XVII DOMINGO DO TEMPO COMUM DO ANO B
O texto , para a terceira leitura deste domingo , é tirado de Jo 6. E por sua vez , Jo 6 faz parte do livro dos sinais (Jo 1,19-12,50).
Jo 6 podemos dividir em algumas partes conforme o seu conteúdo . Jo 6,1-15 fala da multiplicação dos pães (e peixe ) que serve de introdução para o Discurso do Pão da Vida (Jo 6,29-59). Jo 6,16-25 relata a caminhada de Jesus sobre o mar (água ) com o reencontro de Jesus da multidão . Jo 6,29-59 fala do discurso sobre o Pão da Vida que é um discurso de auto-revelação de Jesus(“Eu Sou”). E por fim , Jo 6,60-71 fala da reação da multidão e dos discípulos diante do discurso de Jesus.
Jo 6 tem, então , dois atos : a multiplicação dos pães e a caminhada sobre o mar ; e um discurso : sobre o Pão da Vida .
A alimentação da multidão (a multiplicação dos pães ) é o único milagre narrado em todos os quatro evangelhos (cf. Lc 9,10-17) e o único narrado duas vezes em Marcos (Mc 6,32-44;8,1-10) e Mateus (Mt 14,13-21;15,29-39). A multiplicação em Jo 6,1-15 é mais próxima do relato da primeira multiplicação de Mc(cf. Mc 6,32-44), pois fala da alimentação de cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes . Apesar disto, Jo tem suas próprias características . Não analisaremos as diferenças . Vamos nos concentrar somente no texto de Jo.
O presente relato de Jo quer destacar o conhecimento sobre-humano de Jesus. Jesus aparece aqui como o Senhor . Desaparecem as marcas humanas como compaixão por uma multidão faminta que estava muito tempo sem comer (cf. Mc 6,34). Os sinóticos destacam mais a dimensão humanitária de Jesus do que sua dimensão divina . Toda a situação se desenvolve sob o controle de Jesus: ele sabe perfeitamente o que tem que fazer . Jesus tem a iniciativa em todo momento . Acentua-se a sua preocupação pelo homem para responder às suas necessidades mais profundas. O papel dos discípulos é reduzido.
No Evangelho de João, como já sabemos, não se usa o termo milagre mas sinal . O que ele chama de sinais são os gestos de Jesus. São chamados de Sinais porque remetem a algo mais profundo , ao significado . Somos convidados a descobrir o que tem por além de cada gesto de Jesus e de cada personagem .
A multiplicação dos pães é o quarto sinal realizado por Jesus. Como sinal precisamos ir além do relato para descobrir seu sentido . Ao descobrir o sentido poderemos tirar mensagens para nos hoje . Por isso , vamos partir dos detalhes .
1. Jesus é a nova Páscoa
O texto nos diz que a Páscoa , comemoração do êxodo de Israel do Egito, quando Deus alimentou o povo no deserto , estava para acontecer mas Jesus saiu de Jerusalém “ para outro lado do mar da Galiléia” para uma região de pagãos , e o povo o seguiu. É chamada aqui “a Páscoa dos judeus ”(v.4). É um detalhe importante . Lembremos que todo judeu devia ir a Jerusalém para celebrar a festa da Páscoa . Jesus saiu de Jerusalém porque Jerusalém se tornou lugar em que o povo é oprimido e explorado, se tornou um novo Egito. A Páscoa não é mais uma festa de liberdade e de vida , e sim uma ocasião para oprimir e explorar as pessoas (cf. Jo 2,13-22). Jesus provoca um “ novo êxodo ”, como fez Moisés do Egito para a terra prometida. Mas o Egito, lugar de opressão , agora é a Judéia. A Páscoa se torna vazia de sentido primordial . O fato de Jesus retirar-se para o outro lado do lago , em vez de ir para Jerusalém por causa da Páscoa , revela uma ruptura com as tradições dos antepassados que em vez de salvar , oprimem o povo . Jesus se torna , assim , uma nova Páscoa para o povo .
