento, tomar uma atitude de respeito e de liberdade diante das coisas, fazer espaço para os outros e para Deus, confiar na providência de Deus; constituir um ato de conversão a Deus através das coisas. Neste tempo quaresmal devemos aprender a morrer com Cristo para renascer com ele. Com a ajuda de sua graça, devemos combater tudo aquilo que, na nossa vida, impede o nascimento do homem novo anunciado pelo Evangelho: nossas tendências burguesas, nossos pequenos apegos, o comodismo ou o medo que nos impedem uma atuação mais eficaz, nosso farisaísmo em querer fazer aquilo que nosvantagem ou prestígio, nosso vício/nossa dependência da TV ou do mundo virtual como a internet etc.

          
Muita gente acha que a quaresma é apenas um tempo em que não se come carne às sextas-feiras. No Brasil a grande maioria não come carne em dia nenhum não por causa de dieta ou por questão de saúde, mas porque não tem condição para ter carne. Por isso, aqueles que não passam necessidade, devem mesmo por uma questão de solidariedade aos necessitados, privam-se de carne ou de outras coisas.

       
O jejum que agrada a Deus, diz o profeta Isaías (Is 58,1-14) é quebrar as cadeias injustas, libertar os oprimidos, realizar a justiça.

 
A Quaresma é o tempo de uma experiência mais sentida da participação no mistério pascal de Cristo: “Se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com ele para também com ele sermos glorificados” (Rm 8,17). Esta é a lei da Quaresma! Daqui seu caráter sacramental: um tempo em que Cristo purifica a Igreja, sua esposa (cf. Ef 5,25-27).

 
A Quaresma tem um caráter especialmente batismal sobre qual se funda o penitencial. Com efeito, a Igreja é uma comunidade pascal porque é batismal. Ela é chamada a manifestar com uma vida de contínua conversão o sacramento que a gera. Daqui o caráter eclesial da Quaresma. É o tempo da grande chamada para todo o povo de Deus a fim de que se deixe purificar e santificar por seu Salvador e Senhor.


Da teologia da Quaresma nasce, portanto, uma típica espiritualidade pascal-batismal-penitencial-eclesial. Deste ponto de vista, a prática da penitência, que não deve ser somente interior e individual, mas também externa e comunitária, se caracteriza pelos seguintes elementos:

1.    Ódio ao pecado como ofensa a Deus.

2.    Conseqüências sociais do pecado.

3.    Participação da Igreja na ação penitencial.

4.    Oração pelos pecadores.

 
Os meios sugeridos para a prática quaresmais são:

1.    A escuta mais freqüente da Palavra de Deus.

2.    A oração mais intensa e prolongada.

3.    O jejum.

4.    As obras de caridade (cf. SC, 109-110).

     
A quaresma, neste sentido, é o tempo em que reassumimos a nossa vida cristã com um engajamento efetivo de transformação do mundo em vista do Reino de Deus.


Vitus Gustama,SVD
 
 


MENSAGEM DE SUA SANTIDADE BENTO XVI
PARA A QUARESMA DE 2013
Crer na caridade suscita caridade «Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (1 Jo 4, 16)
Queridos irmãos e irmãs!
A celebração da Quaresma, no contexto do Ano da fé, proporciona-nos uma preciosa ocasião para meditar sobre a relação entre e caridade: entre o crer em Deus, no Deus de Jesus Cristo, e o amor, que é fruto da acção do Espírito Santo e nos guia por um caminho de dedicação a Deus e aos outros.

 
1. A como resposta ao amor de Deus

 
Na minha primeira Encíclica, deixei alguns elementos que permitem individuar a estreita ligação entre estas duas virtudes teologais: a e a caridade. Partindo duma afirmação fundamental do apóstolo João: «Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (1 Jo 4, 16), recordava que, «no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. (...) Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor não é apenas ummandamento”, mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro» (Deus caritas est, 1). A constitui aquela adesão pessoal - que engloba todas as nossas faculdades - à revelação do amor gratuito e «apaixonado» que Deus tem por nós e que se manifesta plenamente em Jesus Cristo. O encontro com Deus Amor envolve não o coração, mas também o intelecto: «O reconhecimento do Deus vivo é um caminho para o amor, e o sim da nossa vontade à d’Ele une intelecto, vontade e sentimento no acto globalizante do amor. Mas isto é um processo que permanece continuamente a caminho: o amor nunca está "concluído" e completado» (ibid., 17). Daqui deriva, para todos os cristãos e em particular para os «agentes da caridade», a necessidade da , daquele «encontro com Deus em Cristo que suscite neles o amor e abra o seu íntimo ao outro, de tal modo que, para eles, o amor do próximo não seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequência resultante da sua que se torna operativa pelo amor» (ibid., 31). O cristão é uma pessoa conquistada pelo amor de Cristo e, movido por este amor - «caritas Christi urget nos» (2 Cor 5, 14) - , está aberto de modo profundo e concreto ao amor do próximo (cf. ibid., 33). Esta atitude nasce, antes de tudo, da consciência de ser amados, perdoados e mesmo servidos pelo Senhor, que Se inclina para lavar os pés dos Apóstolos e Se oferece a Si mesmo na cruz para atrair a humanidade ao amor de Deus.
 
«A mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por nós e assim gera em nós a certeza vitoriosa de que isto é mesmo verdade: Deus é amor! (...) A , que toma consciência do amor de Deus revelado no coração trespassado de Jesus na cruz, suscita por sua vez o amor. Aquele amor divino é a luzfundamentalmente, a única - que ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir» (ibid., 39). Tudo isto nos faz compreender como o procedimento principal que distingue os cristãos é precisamente «o amor fundado sobre a e por ela plasmado» (ibid., 7).
 
2. A caridade como vida na
Toda a vida cristã consiste em responder ao amor de Deus. A primeira resposta é precisamente a como acolhimento, cheio de admiração e gratidão, de uma iniciativa divina inaudita que nos precede e solicita; e o «sim» da assinala o início de uma luminosa história de amizade com o Senhor, que enche e dá sentido pleno a toda a nossa vida. Mas Deus não se contenta com o nosso acolhimento do seu amor gratuito; não Se limita a amar-nos, mas quer atrair-nos a Si, transformar-nos de modo tão profundo que nos leve a dizer, como São Paulo: não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim (cf. Gl 2, 20).
 
Quando damos espaço ao amor de Deus, tornamo-nos semelhantes a Ele, participantes da sua própria caridade. Abrirmo-nos ao seu amor significa deixar que Ele viva em nós e nos leve a amar com Ele, n'Ele e como Ele; então a nossa se torna verdadeiramente uma « que actua pelo amor» (Gl 5, 6) e Ele vem habitar em nós (cf. 1 Jo 4, 12).
 
A é conhecer a verdade e aderir a ela (cf. 1 Tm 2, 4); a caridade é «caminhar» na verdade (cf. Ef 4, 15). Pela , entra-se na amizade com o Senhor; pela caridade, vive-se e cultiva-se esta amizade (cf. Jo 15, 14-15). A faz-nos acolher o mandamento do nosso Mestre e Senhor; a caridade dá-nos a felicidade de pô-lo em prática (cf. Jo 13, 13-17). Na , somos gerados como filhos de Deus (cf. Jo 1, 12-13); a caridade faz-nos perseverar na filiação divina de modo concreto, produzindo o fruto do Espírito Santo (cf. Gl 5, 22). A faz-nos reconhecer os dons que o Deus bom e generoso nos confia; a caridade fá-los frutificar (cf. Mt 25, 14-30).
 
3. O entrelaçamento indissolúvel de e caridade
À luz de quanto foi dito, torna-se claro que nunca podemos separar e menos ainda contrapor e caridade. Estas duas virtudes teologais estão intimamente unidas, e seria errado ver entre elas um contraste ou uma «dialéctica». Na realidade, se, por um lado, é redutiva a posição de quem acentua de tal maneira o carácter prioritário e decisivo da que acaba por subestimar ou quase desprezar as obras concretas da caridade reduzindo-a a um genérico humanitarismo, por outro é igualmente redutivo defender uma exagerada supremacia da caridade e sua operatividade, pensando que as obras substituem a . Para uma vida espiritual sã, é necessário evitar tanto o fideísmo como o activismo moralista.
 
A existência cristã consiste num contínuo subir ao monte do encontro com Deus e depois voltar a descer, trazendo o amor e a força que daí derivam, para servir os nossos irmãos e irmãs com o próprio amor de Deus. Na Sagrada Escritura, vemos como o zelo dos Apóstolos pelo anúncio do Evangelho, que suscita a , está estreitamente ligado com a amorosa solicitude pelo serviço dos pobres (cf. At 6, 1-4). Na Igreja, devem coexistir e integrar-se contemplação e acção, de certa forma simbolizadas nas figuras evangélicas das irmãs Maria e Marta (cf. Lc 10, 38-42). A prioridade cabe sempre à relação com Deus, e a verdadeira partilha evangélica deve radicar-se na (cf. Catequese na Audiência geral de 25 de Abril de 2012). De facto, por vezes tende-se a circunscrever a palavra «caridade» à solidariedade ou à mera ajuda humanitária; é importante recordar, ao invés, que a maior obra de caridade é precisamente a evangelização, ou seja, o «serviço da Palavra». Não há acção mais benéfica e, por conseguinte, caritativa com o próximo do que repartir-lhe o pão da Palavra de Deus, fazê-lo participante da Boa Nova do Evangelho, introduzi-lo no relacionamento com Deus: a evangelização é a promoção mais alta e integral da pessoa humana. Como escreveu o Servo de Deus Papa Paulo VI, na Encíclica Populorum progressio, o anúncio de Cristo é o primeiro e principal factor de desenvolvimento (cf. n. 16). A verdade primordial do amor de Deus por nós, vivida e anunciada, é que abre a nossa existência ao acolhimento deste amor e torna possível o desenvolvimento integral da humanidade e de cada homem (cf. Enc. Caritas in veritate, 8).
 