2. Jesus é maior que Moisés
Jesus sobe à montanha , como Moisés no tempo do êxodo no deserto . A palavra “monte ” aparece freqüentemente na tradição sinótica e se relaciona com acontecimentos importantes (Sermão da Montanha em Mt 5,1; vocação dos doze em Mc 3,13; aparição depois da ressurreição em Mt 26,16). A menção da “montanha ” aqui serve para destacar o contraste entre Moisés e Jesus. Moisés subiu e desceu várias vezes . Jesus sobe e senta com o povo . Ele é superior a Moisés. É com esse povo que ele celebrará a Páscoa que não tem fim , a festa da vida , a aliança eterna .
3. Jesus alimenta o povo faminto e ensina todos a serem generosos
A conversa inicial entre Jesus e Filipe(v.5) lembra a que se passou entre Javé e Moisés, antes que Javé multiplicasse a carne que o povo pediu(cf. Nm 11,21-23). No tempo de deserto , o povo de Deus passou fome , e não só a carne , mas Deus também mandou o maná para o povo faminto (cf. Ex 16). Também neste quarto sinal realizado por Jesus a questão da sobrevivência aparece imediatamente . É preciso notar que Jesus se antecipa mais no relato de Jo do que nos sinóticos: o próprio Jesus dirige o diálogo inicial (vv.5-10) e distribui o pão (v.11); enquanto que nos sinóticos são os discípulos que tomam a iniciativa para lembrar Jesus de cuidar da multidão . Em Jo Jesus toma a iniciativa , pois se preocupa com a multidão e sabe o que vai fazer . Portanto , trata-se realmente de um relato que tem por objetivo revelar a pessoa de Jesus. Por isso também , a refeição proposta por Jesus tem por objetivo conduzir os discípulos até o mistério da pessoa de Jesus.
Jesus viu a multidão e disse a Filipe: “Onde vamos comprar pão para eles comerem?”. Segundo o texto Jesus interpela Filipe apenas para testar sua fé , pois Jesus sabe muito bem o que fazer . Além disto, através desta pergunta o texto quer nos dizer que a primeira preocupação de Jesus é com a sobrevivência do povo . Jesus provoca seus seguidores , representado por Filipe sobre como resolver a questão da fome do povo . Para Filipe a fome do povo não tem solução : “Duzentos denários de pão não seriam suficientes para que cada um recebesse um pedaço ”(um denário é a diária de um lavrador : Mt 20,2, isto quer dizer que 200 dias de trabalho não são suficientes para alimentar tanta gente ).
Surge André, o irmão de Pedro com uma solução : “Aqui há um menino que tem cinco pães de cevada e dois peixes ”. Ele representa a nova proposta diante da fome do povo . Pão de cevada e peixe eram a comida dos pobres (arroz e feijão para nós hoje ). Os ricos comiam o pão de trigo . O menino e os pães cevadas lembram o profeta do pão , Eliseu, no AT(2Rs 4,42-44), que tinha por assistente o rapaz Giezi e permitiu a uma tropa de cem homens famintos saciar-se com uns vinte pãezinhos de cevada . Mas Jesus é maior que o profeta Eliseu. O menino neste relato tem generosidade de entregar seu pão e peixe . Ele não retém para si seu alimento nem pergunta de que ele se alimentará. O menino recorda, por isso , os pequenos que estão dispostos a servir e a partilhar os bens da vida , sem submetê-los à ganância .
Jesus entra em ação e manda os discípulos acomodar /sentar as 5 mil pessoas na grama daquele lugar deserto . Naquele tempo somente as pessoas livres é que sentavam para tomar refeição . O gesto de sentar , portanto , funciona como tomada de consciência da própria dignidade e liberdade . Já vimos que o Templo de Jerusalém era chamado simplesmente de “o lugar ”. O novo Templo em que Deus se encontra com a humanidade é lá onde acontecem a partilha dos bens da vida e a fruição da dignidade e da liberdade humanas. Jesus e o povo livre são o novo Templo . E isso vale para todos .
Jesus pega o pão do povo (pão de cevada ) e faz a oração de agradecimento. O fato de que o pão abençoado por Jesus seja um pão de cevada , o pão dos pobres (detalhe que somente se encontra em Jo), reforça a idéia de que o banquete oferecido por Jesus satisfaz plenamente os “pobres de Javé ”(os que confiam plenamente em Deus ) com a plenitude do banquete messiânico. A refeição aponta para a refeição escatológica. Este elemento escatológico permite a Jo voltar , no discurso subseqüente , às idéias de pão da vida e de pão da imortalidade .