Essencialmente, tudo parte do Amor e tende para o Amor. O amor gratuito de Deus é-nos dado a conhecer por meio do anúncio do Evangelho. Se o acolhermos com , recebemos aquele primeiro e indispensável contacto com o divino que é capaz de nos fazer «enamorar do Amor», para depois habitar e crescer neste Amor e comunicá-lo com alegria aos outros.
 
A propósito da relação entre e obras de caridade, há um texto na Carta de São Paulo aos Efésios que a resume talvez do melhor modo: «É pela graça que estais salvos, por meio da . E isto não vem de vós; é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie. Porque nós fomos feitos por Ele, criados em Cristo Jesus, para vivermos na prática das boas acções que Deus de antemão preparou para nelas caminharmos» (2, 8-10). Daqui se deduz que toda a iniciativa salvífica vem de Deus, da sua graça, do seu perdão acolhido na ; mas tal iniciativa, longe de limitar a nossa liberdade e responsabilidade, torna-as mais autênticas e orienta-as para as obras da caridade. Estas não são fruto principalmente do esforço humano, de que vangloriar-se, mas nascem da própria , brotam da graça que Deus oferece em abundância. Uma sem obras é como uma árvore sem frutos: estas duas virtudes implicam-se mutuamente. A Quaresma, com as indicações que dá tradicionalmente para a vida cristã, convida-nos precisamente a alimentar a com uma escuta mais atenta e prolongada da Palavra de Deus e a participação nos Sacramentos e, ao mesmo tempo, a crescer na caridade, no amor a Deus e ao próximo, nomeadamente através do jejum, da penitência e da esmola.
 
4. Prioridade da , primazia da caridade
Como todo o dom de Deus, a e a caridade remetem para a acção do mesmo e único Espírito Santo (cf. 1 Cor 13), aquele Espírito que em nós clama:«Abbá! – Pai!» (Gl 4, 6), e que nos faz dizer: «Jesus é Senhor!» (1 Cor 12, 3) e «Maranatha! – Vem, Senhor(1 Cor 16, 22; Ap 22, 20).
 
Enquanto dom e resposta, a faz-nos conhecer a verdade de Cristo como Amor encarnado e crucificado, adesão plena e perfeita à vontade do Pai e infinita misericórdia divina para com o próximo; a radica no coração e na mente a firme convicção de que precisamente este Amor é a única realidade vitoriosa sobre o mal e a morte. A convida-nos a olhar o futuro com a virtude da esperança, na expectativa confiante de que a vitória do amor de Cristo chegue à sua plenitude. Por sua vez, a caridade faz-nos entrar no amor de Deus manifestado em Cristo, faz-nos aderir de modo pessoal e existencial à doação total e sem reservas de Jesus ao Pai e aos irmãos. Infundindo em nós a caridade, o Espírito Santo torna-nos participantes da dedicação própria de Jesus: filial em relação a Deus e fraterna em relação a cada ser humano (cf. Rm 5, 5).

 
A relação entre estas duas virtudes é análoga à que existe entre dois sacramentos fundamentais da Igreja: o Baptismo e a Eucaristia. O Baptismo (sacramentum fidei) precede a Eucaristia (sacramentum caritatis), mas está orientado para ela, que constitui a plenitude do caminho cristão. De maneira análoga, a precede a caridade, mas se revela genuína se for coroada por ela. Tudo inicia do acolhimento humilde da («saber-se amado por Deus»), mas deve chegar à verdade da caridadesaber amar a Deus e ao próximo»), que permanece para sempre, como coroamento de todas as virtudes (cf. 1 Cor 13, 13).

 
Caríssimos irmãos e irmãs, neste tempo de Quaresma, em que nos preparamos para celebrar o evento da Cruz e da Ressurreição, no qual o Amor de Deus redimiu o mundo e iluminou a história, desejo a todos vós que vivais este tempo precioso reavivando a em Jesus Cristo, para entrar no seu próprio circuito de amor ao Pai e a cada irmão e irmã que encontramos na nossa vida. Por isto elevo a minha oração a Deus, enquanto invoco sobre cada um e sobre cada comunidade a Bênção do Senhor!
 
Vaticano, 15 de Outubro de 2012
BENEDICTUS PP. XVI
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