Disso tudo aprendemos que se os bens da vida forem partilhados entre todos , todos ficarão satisfeitos e ainda sobrará muita coisa . Quando a vida é partilhada, todos a possuem plenamente , e ela transborda para todos . Deus pode multiplicar o pouco ou muito que temos, a partir daquilo que somos e temos, contudo que o ponhamos à sua disposição . Quando Deus e o homem colaboram numa obra salvífica, as forças de ambos não se somam mas se multiplicam. Aí está o milagre .
4. Somos chamados a partilhar o que temos para os outros
Jesus manda recolher os pães que sobraram. Quando o Senhor supre as necessidades do seu povo , há sempre abundância , mas não desperdício , pois desperdiçar alimento que não necessitamos, quando tantas pessoas vivem na miséria , é um insulto ao Doador divino . Além disto, o relato quer nos dizer que não importa com que abundância o Senhor distribui sua graça , ele sempre tem o suficiente para dar mais . O Senhor nunca fica mais pobre por sua generosidade . Como diz o Provérbio : ”Há quem seja pródigo (generoso ) e aumenta sua riqueza , e há quem guarde sem medida e se empobrece”(Pr 11,23).Tudo isto quer dizer que o amor é sempre abundante . O amor dado e partilhado sempre multiplica seu número . Enquanto as coisas materiais vão diminuir sua quantidade cada vez que elas são divididas. O que Jesus quer dizer com isso é que sua comunidade não pode acumular , pois isso gera ganância . E o que é acumulado por alguns falta aos outros .
Os pães que sobraram encheram doze cestos . Convém recordar o relato de Eliseu: “Assim falou Javé : ‘comerão e ainda sobrará’...Eles comeram e ainda sobrou, segundo a palavra de Javé ”(2Rs 4,43s). O que sobrou: doze cestos cheios . Doze é o número das tribos do antigo povo de Israel e também dos doze apóstolos que representam o novo povo de Deus : a Igreja . A abundância dos pães que sobraram quer enfatizar o aspecto escatológico desta refeição . Isto quer dizer que o Senhor não somente suprir as necessidades destas “ovelhas perdidas da casa de Israel”, mas tem o suficiente para todos os povos (12= perfeição ).
O Evangelho diz que Jesus se retira , pois a multidão queria fazê-lo rei . Mas Jesus negou ser rei que a multidão esperava. Antecipa-se, aqui , a afirmação que o próprio Jesus dirá para Pilatos: “Meu reino não é deste mundo ”(Jo 18,36). Jesus como o enviado do Pai não tem pretensões políticas .
Na verdade , Jesus se retira para deixar seu gesto de amor compartilhado. Jesus saciou concretamente o povo faminto a partir de uma realidade terrestre . O pão que ele fornece não é somente o símbolo do pão sobrenatural : não é possível revelar o pão da vida eterna sem se engajar verdadeiramente nas tarefas da solidariedade humana . Os pobres e os miseráveis são o teste por excelência da qualidade de nossa caridade . Fica o gesto de amor de Jesus no ato de compartilhar o pão , e a nossa tarefa de continuar esse gesto ao longo da História , com todo os homens .
Na eucaristia distribui-se o pão da vida eterna em abundância . Mas somente existe verdadeira recepção desse pão da vida no despojamento e numa disponibilidade absoluta , que faz de cada participante um irmão e uma irmã do próximo , especialmente dos necessitados. Portanto , devemos nos perguntar : nós , cristãos , estamos dispostos a isso deste mundo desgarrado ? Os que têm, por pouco que seja, estão dispostos a compartilhar ? É pouco , na verdade , mas é preciso saber dar a partir da nossa pobreza . Compartilhar o pão é palavra de vida . O Senhor pega o pouco alimento que tinha , dá graças e o reparte. Não se diz que multiplica; contudo , dá para todos , o amor que anima o gesto não tem limite . Somos seguidores dele. O gesto dele deve ser também o nosso gesto . Os seguidores de Cristo não podem partir em comunhão o pão eucarístico se não estiverem dispostos a partilhar com os irmãos também o pão material .
P. Vitus Gustama,svd
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